Lacan entre a filosofia e a antifilosofia | Especial XX Anpof
Alexandre Starnino
Doutorando em Psychanalyse et Psychopathologie pela Ecole Doctorale d?Études psychanalytiques e em Filosofia pela Unicamp; Membro do GT Filosofia e Psicanálise da Anpof
Izabela Loner
Doutoranda em Filosofia pela Unicamp; Membra do GT Filosofia e Psicanálise da Anpof
23/08/2024 • Coluna ANPOF
Se Freud disse ter se furtado das leituras filosóficas, bem como da aproximação de sua invenção ao campo filosófico para salvaguardar sua autenticidade e cientificidade, Jacques Lacan em sua intervenção e programa de releitura da psicanálise, com o conhecido “retorno a Freud” nos anos 1950, operou uma espécie de correção de rota, colocando a linguagem no centro da teoria, mais especificamente a “linguagem atual da antropologia”, e passando pelos “mais recentes problemas da filosofia” (Lacan, 1998, p. 240). Isso nos indica, em primeiro lugar, não uma aproximação ou mobilização pontual ou indireta da filosofia em seu ensino – algo como um empréstimo conceitual específico ou de uma epistemologia inconfessa –, mas a mobilização da filosofia e de outras disciplinas na construção do próprio contorno psicanalítico, o que abriu também um diálogo tenso, plural e complexo que perdurou os trinta anos de sua transmissão.
Apesar do seu objetivo no Seminário sempre ter sido a formação de analistas e, consequentemente, a justificação do campo no qual estes atuavam, a filosofia em seus temas e problemas foi um instrumento e uma área chave para a abertura e a manutenção de seu ensino e de sua teoria que se iniciaram, por exemplo, com uma retomada da questão do sujeito, tão cara à filosofia, ainda mais em sua vertente francesa, horizonte imediato de discussão de Lacan.
Assim, fosse retomando subversivamente conceitos da história da filosofia na construção de sua teoria – o que podemos ver em noções como sujeito, desejo, verdade, saber, linguagem, por exemplo –, fosse discutindo os comprometimentos e as consequências da filosofia como discurso em contraposição ao discurso psicanalítico, Lacan foi não só retomando e bebendo da história conceitual filosófica passivamente, como também dela participando, nela atuando e colocando questões indiretamente, mesmo que, reiteramos, os objetivos de sua transmissão não fossem filosóficos. Isso, pois, realocava na linguagem questões histórica e confessadamente filosóficas como o ser, a existência, a universalidade, a necessidade e a contingência, a negatividade etc., o que fazia não para participar das querelas metafísicas há muito discutidas, mas para firmar a especificidade e a coerência de seu próprio discurso.
Se a filosofia ora foi um instrumento na construção do corpo teórico psicanalítico, ora foi uma fronteira na qual se limitava, da qual se diferenciava para não ultrapassar suas próprias vias científicas, nem avançar em questões fora de sua alçada, devemos notar que tal relação, embora não fosse simétrica ou proporcional, não era uma via de mão única, apenas a psicanálise bebendo da filosofia, mas se fazia também com a filosofia sendo invadida, discutida, retomada pela psicanálise, pelas categorias por esta inventadas, pelos objetos por esta constituídos. O que se faz não em uma análise psicanalítica de sua história e de seus autores e autoras, mas pela consideração que as intervenções psicanalíticas implicam-lhe, dado que há acontecimentos, descobertas ou invenções que devem ser consideradas pois “renovam, totalmente, as condições anteriormente reconhecidas como normais para qualquer descobrimento” (Althusser, 1985, p. 77), de teorização e, diante disso, nós, em filosofia, devemos agir, verificando o que isso nos implica, qual ponto nos desafia e o que podemos avançar em nossas discussões em relação a isso.
Lacan parecia estar ciente disso quando em 1975, na abertura do Departamento de Psicanálise em Vincennes, ao fazer um discurso de abertura ao lugar acadêmico que sua disciplina passava a ocupar naquela ocasião, não se preocupou em enumerar ou comentar as disciplinas importantes na formação do analista e que a universidade poderia oferecer e colaborar, mas as disciplinas que poderiam encontrar na experiência da psicanálise, em sua história e desenvolvimento teórico-conceitual, sua renovação – “Agora não se trata somente de ajudar o analista com ciências propagadas à moda universitária, mas de que essas ciências encontrem em sua experiência uma oportunidade de se renovar” (Lacan, 2003, p. 313), das quais citou a linguística, a lógica, a topologia e não a filosofia, mas a antifilosofia.
Antifilosofia - Como eu intitularia de bom grado a investigação do que o discurso universitário deve à sua suposição "educativa".
Não é a história das idéias, tão triste que é, que dará conta do recado.
Uma coletânea paciente da imbecilidade que o caracteriza permitirá, espero, destacá-la em sua raiz indestrutível, em seu sonho eterno.
Do qual só existe despertar particular (Lacan, 2003, p. 315).
Apresentado esse argumento, propomos que haveria várias formas e recortes possíveis para se discutir no interior da obra de Lacan a sua relação com a Filosofia e o movimento e significado de uma antifilosofia proposta no percurso final de seu ensino. No minicurso oferecido pelo GT Filosofia e Psicanálise "Lacan entre a filosofia e a antifilosofia", buscaremos oferecer alguns contornos introdutórios que possam contribuir para esse debate amplo.
Bibliografia
Althusser, Louis. Freud e Lacan, Marx e Freud. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1985.
Badiou, A. A aventura da filosofia francesa no século XX. Belo Horizonte: Autêntica, 2015.
Badiou, A. Lacan: Anti-Philosophy 3. Columbia University Press, 2018.
Dosse, F. História do estruturalismo, v. 1: o campo do signo, 1945-1966. São Paulo: Ensaio; Campinas: Editora da Universidade Estadual de Campinas, 1994
Lacan, J. Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 1998.
Lacan, J. Outros Escritos. Rio de Janeiro: Zahar, 2003.
Simanke, R. Nem filósofo, nem antifilósofo: notas sobre o papel das referências filosóficas na construção da psicanálise lacaniana. Natureza humana [online]. vol.7, n.1, 2005, pp. 9-58.
O minicurso "Lacan entre a filosofia e a antifilosofia" será ministrado pelos professores Alexandre Starnino, doutorando na Ecole Doctorale d’Études psychanalytiques e em Filosofia na Unicamp, e Izabela Loner, doutoranda em Filosofia na Unicamp, integrando a programação do GT Filosofia e Psicanálise.