Introdução à Metafísica do Monismo de Triplo Aspecto
Alfredo Pereira Jr.
Professor do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UNESP
16/11/2023 • Coluna ANPOF
Resumo: Proponho que o estudo das Formas aristotélicas possa ser feito tanto na perspectiva científica, no âmbito da Biofísica, compondo a ciência intitulada Sentiômica, quanto na perspectiva das experiências de primeira pessoa, compondo a metafísica das qualidades, intitulada Qualiômica. Esta última seria uma área não científica, própria à Metafísica Pós-Moderna, que resgata a abordagem original de Aristóteles, investigando a unidade do Ser no seio da diversidade dos entes. O desvelamento do Ser e a constituição do sentido vital se fariam na experiência pessoal dos 'qualia' (conforme sugerido em Heidegger, 1956), o que possibilita o trânsito das Filosofias da Mente e da Consciência atuais para a Metafísica.
Minhas pesquisas em Filosofia da Neurociência deram origem ao Monismo de Triplo Aspecto (MTA), uma Ontologia Interdisciplinar em que identifiquei, a partir da experiência pessoal (na perspectiva de primeira pessoa; Nagel, 1974), combinada com uma revisão extensa de resultados científicos (na perspectiva de terceira pessoa), os três aspectos fundamentais e conjuntamente necessários para a experiência consciente: a materialidade do corpo vivo, os padrões dinâmicos de informação que sinalizam eventos do mundo, e a sentiência (capacidade de sentir, gerando sensações, estados afetivos, emoções e sentido da vida), pela qual as pessoas respondem aos eventos vivenciados e direcionam seu comportamento (Pereira Jr., 2015; 2021a,b). A busca da Unidade na Diversidade conduz à Metafísica do MTA, enfocando o Ser que gera os três aspectos e se efetiva nas ações sociais das consciências encarnadas e situadas.
O caminho seguido na Filosofia da Neurociência me conduziu a investigar os universais espécie-específicos, que são as formas biológicas que possibilitam a vida e a capacidade de sentir, historicamente referidas na origem da própria ciência biológica a partir dos estudos morfológicos empíricos de Aristóteles. Assim como em Yannaras (2004) - se estabeleceu uma conexão entre as pesquisas em Biologia com a Metafísica na era Pós-Moderna (que aqui abreviarei como MPM), pois os chamados "correlatos neurais da consciência" seriam padrões dinâmicos do sistema nervoso, ou seja, Formas aristotélicas, compondo o Abrangente (do grego Katholou, vide https://www.britannica.com/topic/katholou): o Ser que constitui o princípio qualitativo de todas as substâncias hilemórficas.
Segundo Yannaras, "Uma interpretação e entendimento metafísicos do mundo não são acessíveis cientificamente, nem excluem a ciência. Trata-se de um novo modo de abordagem cognitiva do mundo, uma transição de uma (tanto quanto possível) neutra observação do mundo para uma relação pessoal com o mundo" (Yannaras, 2004, p. 114, tradução minha da versão em inglês). A diferença da MPM em relação a Aristóteles seria esta "relação pessoal", que se identifica com a "perspectiva de primeira pessoa", ao passo que em Aristóteles a busca pelo primeiro princípio e/ou pelas causas das mudanças se faria por meio de um processo impessoal de abstração, que se aproxima do que atualmente chamamos de “perspectiva de terceira pessoa”.
O Hilemorfismo aristotélico pode ser entendido como constituindo uma Ontologia Monista de Duplo Aspecto: a Forma é o aspecto que determina a qualidade das substâncias, enquanto a Matéria estabelece sua individualidade. O terceiro aspecto, a Sentiência, não está explicitado em Aristóteles, mas está implícito na função por ele atribuída ao coração. A Unidade na Diversidade (“Ser se diz de muitas maneiras”) se faria por meio do Abrangente (Katholou), princípio que se desvela na experiência das Formas das substâncias individuais. O Primeiro Motor seria ‘Forma sem Matéria’ que direciona (estabelece uma meta) para o devir do Abrangente. Segundo Aubenque (1962), o Motor seria projetado pela consciência; seria uma imitação motivada pelo desejo de perfeição.
A confluência da Filosofia da Neurociência para a Metafísica, nos quadros do Monismo Hilemorfico aristotélico, assume a interpretação de Aubenque (1962) para o “Problema do Ser” em Aristóteles, o relacionando com o vivido no contexto da MPM, em detrimento da fundamentação em um Ser transcendente, que foi assumida na interpretação tomista. A MPM, neste contexto, consiste em um resgate da Metafísica de Aristóteles, que foi alterada pela filosofia tomista, e assim criticada no período moderno. Heidegger, ao criticar o “esquecimento do Ser” em Aristóteles, tem como alvo a interpretação tomista, e não a filosofia original aristotélica, que estava focada no Ser. As três etapas históricas da Metafísica ocidental seriam:
Primeira Etapa: Onto-Teo-Logia: Metafísica Pré-Moderna, Deus como fundamento do Ser e do Conhecer.
Segunda Etapa: Metafísica Moderna, focada na Representação do Ser, via "Princípio da Razão" (Heiddeger, 1956).
Terceira Etapa: MPM, foca na nas experiências qualitativas do Ser, na perspectiva de primeira pessoa.
