Mulheres na História da Filosofia: a tarefa filosófica de um feminismo sem onda
Katarina Peixoto
Pesquisadora de pós-doutorado na Universidade da Virgínia (UVA) e no Departamento de Filosofia (USP)
13/03/2023 • Coluna ANPOF
Quem entrou nos cursos de filosofia no início até a primeira década deste século, no Brasil, pode ter sido confundide a respeito da história da filosofia. Sabemos que não levamos barata a afirmação de que fazemos história, visto que somos filósofas, filósofes e filósofos, de maneira que pode parecer que insistir na história da filosofia não ajuda a responder aos desafios contemporâneos da nossa prática, tanto mais quando pertencemos a uma das comunidades acadêmicas mais misóginas, racistas e sexistas, como é a filosofia brasileira. Temos tantas questões contemporâneas, tantos desafios práticos, tantos problemas com falta de financiamento e de respeito institucional, por que, neste 8 de março, pensar sobre mulheres na história da filosofia? Há muitas maneiras de responder a esta questão e, para falar a verdade, essas maneiras não param de se diversificar e aumentar. Então, eu vou enumerar algumas razões para que, tanto para quem chegou agora como para quem chegou antes, considerar a hipótese, aliás, muito bem informada, filosoficamente, de que as mulheres sempre fizeram filosofia e, portanto, que temos uma tarefa filosófica pela frente.
A hipótese que vou explorar é esta: as mulheres sempre fizeram filosofia. Saber disso não exaure o que essa afirmação quer dizer, visto que nos livros de história da filosofia e nos cursos de filosofia esse fato foi ecumenicamente omitido, silenciado, de modo a passar a impressão e a perpetuar uma história institucional na qual a filosofia é prerrogativa de machos. Esse erro historiográfico é, também, um erro filosófico, porque se baseia em uma falsificação ou, pior ainda, em mentiras. Obviamente que a filosofia não tem pés de barro, de maneira que distinguir entre fato e narrativa é fundamental, não é mesmo? Seja qual for a intensidade da onda e das marés, a filosofia resiste, porque o nosso material é mais paquidérmico, ou mineral, e por isso, aliás, não somos historiadores nem historiadoras, exatamente. Eu digo isso não para dizer que não temos narrativas, mas para deixar claro que não somos contadoras e contadores de histórias e narradoras e narradores de invenções, do mesmo modo que se conta história na literatura, digamos assim. A história tem um material histórico que a qualifica e distingue. É por isso que estudamos Aristóteles e não necessariamente lemos Homero. Podemos e devemos ler Homero, mas para estudar filosofia sempre teremos de conhecer Platão e Aristóteles e, bem, agora sabemos, Diotima, Aspasia. Não estudamos nomes simplesmente, nem estamos buscando um catálogo de mulheres para fazer uma cena de inclusão a fim de disfarçar ou esconder o problema. Tampouco o ativismo embalado pela ilusão de que uma teoria perfeita nos salvará; essa não é uma atitude filosófica. Não chegamos aqui ontem.
As implicações de recuperar autoras são inúmeras e interpelam a nossa prática filosófica em níveis distintos. Em primeiro lugar, se a história foi mal contada e, portanto, se há uma má historiografia, é preciso corrigir isso. Não fazemos história, exatamente, mas podemos dizer que fazemos boa filosofia com material falso, incompleto, enviesado? Em segundo lugar, o que ocorre quando se corrige ou começa a corrigir este material, a qualificá-lo, a enriquecê-lo? Teremos uma mesma maneira de fazer historiografia, ou faremos tudo de novo? Quais são as escolhas teóricas que tomaremos e como as justificaremos? Em terceiro lugar, há algum impacto imaginável, no nível pedagógico e institucional, na pesquisa de mulheres filósofas da nossa história, isto é, na filosofia?
Será que faz sentido pensar que estudar só homens e o que homens pensaram pode acarretar um ambiente e uma reprodução enviesada e misógina do conhecimento filosófico? Esta pergunta endereça a implicação prática mais urgente e também a mais potente. Porque a filosofia acadêmica brasileira exibe números e dados vergonhosos, que dão conta de extrema brutalidade misógina. A diferença entre o número de mulheres que entram na graduação e as que se tornam professoras é irracional e injustificável e deveria incomodar a praticantes de um tipo de conhecimento cuja materialidade é operada pela razão. Pode ser preciso um olhar filosófico, mas também não, para o fato de que os números da desigualdade denotam, ou escondem, a depender da perspectiva, expedientes de exclusão violentos, injustos, eticamente reprováveis. O fato de que a desigualdade de gênero na filosofia acadêmica nacional não tem fundamento racional e, portanto, filosófico, serve e deve servir, em primeiro lugar, para que a nossa prática seja revisada, em nome da qualidade do que fazemos. Aí, a revisita a materiais falsificados e precários merece uma atenção irredutível, seja lá qual for a escola filosófica a que nos filiemos.
