Michel Foucault e o Cuidado do Si
Ygor Borba
Especialista em Ensino de Filosofia no Ensino Médio (Faced-UFBA) e Mestre em Cultura e Sociedade (UFBA)
29/04/2022 • Coluna ANPOF
Foucault busca interpretar as relações do sujeito com os jogos de verdade [1] a partir do estudo da Ética do Cuidado de Si comum na Grécia e na Roma Antiga. Era necessário saber sobre os jogos de verdade que se consolidavam em práticas e exercícios que o indivíduo fazia sobre si mesmo, tendo como sua meta alcançar um modo de ser ideal. Nos textos de filósofos greco-romanos tais como: Epicuro, Epíteto, Marcos Aurélio, Musonius Rufus, Plutarco, Sêneca, entre outros, teríamos uma série de prescrições que diziam respeito ao modo de viver. Esses textos eram essencialmente de natureza Ética, porque, esses autores entendiam que o Cuidado de Si tinha como sua primeira função a necessidade de fazer com que o sujeito exercesse sua liberdade individual pensada a partir das técnicas de si. No contexto desta análise, essas técnicas se dividiram em quatro grupos, onde cada qual representa uma origem da razão prática do sujeito: 1) as técnicas de produção onde podemos produzir, transformar e manipular objetos; 2) as técnicas de sistemas de signos, que permitiriam a utilização de signos, de sentidos, de símbolos ou de significação; 3) as técnicas de poder, que determinam a conduta dos indivíduos, submetendo-os a certos fins ou à dominação, objetivando o sujeito; 4) as técnicas de si, que permitiriam aos sujeitos cumprirem, sozinhos ou com a ajuda de outros, um certo número de procedimentos sobre seus corpos, almas, pensamentos, condutas, modos de ser; de modificarem-se a fim de atender um certo estado de felicidade, pureza, sabedoria, perfeição ou de imortalidade.
Não seria comum que esses quatro tipos de técnica funcionem distintamente, pois, “cada um desses tipos de técnica implica em certos modos de educação e de transformação dos indivíduos, na medida em que se trata não somente, evidentemente, de adquirir certas aptidões, mas também de adquirir certas atitudes”. (Foucault, 1994, p. 2). Deste modo, Foucault quer descrever a especificidade dessas técnicas e sua interação constante. Os dois primeiros tipos de técnicas se aplicariam, normalmente, ao estudo das ciências e da linguística. São os dois outros tipos de técnicas – as técnicas de dominação e as técnicas de si – que chamaria a atenção do autor. Assim, Foucault pretende fazer uma história da organização do saber tanto no que concerne à dominação e a si mesmo. Ora, o entende que nossa tradição filosófica teria insistido muito sobre esse último princípio e esquecido o primeiro. Esse princípio délfico não seria uma máxima abstrata em relação à vida; ao contrário, é um conselho técnico, uma regra há observar para o exame do oráculo. “Conhece-te a ti mesmo” significa então: “Não imagines que és um deus”. Nos textos greco-romanos, a injunção para conhecer-se a si mesmo estaria sempre associada àquele outro princípio que é o cuidado de si e é essa necessidade de tomar conta de si que tornaria possível a aplicação da máxima délfica. Essa ideia estaria implícita em toda a cultura greco-romana, tornando-se explícita a partir do Alcibíades I de Platão, nos diálogos socráticos, em Xenofonte, Hipócrates, e em toda a tradição neoplatônica que começaria com Albino, onde o indivíduo deveria tomar conta de si mesmo. Deveria ocupar-se de si antes de colocar em prática o princípio délfico. Consequentemente, o segundo princípio se subordina ao primeiro.
Existiriam muitas razões para explicar como o “conhece-te a ti mesmo” suplantou o “cuida de ti mesmo”. A primeira dessas razões é que os princípios morais da Sociedade Ocidental passaram por consideráveis transformações. Experimentaríamos uma dificuldade de fundamentar uma moral com princípios rígidos sobre um preceito que mostra que devemos nos preocupar conosco mais do que com qualquer outra coisa. Seriamos inclinados, em princípio, a considerar o Cuidado de Si como algo imoral, como um meio de fugir a todas às possíveis regras existentes. Foucault quer nos mostrar, que herdamos isso da moral cristã, que faz da renúncia de si a condição da salvação. Paradoxalmente, conhecer-se a si mesmo constituiu um meio de renunciar a si mesmo. E herdamos também uma tradição secular, que viria na lei externa o fundamento da moral. Neste momento lança-se uma pergunta: como o respeito que se tem por si mesmo pode constituir-se na base da moral? Foucault responderia que somos os herdeiros de uma moral social que fundamenta as regras de um comportamento aceitável sobre as relações com os outros.
