Giannotti, 'a USP' e a filosofia brasileira (A propósito dos 40 anos da Anpof)

José Crisóstomo de Souza

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Contemporânea da UFBA

15/12/2023 • Coluna ANPOF

Meu primeiro contato com a “filosofia da USP” deu-se nos idos de1969, quando sua pós-graduação, a primeira do País, nem credenciada estava. Eu andava pela graduação da UFBA quando aqui aportaram Giannotti e Porchat, trazendo a boa-nova da formação em filosofia como “leitura interna”, “técnica”, da obra do grande filósofo histórico-canônico. Daqui levaram dois recém-graduados promissores, para se formarem no novo método/ideário, um dos quais meu irmão Vítor, que nunca esperou tamanha ascensão.

Adiante, entenderíamos essa visita como uma extensão da missão francesa que implantou a “filosofia da USP”, Giannotti e Porchat como pais fundadores nacionais que estudaram na França com Guéroult e Goldschmidt, autor de “Tempo Lógico e Tempo Histórico na Interpretação dos Sistemas Filosóficos”, que pode ser tomado como epítome da nova receita, de filosofia como história da filosofia, filosofia sempiterna, exemplarmente filosofia de sistema.

Os professores mencionados pelo mano, todos admiráveis, incluíam ainda Marilena Chauí, Gilda de Mello e Bento Prado. “O pessoal é de esquerda, mas não propriamente marxista, antes marxólogo”, me dizia Vítor, que, orientado por Marilena,  escolheu estudar Nietzsche, um filósofo que, sob a Ditadura, poderia cumprir papel de Marx, essa era uma ideia, como de certo modo também poderiam outros expoentes da filosofia europeia, em especial alemã, a montante e a jusante do autor do Capital. Afinal, Marx seria a realização, no mundo, da tradição filosófica (ocidental) inteira, não sua supressão.

Desde então, fui-me inteirando da “filosofia da USP”, do perfil de seus representantes, de seu modelo de trabalho, da sua discussão, mais havida do que assumida. Mais tarde, pude eu mesmo fazer pós-graduação em São Paulo, entre Unicamp e USP, começando em 1983, depois do longo interregno em que fui enfrentar a Ditadura, pro domo mea mesmo. Entre “prática (democrático-popular)” e “teoria (não-acadêmica)”, foi uma boa escola, num período em que mesmo assim participei da pioneira Sociedade de Estudos e Atividades Filosóficos, com Chasin, Anchieta, Pegoraro e Marilena, de intenção, digamos, menos “metodológica”.

Daquela primeira visita de Giannotti, guardei sua metáfora, quase mística, pro novo método: “Fundir-se com o filósofo estudado, a ponto de vesti-lo como sua pele”, o que envolveria, depois, o desafio de “arrancá-la”, para finalmente fazer filosofia. Uma verdadeira ascese, da qual fazia parte não perguntar pela verdade material do filósofo, não “achar” nada por si mesmo, antes do passo seguinte. Uma metáfora que para mim antecipa o dilema com que se depararia depois nossa comunidade filosófica.

Matriculado na Unicamp, cuja modelo de seleção se afastava mais daquilo que Safatle criticou como “filiação” (Col. Anpof, 19/10/16), comecei minha experiência filosófica paulista por uma visita a Giannotti, na qual ele generosamente me mostrou o manuscrito de seu ambicioso Trabalho e Reflexão, ponderando, diante de minha expressão embasbacada, que “não são só filósofos europeus que podem escrever difícil.” Por coincidência, naquele mesmo ano, sob liderança de Giannotti, criava-se a Anpof, que ele primeiro presidiu, e começavam seus memoráveis encontros, que pude acompanhar por décadas.