O conceito de consciência aqui assumido, a partir de Aristóteles e do Monismo Reflexivo de Velmans (2008, 2009), diz respeito a uma reflexividade do Ser uno, pela qual determinados sistemas finitos, espaço-temporalmente localizados (aqui chamados de Pessoas, conceito inclui seres humanos e não humanos, ou seja, todos os sistemas que têm a capacidade de sentir o que acontece ao seu redor) se (auto-)organizam em seu seio, percebem, respondem afetivamente, reelaboram cognitivamente e guiam suas ações a partir dos próprios elementos constitutivos do Ser. A experiência consciente seria o processo do Ser refletido em si mesmo, na perspectiva de um determinado sistema espaço-temporalmente localizado. Neste contexto teórico, a percepção é um processo no qual uma Pessoa, que está no Ser, percebe outros entes que também se situam no Ser. Ao tomarmos consciência perceptiva de um objeto (por exemplo, estamos vendo uma girafa), não existe uma girafa em miniatura dentro de nosso cérebro, mas apenas um padrão de informação, que gera a percepção de uma girafa, com todas as suas propriedades qualitativas; conforme a Teoria Projetiva de Velmans (ampliada por Pereira Jr., 2019) esta "imagem mental", ao interagirmos praticamente com o ambiente, é projetada para o referente, isto é, para a girafa numenal, que se situa exteriormente ao sistema nervoso da pessoa consciente, de modo que atribuímos ao referente as qualidades da imagem mental construída no nosso sistema nervoso a partir dos sinais captados da própria girafa numenal.
A Metafísica do MTA se deriva do problema da unidade dos aspectos: qual Princípio poderia se manifestar como Matéria, Informação e Sentimento? Esta é uma investigação especulativa, na qual se procura retroceder no processo da realidade até um princípio fundante. O processo da realidade é uno, inclusive na perspectiva das ciências da natureza, nas quais experimentalmente se nota que os processos físicos são "emaranhados" (do inglês "entanglement", conceito fundamental da física quântica). Para o MTA, na formulação original, esta unidade foi concebida como a Physis aristotélica (Pereira Jr., 2013), sendo posteriormente atribuída a um estado de Ser Primitivo neutro, a Energia - com E maiúsculo (Pereira Jr. et al., 2018).
O estado de Ser Primitivo, do qual tudo se deriva, é chamado de Energia. Suas manifestações se trifurcam em 3 aspectos, Matéria, Informação e Sentiência. Da conjunção dos 3 aspectos emerge a Experiência Consciente, e das lacunas desta experiência, no caso humano, emerge o conceito de Deus como destino do processo evolutivo (Figura 1).
Figura 1: O Processo Evolutivo da Realidade.
A derivação dos 3 aspectos a partir da Energia se faz conforme os seguintes passos:
Matéria = Energia condensada, conforme Equação de Einstein
Informação = Energia distribuída no Espaço, Entropia Negativa
Sentimento = Energia distribuída no tempo, conforme determinados parâmetros de frequência, amplitude e fase (ondas psicofísicas)
Os processos biológicos não conscientes, como aqueles que compõem o metabolismo, e também os processos mentais que poderíamos chamar de "pré-conscientes", contendo os padrões dinâmicos de Energia ('pulsões') que motivam o comportamento humano, ocorrem no tecido vivo, mais especificamente no sistema nervoso, gerando os conteúdos vivenciados conscientemente.
O Vitalismo Moderno assume que a Vida se engendra por meio de uma força que atua como Causa Final, direcionando a conduta dos sistemas vivos, inclusive no plano da Ética. Contra esta possível interpretação, contraponho, no âmbito da MPM, o conceito de Auto-Organização da Vida, na qual as finalidades (e compromissos éticos, no caos da conduta humana) são emergentes, e não preexistentes, isto é, são estabelecidas pelos próprios sistemas vivos, por meio da livre interação de seus componentes mais elementares (vide Pereira Jr. et al., 2019), e não por uma força que atua sobre eles. Os três aspectos do MTA - que existem de modo mais fundamental que a vida ou a mente, pois derivam diretamente da realidade primitiva (Energia) - seriam os componentes dos processos da vida e da mente (consciente e inconsciente).
Na Metafísica do MTA, que busca o "Ser enquanto Ser", o princípio que está na origem e no fim do processo da existência humana, a Energia (com E maiúsculo) seria o Ser Primitivo no qual se geram os três aspectos, Matéria, Informação e Sentiência, sendo que, conforme proposto na ontologia do MTA, a experiência consciente seria a integração dos três aspectos em Pessoas. A relação entre o Ser e os Entes é de atualização de potencialidades, como na filosofia e ciência empírica aristotélicas, que aqui resgatamos no âmbito de uma proposta de Metafísica Pós Moderna. Deus é concebido como o destino do processo, que se efetiva se e somente se as interações entre as Pessoas ocorrer de modo harmonioso, possibilitando uma ”religação” plena dos aspectos fragmentados do Ser Uno.
Quanto à aplicação da proposta aqui apresentada, proponho a distinção entre duas áreas de estudo, correspondendo às abordagens quantitativa (a ciência intitulada Sentiômica) e qualitativa (a metafísica dos 'Qualia", chamada Qualiômica) das Formas aristotélicas (Pereira Jr. et al., 2016: Pereira Jr. e Aguiar, 2023). A Qualiômica seria uma área não científica, própria à Metafísica Pós-Moderna.
Referências
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Velmans M. (2008). Reflexive Monism. J Consciousness Studies 15(2): 5–50.
Velmans, M. (2009) Understanding Consciousness. London: Routledge.
Yannaros, C. (2004) Post-Modern Metaphysics. Translated by Norman Russell. New York: Holy Cross Orthodox Press.
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