Introdução à vida e à obra de Marco Aurélio | Especial Minicursos XX Anpof

Aldo Dinucci

Professor de Filosofia da UFES

23/07/2024 • Coluna ANPOF

O livro de Marco Aurélio pode ser identificado com o exercício estoico de exame de consciência que remonta pelo menos a Pitágoras, o qual recomendava aos seus alunos que, ao entrarem em suas casas, se indagassem sobre quais erros cometeram durante o dia e em quais ocasiões teriam agido adequadamente [1]. Também Platão recorre a essa prática de autoexame reinterpretando o preceito grego “Conhece a ti mesmo” e atribuindo a este, através do Sócrates dos Primeiros Diálogos [2], o sentido de uma investigação introspectiva [3]. Sêneca igualmente se refere a essa prática: ao lembrar que o pitagórico Séxtio [4] a seguia [5], afirma exercitá-la antes de dormir, reconsiderando os acontecimentos do  dia e avaliando se comportou-se bem ou não, bem como conjecturando sobre a melhor forma de agir no futuro em situações semelhantes [6]. Epicteto segue diretamente a prática pitagórica, citando por duas vezes a parte dos Versos Áureos, atribuídos a Pitágoras, que se referem a tal exercício [7]. 

Epicteto, que influenciou muitíssimo Marco, apresenta uma nova visão da divisão estoica dos bens, males e indiferentes por meio do que chamamos  de Teorema Ontológico, segundo o qual as coisas existentes dividem-se entre as que estão sob nosso encargo ou sob nosso poder (eph’hemin) e as que não estão sob nosso encargo ou sob nosso poder (ouk eph’hemin) [8]. As primeiras constituem nosso bem e nosso mal, como nossos juízos, assentimentos, impulsos e desejos. As segundas são todas as demais, incluindo nossos próprios corpos. A partir desta disjunção, Epicteto teoriza os três tópicos de sua filosofia que Marco toma para si [9]: o tópico do juízo, o tópico do impulso e o tópico do assentimento. Por meio do tópico do juízo, o estudante de filosofia reavalia todos os seus juízos relativos ao valor das coisas existentes seguindo o Teorema Ontológico e eliminado por princípio as paixões [10]. O tópico seguinte a ser aprendido é aquele relativo ao impulso (horme) para a ação. Esse tópico supõe um estudo das relações, para que os impulsos sejam adequados e comunitários [11]. Por fim, uma vez aprendidos os dois primeiros, o estudante de filosofia deve se voltar para o tópico do assentimento, no qual, através de estudos de lógica, de teoria do conhecimento e de exercícios práticos, aprenderá a lidar com representações violentas, aquelas que transmitem à alma humana sensações intensas de dor e prazer e que podem ser mal interpretadas como bens e males. Ao se tornar proficiente neste último tópico, o aprendiz de filosofia assegura o progresso adquirido por meio dos anteriores. 

O diário de Marco cobre essas três disciplinas epictetianas. Exercitando-se no primeiro tópico, nosso imperador reavalia constantemente o valor das coisas tomando como parâmetro o Teorema Ontológico. Em um exercício relacionado ao segundo tópico, reforça com frequência a sua ciência do princípio socrático segundo o qual todos os humanos são fundamentalmente ignorantes e de que ninguém erra por livre e espontânea vontade, buscando se persuadir de que é preciso ser gentil com os que erram e compreender que todos os humanos partilham o lote comum da efemeridade, da fragilidade e da insciência [12].  Em um esforço relacionado ao terceiro tópico, para se livrar de falsas imagens das coisas e adquirir concepções corretas sobre elas, Marco realiza, por diversas vezes, o exercício de contemplar como as coisas são na realidade, afastando de si as ilusões e as tentações [13]. 

Além disso, há, em Marco, um forte sentido de gratidão pela vida [14]. Essa gratidão pode ser vista como resultado da compreensão do Teorema Ontológico, da percepção de que a divindade concedeu a cada humano uma capacidade de escolha (prohairesis) não-constrangida e do entendimento de que todo movimento cósmico é providencial. 

Marco recorre também, com frequência, ao exercício ascético comumente chamado de Visão do Alto, pelo qual o humano, seja efetivamente diante de uma visão panorâmica, seja alçando-se imaginariamente ao firmamento, se torna capaz de ver as coisas tomadas em conjunto, discernindo a pequenez dos assuntos humanos em comparação com a enormidade do Cosmos. 

Marco foi um outsider em termos morais em seu tempo. Enquanto muitos políticos e filósofos estoicos pagaram com a vida para lutar contra a tirania de certos imperadores, Marco, profundamente inspirado pela filosofia de Epicteto, queria se manter como um bom imperador, como um monarca desprovido de  qualquer caráter tirânico, razão pela qual jamais tomava decisões relativas a Roma sem antes consultar o Senado. 

Nosso Imperador tinha também a clara percepção de que seu poder não era suficiente para produzir mudanças profundas na muito imperfeita sociedade de seu tempo, como ele deixa claro na passagem seguinte: 

Marco Aurélio, Meditações, 9.29: [...] Homem, e então? Faz o que a Natureza te exige agora. Não ponhas as tuas esperanças na República de Platão, mas te satisfaz se o menor dos avanços for feito. E considera a realização deste mesmo pequeno avanço como não pouca coisa. Como são ordinários esses homúnculos tanto em assuntos políticos quanto nas ações que pensam realizar de modo filosófico. Estão cheios de catarro nos narizes. Pois quem mudará a opinião dos humanos? E, sem a transformação das opiniões, que outra coisa há senão a servidão dos que se lamentam e o engano dos que fingem assentir? 

