Formação docente e ensino de filosofia em questão: razões para resistência

Deodato Ferreira da Costa

Prof. UFAM/PROF-FILO

Pedro Rodolfo Fernandes da Silva

Prof. UFAM/PROF-FILO

Valcicléia Pereira da Costa

Profa. UFAM/PROF-FILO

05/10/2021 • Coluna ANPOF

Atualmente a comunidade filosófica encontra-se em estado de mobilização devido ao cenário atual de implantação de uma política educacional com a finalidade de fornecer as diretrizes para melhorar a qualidade do ensino médio em nível nacional. A despeito da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) preconizar a adoção de “princípios universais” (éticos, direitos humanos, justiça social e sustentabilidade ambiental) necessários à interação e à atuação docente, e contemplar preceitos inovadores ao processo do ensinar e aprender (educação integral, interdisciplinaridade), nem todos os agentes que atuam direta e indiretamente com a docência sentem-se representados, notadamente devido à ausência de um diagnóstico que expresse e concatene a diversidade e pluralidade da realidade brasileira. Nesse cenário predominam incertezas e dúvidas quanto à presença de algumas áreas do saber, dentre eles a filosofia, apesar do reconhecimento de sua importância e de sua presença no Brasil desde o Período Colonial, à época sob a direção do sistema educacional jesuíta. Assim, rememorando um pouco da história, sua presença começou a enfrentar oscilações primeiro com a reforma de Marquês de Pombal, depois com a independência do Brasil e, entre uma e outra política educacional, ainda persistem até os nossos dias.

A presença dos saberes na política educacional nacional sempre esteve atrelada ao modelo educacional adotado pelos governos, o que incide sobre quais saberes estarão presentes nas escolas brasileiras sob a forma de disciplina. A filosofia consta entre os saberes considerados importantes para a formação de um pensar crítico, reflexivo e autônomo, mas nem sempre bem-vinda devido aos seus efeitos críticos e de esclarecimentos sobre formas de organização e atuação governamental, atreladas a um sistema econômico que não valoriza a pessoa humana como deveria, o que incide na valorização dos saberes voltados para o desenvolvimento e o crescimento do mercado, quantitativos quanto ao lucro desmesurado, em detrimento daqueles voltados à formação integral da pessoa, que interrogam o status quo da organização sócio-política e educacional,  dos qualitativos quanto ao bem comum e à dignidade humana.

A mobilização atual pela filosofia e seu ensino, na Educação Básica - Ensino Médio, não pode ser realizada de forma isolada, precisa e deve ser efetivada através da união de forças entre as diferentes instituições de ensino (Educação Básica e Superior), entre as instituições e a comunidade em geral. Também não pode ser condicionada por concepções filosófico-pedagógicas consideradas hegemônicas em detrimento das outras, o que comprometeria a própria natureza reflexiva da filosofia, aberta à investigação sobre todas as coisas e sobre si mesma, incluindo a sua própria atuação, seu ensino, seja na universidade, seja nas escolas.

Por sua própria natureza, a filosofia é plural e diversa, reúne/integra diferentes concepções e correntes filosóficas, o que dificulta a atuação dos professores do ensino médio quanto à busca de repostas a duas questões recorrentes: a primeira, quanto ao significado da filosofia e a segunda quanto a sua utilidade. Portanto, a mobilização também precisa considerar a pluralidade e a diversidade dos diferentes segmentos envolvidos na atuação da filosofia e do filosofar: professores(as) que atuam nas instituições formadoras; professores(as) que atuam com jovens iniciantes no pensamento filosófico; licenciandos(as) em formação para atuar em instituições escolares do nível médio; alunos(as) do ensino médio, jovens em sua maioria que já ouviram algum comentário sobre a filosofia (elogioso ou depreciativo).

