Josef K. sendo Josef K., como um cão!

Daniel Arruda Nascimento

Professor da Universidade Federal Fluminense e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Universidade Federal do Espírito Santo

09/06/2020 • Coluna ANPOF

Na biblioteca de Praga, encontrou-se na primavera uma folha solta que assim dizia:

“Dirigiu-se imediatamente à casa do pintor, que morava num subúrbio situado em direção completamente oposta àquela em que se encontravam os cartórios do tribunal. Era uma região mais pobre ainda, as casas mais escuras, as ruas cheias de sujeira, flutuava lenta na neve derretida. No prédio em que morava o pintor, estava aberta apenas uma folha do grande portão de entrada: nos outros, porém, havia na parte inferior da parede uma abertura de onde, exatamente quando K. se aproximava, irrompeu um líquido repulsivo, amarelo, fumegante, diante do qual algumas ratazanas se refugiaram no canal mais próximo[1]. Para chegar à casa de Titorelli, Josef K. apressou o passo por inúmeras e pequenas vias, dobrou esquinas perturbadoras, atravessou a Ponte dei Pugni e entrou em uma viela sem nome estreita e comprida. No caminho, passou por algumas pessoas que carregavam máscaras nos rostos, abaixo de olhares amedrontados e acusatórios. Pensou ver conhecidos, um contínuo que trabalhava no banco, mas não havia como ter certeza. Estava sem a sua máscara, sentia-se nu ao confrontar-se com a situação que configurava a desconhecida cidade que a pandemia havia instalado. As autoridades sanitárias estabeleceram uma duradoura quarentena por causa da dispersão do coronavírus (em um conceito, a fim de agradar aos filósofos que porventura vierem a ler esta história de amor incompreendido e fracasso inevitável: ‘distanciamento social’). Sem encostar nas paredes, K. subiu a escada no endereço indicado pelo industrial que havia atendido no banco onde ganhava o seu sustento. Não podia deixar de considerar que ter recebido aquele respeitável cliente era uma dádiva, embora o desconforto de saber que o seu segredo era comentado entre poderosos não houvesse se dissipado nem sob o impacto do vento fresco da rua.

Titorelli estava de pijamas sujo de tinta e acompanhava a transmissão de um vídeo pelo seu telefone celular, único aparelho eletrônico que existia no quarto, abarrotado de sinalizações em vermelho, quando K. bateu à porta. As acomodações não corresponderam às suas expectativas e ele questionou a si mesmo se deveria entrar ou não. Convidado pelo pintor que o olhava curioso, não teve escolha e ingressou no ambiente que não se assemelhava a um ateliê, mas que consistia em um pequeno cômodo miserável. Com roupas e materiais de pintura espalhados por todo lado e uma larga cama no meio, o quarto terminava em uma abertura, que deveria ser o banheiro, assim K. presumiu. Pela porta entreaberta de um enorme armário viu um amontoado de folhas que, forçando a vista, percebeu serem telas de pinturas usadas dos mais variados tipos. Descobriu imediatamente que Titorelli não jogava fora nada do que suas mãos houvessem produzido, tudo estava ali aguardando o momento de ser sacado e enviado diretamente para uma galeria. O líquido que vira escorrer lá fora na entrada do prédio tinha a viscosidade da tinta que pingava em excesso do material de pintura pendurado em barbantes. Aqui caíam em tigelas no chão. Ratos que certamente eram bem menores que os de fora vinham lamber as tigelas. Estes eram até menos repugnantes. Tinham uma graça correndo para os seus buracos das paredes e do assoalho de madeira.

­– Fui informado pelo industrial que você poderia me procurar, fique à vontade. Sei que você tem um processo – disse o pintor, procurando acomodar o visitante.

K. não sabia o que pensar por ser recebido com uma linguagem tão direta. Durante os últimos dias, ele havia experimentado todo tipo de sentimentos. Em momentos breves, se sentia despreocupado como um colegial que acabara de ingressar em um curso universitário com aulas on-line, em momentos que persistiam em fustigar longamente, considerava-se um senhor de setenta e oito anos, cansado de viagens, mas em plena forma intelectual. Tateou o bolso e pode tocar com a ponta dos dedos um bilhete ameaçador que recebera em um envelope naquele mesmo dia. Nele se lia: ‘todos os que defendem a liberdade são liberais e se assemelham’. Não se atreveu a retirá-lo.

Deu outra olhada ao redor. Haviam jornais colados até a metade da janela que se estendia por toda uma parede do quarto, para bloquear a entrada da luz de fora, o que impedia também a sua abertura integral. As páginas dos jornais estavam agastadas dando às folhas a impressão de serem mais velhas do que eram. Olhando distraidamente as letras e imagens distinguiu o título de uma notícia ao lado de uma foto que parecia ser do anfitrião: ‘O embuste simplório do pintor inerte’. Mais abaixo, outra manchete vociferava: ‘Titorelli arroga a si mesmo o direito de criticar direitos!’ Baixou os olhos e encontrou a ponta de um jornal ainda não fixado na janela para reforçar a barreira de luminosidade. Nele se lia: ‘Alaridos do caso em debate pretendem colocar em cheque a carreira do pintor Titorelli’. K. virou o rosto tentando disfarçar a vergonha.