Junto com a Anpof, começava a expansão nacional da pós-graduação em filosofia, “a partir de um núcleo centralizado”, o que “conferiu aos primeiros programas ascendência intelectual e institucional sobre os demais” (Vinícius, Coluna de  27/07/23). Nesse núcleo estava também, p. ex., o RGS, que, entretanto, mais diretamente alemão, mostrava-se menos filosoficamente inibido e sem o mesmo espírito missionário paulista. Foi uma expansão, em todo caso, marcada por “nossa diferença”, “nosso método”: a “ênfase na leitura intensa das obras” (para mim mais apologética do que crítico-apropriadora) voltada para “identificar suas articulações internas” (idem).

Disso resultariam a orientação de monografias “à la grand thèse francesa” (Giannotti, “Depoimento”, 1999), que deram conta dos filósofos canonizados, e a valiosa “consolidação de um léxico filosófico, por meio de traduções cuidadas”, o que supostamente representaria uma “ruptura” com nossos “bacharelismo e clericalismo” (idem), também com a história panorâmica da filosofia (na qual voltamos a cair), e com tudo que fosse escrito originalmente em português.

Por um pouco mais de contexto: tratou-se de uma expansão que se opunha 1) à direita, ao conservador Instituto Brasileiro de Filosofia, de Miguel Reale, ligado em Kant e pensamento brasileiro, e 2) à esquerda, à filosofia do ISEB, fechado pela Ditadura, mais politicamente relevante, supostamente menos “científica” e “classista”, embora igualmente envolvida com Marx, Hegel, fenomenologia etc. Nesse quadro, o uspiano “Seminário do Capital”, Giannotti e FHC à frente, impressionaria nossos colegas das humanas por sua superior “tecnicidade” e contribuiria intelectualmente para a constituição, no País, da nova esquerda “social-democrata”, PT/PSDB.

Em São Paulo, entre Unicamp e USP, conheci o melhor do novo “método/ideário”, que, nas suas variações, até oposições, estava ali bem representado, junto com seu debate de anos seguintes. Joguei laboriosamente o jogo, com enorme proveito, para tirar meu atraso acadêmico, em segredo correndo atrás do doutorado direto, que deu certo. Tive o privilégio de estudar com Salinas, Brum Torres, Monzani, Fausto Castilho, Carlos Alberto, Paulo Arantes, Michel Debrun, Marcos Müller (meu querido orientador); os 4 últimos, mais Cirne Lima, compondo minha banca, de uma tese em que procurei (500 páginas, 6 línguas) burlar o lado “etapista-internista” do método, nela compreendendo muito texto, mas também interlocução, crítica e um dissimulado posicionamento próprio.

Pelas décadas seguintes, essa “filosofia da USP”, além de erudita e leitora, ensaiaria ficar também mais interessante, questionadora, autônoma. Porchat anunciou que queria fazer filosofia, temática e destranscendentalizada, não mais história goldschimidtiana, e trataria de treinar seus alunos em argumentar e elaborar sobre questões e temas. Marilena Chauí, na prática, fez filosofia política democrática, contemporânea, não-sempiterna. Carlos Alberto empurrou Goldschmidt, seu “passado como presente”, pro lado da “história stultitiae”. Paulo Arantes expôs, como filosofia de comentário, seu “departamento francês de ultramar.” Ricardo Terra sugeriu chegar-se mais ao presente pela consideração das recepções do filósofo histórico comentado. E Ricardo Musse entendeu que nossos filósofos acadêmicos mais “excelentes” exibiam uma competência de simples graduação, quando interpelados sobre algo temático.

Tudo isso, entretanto, pareceu seguido de recuos à autoridade do monádico Autor sempiterno, inquestionado, que pode também ser Marx, naturalmente; enquanto Giannotti, porém, ia bravamente adiante, com seu próprio questionamento, radical, do “método uspiano”. Em 1999 (“Depoimento”), nosso filósofo n.1 desacreditava da redução do filosófico a “disciplina do texto” e “alienação no Autor”, declarava que “o departamento [da USP] se esgotou”, que “esse pensamento técnico se transformou num engessamento do pensar”, e sugeria a seus alunos que “procurassem o [antes execrado] ensaísmo” e “abandonassem a grand thèse francesa”. Depois disso, finalmente reconheceu Vilém Flusser como filósofo, o que muito antes fizera o pessoal do IBF, do qual, entendia agora, “tínhamos uma visão chapada”; o que confirma minha desconfiança de que com aquele ideário não lograríamos reconhecer um filósofo se víssemos um, quanto conseguiríamos menos produzi-lo.