As diretrizes nacionais recomendam que os cursos formativos procurem fornecer aos seus alunos uma sólida formação filosófica; que procurem concatenar teoria e prática em todas as suas disciplinas (filosóficas e pedagógicas), o que implica no conhecimento da situação real da filosofia e seu ensino nas escolas básicas e superiores. Infelizmente, nem sempre as diretrizes educacionais são conhecidas e atendidas em sua totalidade ou parcialidade, nem sempre os agentes que atuam com a filosofia estão atentos aos problemas gerados pela adoção de políticas educacionais que não obedecem a natureza dos saberes, nem sempre os agentes aplicam os princípios (ético, estético, epistemológico) preconizados para a formação e atuação filosóficas.

Daí, a necessidade de manter um diálogo constante na reflexão e na busca coletiva de caminhos para sair do atual cenário de incertezas quanto à presença da filosofia e seu ensino em nível médio, com destaque na própria atuação formativa dos cursos de filosofia (graduação e pós-graduação). No processo de discussão algumas questões precisam ser consideradas: Será que as instituições formadoras, que ofertam curso de filosofia, realmente preparam os(as) licenciandos(as) para a realidade escolar em nível médio?  Será que todos os professores formadores conhecem a realidade de atuação dos seus egressos? Há diálogo entre as instituições formadoras em filosofia com as instituições escolares do ensino médio? Se sim, como ocorre esse diálogo (unilateral, bilateral ou multilateral)?

A mediação do diálogo aqui propugnada, como elemento metodológico-epistemológico, para encontrar caminhos que efetivamente contribuam para a melhoria da formação e atuação da filosofia e seu ensino, já não nos é estranha. Por ela as diferenças, as alteridades se encontram para definir os aportes e os rumos possíveis e passíveis de serem integrados frentes aos conflitos e impasses ou dificuldades que parecem insolúveis e de difícil resolução prática. A título de exemplo, lembramos o diálogos entre os professores da Educação Básica com os professores das universidades que resultou na criação de um programa de pós-graduação para dar continuidade à qualificação docente em filosofia e seu ensino em nível médio. O Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO) é política pública presente em 16 universidades, e tem a finalidade de contribuir com a formação docente em estreita correspondência com a rica e complexa realidade brasileira vivenciada nas cinco regiões do país: Norte, Nordeste, Centro oeste, Sul e Sudeste.

Portanto, mediação dialógica, reflexão crítica e ação prudente, estratégica e cooperativa constituem condições sem as quais não se pode fazer frente aos tempos de ataques às Ciências Humanas e Sociais; de desvalorização das artes, da cultura e de suas experiências sensíveis; de tentativas de golpes e retrocessos na democracia e nas políticas públicas em todos os âmbitos e esferas; da implantação do “novo ensino médio” pela Lei 13.415 repleta de elementos estranhos à singularidade da realidade brasileira; da homologação e imposição da Resolução CNE/CP 2/2019 que, contrariamente ao diz, precariza os cursos de licenciatura exercendo maior controle pedagógico sobre a formação inicial e continuada em detrimento da autonomia dos cursos, além de implantar, sub-repticiamente, uma concepção tecnocrática cuja lógica empresarial e privatista beneficia o mercado como lugar último para onde deve se dirigir toda educação. 

Enfim, nesses tempos, cujo cenário dramático de desestruturação institucional e ausência de um claro projeto de país calcado no bom senso do estado democrático de direito, a filosofia e seu ensino parecem alcançar, por estímulo e caráter próprios de sua natureza, a clareza de que, ao contrário do que se prega e se pretende impor, mais que nunca tem papel decisivo na configuração, ou mesmo na reconfiguração, da realidade que ora sofre, de assalto, os desmandos e truculências da ignorância dos “engenheiros do caos” que, na disputa e no afã do poder, não respeitam nem vida nem dignidade humanas, e submetem ou tentam submeter, a seus caprichos, o espírito de racionalidade civilizada presente nas instituições, em especial nas instituições da educação. Lutar contra essa situação caótica, resistir à mordaça e à cultura do silêncio pelas armas da reflexão crítica e autônoma, parece ser um recurso própria da filosofia, cuja experiência, ao longo de sua história, a qualifica para o enfrentamento.