Filosofia latino-americana: diálogos e manifestações

Ofélia Maria Marcondes

Profa. Dra. (IFSP)

21/11/2023 • Coluna ANPOF

Filosofia   é   reflexão   sobre   problemas  concretos,  de pessoas concretas, em dadas circunstâncias assim é que (re)construir a filosofia latino-americana exige reflexão que nos remete a tempos não-lineares de uma filosofia que se dá na urgência das circunstâncias, isto porque nenhuma teoria se constitui fora da vida prática, assim como a vida prática vai sendo costurada pelas teorias difundidas e, nessa tessitura, os diálogos vão acontecendo, sendo ampliados e aprofundados; são vozes que ressoam e são ouvidas; um diálogo intercultural para a (re)construção de sentidos e de significações. A ação humana revela as intenções dos atos em sua concretude e filosofia é necessariamente um diálogo com as circunstâncias, o que nos leva a colocar em xeque em que medida a filosofia europeia responde às nossas necessidades, aos nossos problemas latino-americanos.

A filosofia latino-americana se caracteriza pela elaboração de formas contra-hegemônicas de pensar, sendo necessário que, no diálogo com nossas circunstâncias, (re)surjam as filosofias de povos oprimidos, marginalizados, silenciados e invisibilizados, corrigindo os equívocos do pensamento eurocentrado sobre as terras ameríndias e os povos que aqui já estavam e, mais tarde, sobre os povos sequestrados, escravizados e trazidos para estas terras, sem língua que se pudesse falar, desterrados e submetidos à aculturação. Da mesma forma que é urgente incluirmos a América Latina desde sua origem (antes da invasão, do encobrimento e do genocídio provocados por portugueses e espanhóis) na história da humanidade, é urgente superarmos a ideia de que o pensamento e as soluções construídas por esses povos invisibilizados e silenciados são mitologia, conceito que subjuga essa construção filosófica-cultural em relação à racionalidade europeia.

Segundo Dussel (1993, p. 92), a visão “mitológico-ritual supunha um altíssimo grau de racionalização. Os mitos supõem uma racionalidade de alto grau de criticidade”. Citando Mignolo (2006, p. 677), podemos compreender que “a negação de todas as outras formas de racionalidade a partir da perspectiva da razão filosófica e científica revela a dupla face da modernidade/colonialidade”. Em outras palavras, este sistema filosófico eurocêntrico nos leva a crer que a mitologia não é um pensamento sistemático como o é a filosofia, o que não passa de uma redução intencional do pensamento dos povos subalternizados, pois a mitologia é construída de modo sistemático e responde a necessidades postas pelas circunstâncias. Associar mitos a modos de vida caracterizados como primitivos é retirar qualquer possibilidade de entendimento sobre o pensamento do outro.

A alteridade é categoria fundamental no pensamento latino-americano por colocar o outro como sujeito de sua história. Lembrando “América” é um termo europeu. Aqui, nossos nomes foram suplantados pela história única dos colonizadores, éramos das terras de Cemanáhuac (astecas), de Abia Yala (kunas), de Tahuantisuyo (incas), de Pindorama (tupis-guaranis), formávamos um mundo cultural em contraposição à ideia de que éramos um vazio, incivilizados e bárbaros. História única que encobriu, silenciou, invisibilizou os povos vitimados pela opressão, pelo genocídio, pelo epistemicídio, pela aculturação, pela imposição de línguas alienígenas como o espanhol e o português, pela imposição de um deus único e cristão.

Na história da América Latina se observa a libertação de uma situação de dependência ou dominação para se aceitar outra, parecendo haver uma cadeia sem fim de processos de dominação investidos de ideias de libertação. A libertação não pode depender de uma certa mudança histórica ‘transcendental’, esperando que haja uma superação das relações de dominação e de subdesenvolvimento como consequência. A libertação começa, e somente se efetiva, com a tomada de consciência das relações de dominação e por meio do efetivo diálogo com as circunstâncias. Exige-se, portanto, uma reflexão sobre a realidade.  

A filosofia latino-americana é o esforço epistemológico contra-hegemônico cuja circunstância não é o Norte, mas a que é perpassada por fortes relações de opressão e dominação que resultam num silenciamento e num apagamento da fala e do pensamento daqueles que são submetidos à ideologia centrada na branquitude, no masculino, na cristandade, no machismo, na heteronormatividade, elementos da construção de uma sociedade patriarcal. Construir a Filosofia da Libertação é uma questão ética de libertação de todas as formas de opressão que carregam ainda “aquele mítico 1492 [que] foi sendo diacronicamente projetado sobre todo o continente com um manto de esquecimento, de barbarização, de ‘modernização’” (Dussel, 1993, p. 103).

