Internacionalização na pesquisa acadêmica ? Precisamos discutir que internacionalização queremos (1)
03/12/2020 • Coluna ANPOF
“Há 34 anos (2) atrás quando entrei no curso de filosofia da UFRJ, a primeira coisa que os colegas me falaram era que tinha que ler os filósofos na sua língua original. Como eu havia começado a estudar Immanuel Kant, o natural fosse que me matriculasse no curso de alemão. No mestrado, regularmente em encontros nacionais de filosofia, a primeira pergunta que me faziam era, qual o filósofo que eu estudava. Como trabalhava com a metafísica de Aristóteles, estava com a ‘credencial’ de filósofa séria. Mais tarde consegui bolsa integral para fazer doutorado na Alemanha sobre o conceito de substância em Aristóteles. Será que teria conseguido a mesma bolsa se ‘o meu autor’ fosse Maria Lugones ou Severino Ngoenha e meu destino Buenos Aires ou Maputo? Muito provavelmente não.
Hoje, olhando minha trajetória acadêmica, percebo que a universidade brasileira, em particular o curso de filosofia, vive sob um permanente complexo de inferioridade. Ensina-se aos jovens estudantes que para validarem seu pensamento precisam estudar a história da filosofia ocidental. A filosofia brasileira passa a ser uma caixa de ressonância do pensamento exógeno europeu, como bem definiu o filósofo moçambicano Severino Ngoenha. Na minha graduação na UFRJ, havia apenas uma professora que ministrava a disciplina ‘filosofia oriental’. Seu curso era desprestigiado, infelizmente. Fiz com ela uma ótima leitura do Bhagavad-Gita. Sem negar o valor do estudo da história da filosofia ocidental, está claro que nossos currículos padecem de reducionismo ocidental, eurocentrado. Onde estão os pensadores e pensadoras não ocidentais, ou pelo menos não europeus e norte-americanos? O horizonte filosófico é muito mais largo do que os faz crer nossa academia.”
“Ao tratar do tema internacionalização recordo (3) quando fiz meu doutorado sanduíche na University of Oxford, universidade de excelência internacional mais que reconhecida. Quando fui para lá pretendia ampliar meus horizontes, praticar a fluência em inglês e também construir relações de intercambio filosófico, afinal me sentia muito só academicamente no Brasil. Em 2006 quando apliquei projeto sobre o estudo das emoções era uma das únicas, senão a única pesquisadora sobre o tema no Brasil, ao menos tratando-se do estudo contemporâneo das emoções a partir dos estudos em filosofia da mente. Quando cheguei lá e todo o tempo que passei posso assegurar que até hoje foi uma das experiências mais incríveis viver em um ambiente acadêmico de fato vivo, onde se discutia questões e problemas que nos afetam atualmente. Estava apenas em uma cidade pequena da velha Inglaterra, porém o mundo estava circulando por ali e tive a oportunidade de ouvir de perto e perguntar diretamente aos filósofos mais ilustres e vívidos o que eles pensavam e como estavam construindo seus argumentos para "refletir" sobre problemas que os implicam histórico e socialmente no "tempo de agora". Assim, nesse sentido a tal da internacionalização, ao menos o modo pelo qual até hoje a internacionalização é estimulada no âmbito da pós-graduação no Brasil, aconteceu. Porém, algo me chamou a atenção àquela época, a limitação metodológica que tinha em relação aos meus colegas e também ao não saber como responder quando outros pesquisadores tinham interesse em conhecer mais minha perspectiva das emoções, principalmente a partir dos problemas situados no contexto brasileiro.”
Há filósofos acadêmicos que afirmam que não temos que resolver nenhum problema local e que a filosofia é universal. Será mesmo? A concepção universalista etnocentrada de ser humano em nada se parece com a compreensão do ser humano desde uma perspectiva africana ou ameríndia. Por que então a interpretação européia individualista é a preponderante? Tudo isso leva a crer que a chamada defesa da internacionalização nada mais é do que uma estratégia de desvio de mecanismos realmente críticos de análise sobre os problemas do tempo presente que a filosofia pode produzir. Toda a potência da troca com as/os intelectuais africanos, asiáticos e latino americanos é cortada pela raiz na medida em que somente financiamos pesquisas que versem sobre algum autor europeu ou norte americano. A filosofia hoje é sim uma ferramenta útil para refletir e propor saídas para problemas específicos da sociedade brasileira e na medida em que os problemas sãos específicos requerem a formulação de um vocabulário filosófico também particular.