– Na penumbra enxergo melhor as obscuridades que devo contornar nas telas que descortino à minha frente – disse o pintor. – Está impressionado? Tenho atrás de mim jornalistas que atuam a mando de juízes irascíveis. Irritam-se com extrema facilidade. Devo pintar o que eles querem, tensionar o pincel no ponto certo, obter como resultado a figura que está em suas cabecinhas. Veja só, outro dia um moço jovem queria que eu o pintasse como um intelectual em idade avançada, mas não ficou satisfeito quando mostrei o resultado do trabalho, ele bradava que faltavam ao quadro os elementos que denunciam se tratar o personagem de uma grande autoridade estatal. O pobre pintor aqui não sabia que ele desejava o emprego além do retrato. Com muita habilidade forcei o pincel para inserir as marcas altaneiras, mas o prejuízo já estava feito: moveu um processo contra mim. Mas esse é pequeno e não se compara ao processo maior. Esse outro processo de muitos volumes é o que me preocupa, tira o meu sono ao ponto de me causar espasmos de sinceridade.

– Então você também tem processos, era de se esperar – retrucou K. meneando a cabeça para aparentar familiaridade.

– O bilhete que você tem no bolso? Não é nada, está escrito que aquele que colocar a liberdade no topo da escala de valores será um liberal. Os críticos de arte sempre me acusaram de fazer pouca distinção entre as cores, mas afinal são os juízes que são os daltônicos que enxergam uma sociedade onde não há diferenças sociais.

K. já não prestava a atenção a tudo que o pintor falava. Estava absorto nas suas preocupações. O seu processo era bem mais difícil, tudo o levava a crer. O advogado que o havia recebido naquele mesmo dia não lhe transmitia muita segurança. Um frio na espinha o fustigava sempre que lhe ocorria que afinal sabia muito pouco sobre o processo. Empurrou os travesseiros para o lado e se sentou na ponta da cama que ficava bem no meio do quarto. Meditava frequentemente sobre a própria morte, mas isso não lhe garantia maior liberdade. Era disso que se tratava estar subjugado por um processo: era questão de vida ou morte. Mais do que a própria vida, era a imortalidade que o preocupava. Quem dera poder escrever seu nome entre os bancários filósofos por toda a eternidade! Levantou e tentou abrir a janela, mas o dispositivo que a fazia funcionar não operava bem.

– Está abafado aqui? A janela está quebrada de tanto abrir e fechar. Faço isso umas dez vezes durante a noite, para deixar o quarto na temperatura ideal. Por isso coloquei aí essa gambiarra, assim o vento não derruba. O mais importante é não deixar o pensamento congelar. Mas confesso que a quentura também me incomoda.

K. fazia movimentos bruscos na diligência nervosa em abrir a janela, que depois de algum esforço, conseguiu abrir. Pensava sem parar no seu estado excepcional de processado, mas não ousava revelar maiores detalhes para o pintor. A essa altura, ele já estava convencido de que aquele camarada de infortúnio era um untador em potencial, que a única coisa que lograria com a visita seria ser contagiado de um hediondo pessimismo.  No trabalho do banco, sempre o acusaram de aplicar esquemas já prontos na solução dos problemas apresentados pelos investidores ou de fazer uma análise tão pormenorizada dos números, que não se podia vislumbrar qualquer saída para patrimônios em bancarrota. Tudo isso ele podia tolerar. O que não poderia aceitar era um processo que o torturava tanto, um processo que havia ultrapassado o limiar que separa a humanidade da barbárie.

– De vez em quando eu desespero, outras vezes dou de ombros – disse K. recomposto da luta com a janela. – É justo ter de acatar a captura de todas as dimensões da vida apenas para preservar a vida? Por que a sobrevivência deve ser o valor a orientar toda a existência?

– Esses juízes que bancam os intelectuais são uns colonizados e insensíveis! – disparou Titorelli ajeitando algumas latas de tinta no canto do quarto.

Foi então que K. teve ganas de voltar para a cidade, onde mais tarde seria vitimado como um cão. Depois da visita, descendo a escada, K. pôs-se a se perguntar se os afetos que havia experimentado pelo pintor eram convergentes ou divergentes. Afinal, esses artistas ainda são capazes de sentir o delicioso odor da mistura das tintas novas com as tintas velhas?


[1] KAFKA, F. O processo, tradução de Modesto Carone, São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p. 140.

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Daniel Arruda Nascimento

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