Em conversa informal com o filósofo brasileiro Antônio Joaquim Severino, nos idos dos anos 2010, ele afirmou que entendia a Filosofia da Libertação como a expressão da filosofia latino-americana, sendo construção, como Zea qualificou, original e autêntica porque resulta das relações com as problemáticas do ser humano de carne e osso, colonizado, mestiço, aculturado, subalternizado, sob dominação cristã, fruto de um esforço europeu de transformar o “bárbaro selvagem” em um “certo civilizado” que acata o discurso ideológico. A palavra que cristianiza é a palavra que torna o discurso uma ideologia monolítica, levando ao que Zea (1945) caracteriza como más-cópias do pensamento europeu ao se referir à importação de ideias e sistemas filosóficos sem que se leve em conta as circunstâncias nas quais os problemas humanos se originam.

Se, por um lado podemos pensar que a filosofia da libertação é a expressão da filosofia latino-americana, é possível afirmar que é justamente graças a essa circunstância de América Latina que nasce um pensamento libertador que desvele as relações de opressão e dominação, é denúncia e anúncio. Como Paulo Freire bem colocou, e apresento em um artigo recentemente publicado, a  denúncia  é  a  comunicação que  expõe  as  relações  de  opressão,  de  reificação,  colocando  a  nu  como  a  sociedade capitalista oprime as pessoas. O anúncio somente é possível mediante a libertação das relações de opressão pela conscientização e este anúncio é o de um novo modo de produção da existência já sem as amarras da opressão. 

Denunciar as relações de opressão é anunciar a presença do outro, desterrado, condenado, é o outro do outro, o alheio do alheio. Em outras palavras, o outro, europeu, coloniza as terras, dociliza os corpos, domestica as mentes, é o alheio em terras “de ninguém”, em terras sem história porque terras de promessa e de futuro, que subjuga. Neste sentido é que o pensamento latino-americano também se compõe dos valores, da mitologia, do conhecimento dos negros escravizados, traficados, espoliados, favorecendo a construção de um modo de pensar que se caracteriza como integração, unidade, em oposição ao pensamento estanque e moderno da Europa que opera na esfera da manutenção “da colonialidade do imaginário, individual e coletivo, pela qual cria-se um pensamento tornado hegemônico para que as ações sejam homogêneas, controladas, submetidas às relações de opressão para a manutenção de uma ordem ‘natural’ das relações intersubjetivas” (Marcondes, 2021, p. 93).

Pensamento afrodiaspórico, Filosofia da Ancestralidade e Filosofia Latino-americana somente poderiam mesmo desembocar numa Filosofia da Libertação pela qual se busca a superação das relações geográficas para encontrar as relações entre pessoas subalternizadas, jogadas num sentimento de inferioridade, mantidas como más-cópias do europeu e do norte-americano; libertação como processo histórico e contínuo de superação das relações de opressão, principalmente aquelas oriundas do colonialismo, como bem coloca Quijano (1992,   p.   11): “estabeleceu-se uma relação de dominação política, social e cultural direta dos europeus sobre os conquistados de todos os continentes. Essa dominação é conhecida como colonialismo”.

A filosofia latino-americana, em chave decolonial, faz a crítica ao pensamento hegemônico e compreende que os processos de libertação são perpassados pela tomada de consciência da temporalidade humana e das circunstâncias nas quais os seres humanos se encontram, sendo que libertação e emancipação são em relação às diferentes formas de tutela que oprimem e manipulam em favor de centros de poder. Esses centros de poder submentem as singularidades a processos ideológicos de dominação dos modos de pensar, de ser e de sentir.

Libertação é fruto de resistência, de tomada de consciência, de diálogo com e nas circunstâncias. A Filosofia da Libertação é resistência explícita ao domínio ideológico que naturaliza as relações de opressão. No processo de libertação é que se constrói o protagonismo dos que sofreram e sofrem silenciamento, invisibilização, encobrimento e as relações horizontalizadas de diálogo intercultural com vistas à superação da racialização e do racismo, do sexismo e em prol de uma vida digna de ser vivida por toas as pessoas, sem violência, sem exclusão, sem genocídio, sem epistemicídio.

 

Referências bibliográficas

DUSSEL, Enrique. 1492: O Encobrimento do Outro - A Origem do Mito da Modernidade. Conferências de Frankfurt. Petrópolis: Vozes Editora, 1993.

MARCONDES, Ofélia M. Paulo Freire: panorama histórico-filosófico. Revista Cactácea. Registro, v. 02, n. 05, p. 16-29, 2022.

MARCONDES, O. M. . (2022). SULEANDO O PENSAMENTO LATINO-AMERICANO EM BUSCA DA DECOLONIALIDADE, DO DIÁLOGO INTERCULTURAL E DE UMA EDUCAÇÃO EMANCIPADORA. Razão E Fé, 23(2). Recuperado de https://www.rle.ucpel.tche.br/rrf/article/view/3174.

MIGNOLO, W. Os esplendores e as misérias da “ciência”: colonialidade, geopolítica do conhecimento e pluri-versalidade epistêmica. In: SANTOS, B. de S. Conhecimento prudente para uma vida decente. São Paulo: Cortês, 2006.

ZEA, Leopoldo. Em torno a uma filosofía americana. México: El Colégio de México, 1945.


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