O mais relevante, entretanto, é que ninguém tentou como Giannotti desenvolver um paradigma filosófico próprio, no caso, por uma suposta correção/ atualização lógico-ontológica de Marx, mesmo tendo começado por “estudá-lo como Guéroult comentou Descartes” (Lebrun). Giannotti era lógico (transcendental), e seu exame crítico da dialética de Marx deveria elevá-lo a ápices de dificuldade canônico-alemãs, Heidegger por fim, e cobrar o princípio de que uma boa filosofia deve corresponder à mais avançada lógica do seu tempo, Wittgenstein por fim. Nesse percurso, ele acompanhará, em chave complicada, a conhecida saída do paradigma do sujeito, e, veladamente, a nova inclinação pragmatizante  analítico-continental.

Ao mesmo tempo, ele deixa de entender, por ex., a 1ª tese “ad Feuerbach”, de Marx, que traduziu ao contrário, e escapar o sentido da famosa 6ª tese, que procurou esclarecer por uma despropositada complicação lógica, enquanto plausivelmente atribuía as falhas da sua tradução do Tractatus, de Wittigenstein ao fato de “não conhecer o panorama em que o autor estava inserido,” coisa que nenhuma “leitura interna” lhe daria. Ao final, ainda enredado ingenuamente com fetichismo, alienação e ilusão necessária, escapa-lhe a verdadeira dimensão normativa da dialética de Marx, donde a possiblidade de uma recuperação efetivamente destranscendentalizante, não-fundacionista, de seu materialismo prático, com conclusões políticas menos singelas.

Diante desse panorama, me parece que, genericamente falando, os problemas de nossa filosofia, dado aquele dilema metodológico originário, ainda estão longe de serem os mesmos das comunidades  filosóficas que fazem filosofia. Não surpreende que, depois de tudo, não tenhamos novos filósofos como Jaeggi, Charles Taylor, Descombes, Linda Alcoff ou Timothy Williamson. Genericamente, ainda exibimos, agora diante do desafio de rasas “variantes de proselitismo contemporâneo” de ultramar, como falso “segundo passo”, um déficit de autonomia de pensamento e de disposição argumentativa, no qual aparentemente nos formamos. De novo, em muitos casos, a fuga da consideração crítica dos autores importados, e o receito de filosofar sobre temas e problemas, apenas reproduz, agora de modo supostamente não-eurocêntrico, anti-patriarcal, não-ocidental, étnico, nosso Magistri dixerunt e nosso tradicionalismo costumeiros.

Apesar disso, ao fim e ao cabo, ainda temos, sim, Giannotti, para emular, tanto por sua – questionável que seja - construção filosófica pós-marxiana, quanto por sua disposição (auto)crítica quanto a “método”, possivelmente correlatas. Melhor ainda, temos Marx, com o lugar singular que tem entre nós, para, mexendo finalmente em seus declarados Leitfäden, elaborar uma melhor, mais destranscendentalizada, “filosofia crítica”, para nosso tempo, circunstância e práticas. Faz alguns anos nossa quarentona Anpof propôs à Comunidade Filosófica Brasileira o desafio de finalmente alcançar sua maioridade filosófica, por um esforço nacional de autonomia e atualidade. Com efeito, para tanto, uma comunidade filosófica de investigação e elaboração, plural, democrática, debatedora, estudiosa e (auto)crítica, pode ser o que mais importa. 


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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José Crisóstomo de Souza

Professor Titular do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Contemporânea da UFBA

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