Cânones moribundos consolidam a reprodução de zumbis de repertórios e reproduções, e não vamos nos ocupar da ingenuidade constrangedora e sem cabimento de quem acha que não está na história e de que a filosofia não é, também e necessariamente, a sua história. Não temos mais tempo para boçalidades agora, que derrotamos o que derrotamos, no Brasil.
As implicações acima mencionadas estão causando uma espécie de Novo Renascimento (a expressão é de Sarah Hutton, que dispensa apresentações) na prática filosófica, isto é, no modo como fazemos filosofia. Isso dá mais trabalho, como toda mudança, e tem custos elevados, como todo processo de transformação, mas vale cada segundo. Exatamente porque sempre houve mulheres na história da filosofia, sempre haverá material a ser recuperado e, portanto, material a ser qualificado. E, se o material estiver garantido, a filosofia floresce e, onde a filosofia floresce, floresce a liberdade. A implicação pedagógica parece intuitiva, assim, e também o horizonte de trabalho, para quem está chegando e para quem está consciente de que a filosofia acadêmica nacional precisa deixar de ser um antro de misoginia e obscurantismo sexista.
Spinoza, que estava longe de ser um feminista, legou-nos uma lição, entre outras, tantas, sobre a medida de nossas responsabilidades derivadas de nossa potência – ou existência. Nenhum poder político obtém sua legitimidade senão de quem o legitima. Isso supõe uma linha de continuidade entre representantes e representados que nos compromete a todos, ecumênica e inequivocamente. As diferenças de graus e níveis de responsabilização não precluem a nossa responsabilização; o contrário, de fato, ocorre, queiramos ou não. Assim, ao final de anos de extremismo, em um contexto no qual lidamos com centenas de milhares de mortos, exterminados por uma deliberada sabotagem na compra e distribuição de vacinas, diante do genocídio e da calamidade ambiental e dos recordes de feminicídio e da explosão de violência doméstica, não parece razoável abrigar ilusões de que não temos nada a ver com o que o país escolheu em 2018 e também em 2023. Institucionalmente, e na nossa prática profissional, a misoginia e a brutalidade sexista, o extermínio em massa e o genocídio nos interpelam e devem interpelar. A inocência e o cinismo andam junto com a má filosofia e com a abdicação da excelência, neste momento. E se a filosofia acadêmica nacional esteve quase em uníssono na defesa da democracia como valor e fim, está mais do que na hora de responder pelas próprias decisões na prática filosófica nacional.
O trabalho de recuperação de mulheres filósofas em nossa história se tornou, hoje, um elemento da pesquisa de ponta que vem sendo feita no mundo. Mulheres e figuras não-canônicas inspiram e ocupam projetos de pesquisa em todas as agências de pesquisa de excelência, no mundo. E há uma geração de novas pesquisadoras, professoras e estudantes, no Brasil, que estão se dedicando a tornar a nossa prática menos reprodutora do horror misógino nacional e na academia filosófica brasileira.
Dizer: chegou a hora de contar a nossa história e de levar a sério o legado conceitual que foi escondido pela misoginia e pelo patriarcalismo, esses males públicos sempre inimigos da razão. Isso requer uma mudança de mentalidade e de modos de trabalho. E está acontecendo. Os custos para quem nos exclui da historiografia e da vida institucional hão de se tornar mais elevados, na medida em que o nosso trabalho se desenvolve.
A revisão do cânone, dos currículos e das atividades pedagógicas e de pesquisa abriram um caminho sem volta. Se passou da hora de se normalizar a brutalidade misógina, que seja porque passou da hora de nos considerar como meras visitantes ou testemunhas de uma história falsificada. Os seminários, convescotes, encontros, bancas, coletâneas e a produção de scholarship só com homens e a respeito de homens devem, por um corolário cético elementar, carecer de excelência. Segue-se trivialmente que não merecem respeito qua atividade filosófica – à partida. Paira e pairará sobre esses erros a suspeita de que estão fazendo uma filosofia baseada no delírio patriarcal que se alimenta das falsificações da superioridade dos machos brancos e das brutalidades derivadas dessa mentira. Outras mudanças, mais fecundas e mais atreladas a níveis de responsabilização, seguem-se: ser mulher na filosofia brasileira nos obriga e deve obrigar a mais, a não reproduzirmos aquilo que aniquila a boa prática e a excelência com os seus pés de barro.
Temos um longo passado pela frente e estamos apenas começando. Que a filosofia não tenha gênero algum, e que nenhuma mulher filósofa precise trabalhar a mais, esforçar-se a mais e sofrer a mais, para fazer parte e para ser respeitada na comunidade profissional a que pertence. Não fomos nem somos nem estaremos de passagem na filosofia. E estamos fazendo o que há, hoje, de mais contemporâneo e conceitualmente promissor, na nossa prática: reconsiderando o nosso material.
Hoje é um dia, e amanhã também, de muito trabalho pela liberdade, um outro nome da filosofia.