Marco percebe que não é capaz de modificar as crenças e concepções dos que o circundam. No máximo, sua posição como imperador faz com que simulem concordância por medo. Marco conclui que somente lhe é possível,  na melhor das hipóteses, fazer avançar um pouco a sociedade em que vive e que se iludem os que pensam o contrário, buscando instaurar utopias a ferro e fogo. É preciso, outrossim, fazer o que o dever (a Natureza) nos exige neste momento. Marco percebia mesmo certa antipatia no trato com seus companheiros, provável razão pela qual observou:

Marco Aurélio, Meditações, 10.36: Ninguém é tão próspero que não tenha à sua volta, em seu leito de morte, os que se alegram com ela. Era ele um nobre sábio? Não haverá alguém em seus últimos momentos dizendo para si: “Respiraremos, agora, livres do pedagogo? Ele não era severo com nenhum de nós, mas eu percebia que, em silêncio, nos condenava”. Essas coisas são ditas de um homem nobre. Mas, sobre nós, quantas outras coisas há pelas quais muitos irão querer se livrar de nós [...]

De fato, Marco, em seu reinado, pouca oportunidade teve para se dedicar a modificar a sociedade. Viveu tempos catastróficos, atravessando epidemias e tendo que passar boa parte de seu período como imperador no front de batalha em acampamentos militares. Daí que frequentemente diga a si mesmo para esquecer os livros: efetivamente, não tinha como lê-los [15]. 

Por este viés, se compreende por que Marco vem se tornando progressivamente popular na atualidade. Ele não é um filósofo que nos traga respostas ao modo de um moderno, nem é crítico, ácido e cínico como um pós-moderno, mas conserva em si uma doçura de sentimentos que hoje consideramos perdida, através de seu amor pela humanidade, dialogando consigo mesmo sobre seu desamparo, propondo questionamentos pelos quais torna manifestos seus temores e suas dúvidas, seus furores e suas fraquezas.  Ele, portanto, sem pretensão alguma, é capaz de nos guiar através da distopia pós-moderna em que vivemos, nos ensinando a constituir um discurso interior reflexivo, de caráter não dogmático, por meio de palavras que percebemos como cartas de um amigo que nos expõe, de coração aberto, sua própria alma, nos possibilitando nos reconciliar com o Cosmos através do humano diálogo e da amizade, nos fazendo reencontrar nosso lugar no mundo e nos livrando do terrível sentimento de despertencimento que nos assombra.

O minicurso "Introdução à vida e à obra de Marco Aurélio" será ministrado pelo professor Dr. Aldo Dinucci (UFES/GT Epicteto e Mariginália Filosófica) no XX Encontro Anpof, em Recife/PE. As inscrições estarão abertas às pessoas já inscritas no evento a partir do dia 15 de agosto.

[1] Diógenes Laércio, 8.22.

[2] São eles: Apologia, Críton, Cármides, Eutífron, Eutidemo, Hípias Menor, Íon, Laques, Protágoras e Górgias e Livro I da República.

[3] Ver Platão, Apologia 21b; Laques 187e -188c.

[4] Quinto Séxtio, o Velho, a quem Sêneca se refere muitas vezes, floresceu por volta de 50 EC e foi um filósofo romano que combinou estoicismo com pitagorismo. Ver Cartas a Lucílio, lix.7-8; lxiv.2-5; lxxiii.12-15; xcviii.13; cviii.17-18; Da Ira, ii. 36, iii. 36.

[5] Sêneca, Da Ira, 3.36.

[6] Horácio se refere também a esta prática (ver Sátiras 1.4.133-9).

[7] Epicteto, Diatribes, 3.10.2: Que o sono não caia sobre teus olhos lânguidos / Antes que tenhas esquadrinhado cada ação diária; O que foi feito errado, o que foi realizado, o que te resta por fazer; /Examina tudo, do primeiro ao último ato e, então, / Assume a responsabilidade pelo que foi feito erradamente e te regozija pelo que foi feito acertadamente. (Minha versão em português da tradução inglesa de George Long destes versos). Ver também Epicteto, Diatribes, 4.6.32. Epicteto igualmente se refere à prática da meditação diária em Diatribes 1.1.25, refletindo sobre qual resposta se deve dar ao tirano. Ver também Epicteto, Diatribes, 4.1.111; 4.4.7 (17-18).

[8]  Ver, por exemplo, Epicteto, Manual, 1; Diatribes, 1.1.

[9] Ver, por exemplo, Marco Aurélio, Meditações, 11.37.

[10]  Que, para os estoicos, são movimentos excessivos da alma (Zenão) ou a contraface do assentimento a juízos equivocados (Crisipo).

[11] Ver, por exemplo, Marco Aurélio, Meditações 5.1.

[12] Ver, por exemplo, Marco Aurélio, Meditações 2.1.

[13] Ver, por exemplo, Marco Aurélio, Meditações, 6.13.

[14]  Ver, por exemplo, Marco Aurélio, Meditações, 12.36.

[15] Ver, por exemplo, Marco Aurélio, Meditações, 2.2.

Referências:

MARCO AURÉLIO. Os escritos pessoais de Marco Aurélio. Trad. Aldo Dinucci. São Paulo: Companhia das Letras / Penguin, 2024. 

EPICTETO. Diatribes, livro I. Trad. Aldo Dinucci. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2019.

EPICTETO. Encheiridion. Trad. Aldo Dinucci e Alfredo Julien. Coimbra: Imprensa de Coimbra, 2014.

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