Certamente precisaremos passar por uma reforma curricular e metodológica se quisermos que as futuras filósofas e os futuros filósofos desse país estejam mais engajados em uma reflexão sobre nossos problemas sociais, culturais, éticos e políticos. Se a filosofia é seu tempo em pensamento, como dizia Hegel, em que medida a filosofia brasileira está sendo suficientemente filosófica se seus referenciais teóricos para pensar a realidade são todos exógenos ao país e à região? Pode um filósofo alemão, português ou italiano conhecer as dimensões éticas, políticas e epistemológicas de um país como o nosso marcado por um passado colonial e por um presente autoritário e violento?
Sem dúvida aprendemos muito ao fazer um doutorado sanduíche ou pleno financiado pelo governo e povo brasileiro. Entretanto, há temas e áreas que parecem exigir não apenas a utilização de teorias europeias ou norte americanas, mas que preferencialmente sejamos capazes de desenvolver teorias próprias que de fato contemplem nossas especificidades políticas, culturais e sociais.
Quando vamos a outros países queremos conhecer o modo que os pesquisadores daquele país trabalham, queremos debater questões que nos inquietam, mas nem sempre queremos reproduzi-los. Sair da menoridade intelectual é primordial. Nunca alcançamos o modelo que tentamos reproduzir. Nunca seremos europeus, mas gastamos dinheiro para que o pesquisador brasileiro vá aprender como se faz nos outros países para depois ser selecionado em um concurso de Universidade Brasileira e dar continuidade a essa cadeia sem fim de pseudo-reprodução.
A originalidade não conta. Nossas Universidades Brasileiras são nossos centros de pesquisa, mas caso você não saiba reproduzir bem os clássicos ocidentocêntricos, dificilmente será selecionado em um concurso. Qual a razão de selecionarmos nossos professores universitários por sua capacidade reprodutiva ocidentocêntrica em praticamente todos os concursos? É normal que tenhamos algumas disciplinas de História da Filosofia, mas se fizermos um levantamento elas são praticamente 90% do currículo mesmo em áreas consideradas mais diversas como a ética. Parece fazer sentido termos História da Filosofia nos cursos de graduação, mas são necessárias tantas teses que são reproduções de comentários sobre um filósofo europeu ou norte americano?
Diante do cenário apresentado nos parece que o modo como a internacionalização acadêmica é compreendida no Brasil apenas reforça a crônica ‘colonização’ do saber, do poder e do ser. Uma multiplicidade de saberes que não respondem às modalidades de produção de saberes eurocêntricos é deixada de lado. Assim, se queremos de fato mudar esse cenário de desvalorização das ciências humanas de maneira geral, e da filosofia, em particular, precisamos rever o que entendemos por internacionalização, pois para que os grupos subalternizados deixem de ser exterminados e invisibilizados precisamos reverter o silenciamento de suas vozes, suas epistemes, seus saberes. Descolonizemo-nos.
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1- Este texto foi escrito por Profa. Dra. Susana de Castro Amaral Vieira e Caroline Izidoro Marim cuja experiências marcadamente coloniais tem mobilizado as pesquisas no Grupo de Pesquisa Descoloniais Carolina Maria de Jesus (UFRJ) com o propósito de rever as diferentes colonizações que excluem epistemes, raças e gêneros da pesquisa filosófica brasileira. As duas experiências foram mescladas na produção desse texto.
2- Depoimento de Susana de Castro. Atualmente diretora do IFCS/UFRJ, Co-Coordenadora do Grupo de Pesquisa Decoloniais Carolina Maria de Jesus, Coordenadora do Projeto de Extensão Temas Filosóficas da Literatura, Coordenadora do Laboratório Antígona de Filosofia e Gênero.
3- Depoimento Caroline Marim. Professora colaboradora PUCRS. Pós-Doutoranda PNPD/CAPES/PUCRS. Coordenadora do Grupo de Pesquisa Epistemologias, Narrativas e Políticas Afetivas Feministas – CNPq/PUCRS. Doutora em Filosofia pela UFRJ. Integrante do Grupo de Pesquisa Decoloniais Carolina Maria de Jesus e do GT Gênero e Filosofia (Anpof).