Se a moral estabeleceu-se, depois do século XVI, como objeto de uma crítica, foi para dar importância ao conhecimento de si. E seria ainda difícil imaginar que o cuidado de si pudesse ser semelhante com a moral. “Conhece-te a ti mesmo” suplantou “cuida de ti mesmo”, porque nossa moral, que é uma moral do ascetismo, sempre afirmou que o si é a instância que se pode recusar. Uma segunda razão é que, na filosofia teórica que iria de Descartes a Husserl, o conhecimento de si, ou seja, o sujeito pensante, adquiriu importância como ponto de referência da teoria do conhecimento. Só era possível no mundo greco-romano cuidar de si mesmo se fosse realizado uma série de regras e condutas que se apresentavam como verdades para o sujeito, pois, o cuidado de si era uma prática ética exercida para a sua racionalidade. Todavia, o sujeito só poderia exercitar os ensinamentos estabelecidos por esta sociedade através de uma grande memorização e dedicação para a realização dessas supostas verdades. Foucault entendia que para os gregos e romanos, o indivíduo, ao ocupar-se de si mesmo, estava exercendo sua liberdade, porque cuidar de si significava saber “controlar” todos os instintos que poderiam prejudicar a sua própria existência. Consequentemente, essa ética greco-romana do cuidado de si dava à liberdade individual do sujeito um papel fundamental. Entretanto, não se deve observar nessa ética um individualismo exagerado, pois, o exercício de si implicava a responsabilidade do sujeito para com os outros e, essa responsabilidade passava por mecanismos de poder que não eram repressivos, como o diálogo e a persuasão, em suma, na ética greco-romana as pessoas estavam preocupadas com a sua conduta moral, sua ética, suas relações consigo mesmas e com os outros, pois, o problema era em qual técnica deveria o indivíduo utilizar para viver da melhor maneira possível. “Recorrendo aos textos clássicos, Foucault procurou problematizar a ideia que se tinha sobre a ética na sociedade ocidental. Recorria à filosofia antiga para lançar uma crítica à ideia de subjetividade presente nos dispositivos de subjetivação da modernidade”. (VIVAR Y SOLER, 2008, p. 66). O autor admite que não temos que escolher entre o nosso mundo e o mundo greco-romano.
Para Foucault ocorreu um exercício extremamente forte no início do desenvolvimento das sociedades ocidentais, que exigiu muitas valorizações culturais antes de terminar por se transformar numa atividade positiva, ou seja, de uma constante incitação na produção destas valorizações nos sujeitos e nas várias instâncias políticas da sociedade. As técnicas de si podem ser encontradas em todas as culturas de forma diferente, todavia, deveríamos questionar as técnicas de si exatamente do mesmo modo como seria necessário analisar e comparar as diferentes técnicas de produção de objetos e de direcionamentos dos sujeitos pelos indivíduos através de governo. Em suma, a análise de si seria dificultada por duas coisas: primeiro, as técnicas de si não exigiram o mesmo aparelho material que a produção de objetos e seriam, assim sendo, técnicas sucessivamente invisíveis. Segundo, não progressivamente ligadas às técnicas de direção dos outros. Exemplo: nas instituições educacionais entendemos que alguém está governando e ensinado outros a governar.
Temos, dessa forma, todo um conjunto de técnicas que tem o objetivo de vincular a verdade ao indivíduo. Porém, seria preciso antes compreender bem que não se trataria de descobrir uma verdade no indivíduo, nem de fazer da alma do mesmo o lugar de residência da verdade. Também não se trata tampouco de fazer da alma do indivíduo o objeto de um discurso verdadeiro, ao contrário, se trata de abastecer o indivíduo de uma verdade que não conhecia e que não morava nele, logo, se trata de fazer dessa verdade aprendida, memorizada, para progressivamente ser aplicada por este mesmo indivíduo.
[1] Foucault entende que: “A palavra “jogo” pode induzir em erro: quando digo “jogo”, me refiro a um conjunto de regras de produção de verdade. Não um jogo no sentido de imitar ou de representar...; é um conjunto de procedimentos que conduzem a um certo resultado, que pode ser considerado, em função dos seus princípios e das suas regras de procedimento, válido ou não, ganho ou perda.”(FOUCAULT, 2006, p. 282).
REFERÊNCIAS
FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: Curso dado no Collège de France (1981-1982). Tradução: Márcio Alves da Fonseca e Salma Tannus Muchail. 2ª Edição. São Paulo: Martins Fontes, 2006a.
_________________ As técnicas de si. Tradução: Karla Neves e Wanderson Flor do nascimento. Gallimard. 1994. Disponível em:
VIVAR Y SOLER, Rodrigo Diaz de. O Cuidado de si em Michel Foucault. Revista Percursos. Florianópolis, v. 09, n. 02, ano 2008, pág. 59 – 70.