Não que você não possa dar uma boa aula

Aline Karen Cristina Canella

Doutoranda e mestre em Filosofia (PPGFIL/UCS)

12/02/2025 • Coluna ANPOF

Sou advogada, professora de filosofia e autista. Desde o meu diagnóstico, duas coisas aconteceram: primeiro, pude finalmente me sentir confortável na minha própria pele. Segundo, tive a infelicidade de me deparar com uma sociedade estruturalmente capacitista e eliminadora. Mas não falo isso com a intenção de utilizar este espaço para me queixar – em realidade, espero abrir aqui um espaço de reflexão.

A recente repercussão de um trecho da entrevista da pedagoga Carolina Souza ao Programa do Bial, compartilhado pelo movimento "Corpo Livre", reacendeu um debate necessário. Carolina relata que, quando era aluna, frequentemente a mandavam para casa por ser autista, sendo rotulada como "aluna problema" e "a criança que atrapalhava". Sua escola nunca atendeu às suas necessidades de suporte, negando-lhe a chance de demonstrar suas capacidades. Em suas palavras: "Se eu não conseguia aprender em sala, era porque ninguém me ajudava". Ora, qual é o nosso trabalho enquanto sociedade (vide o Art. 4.o do Estatuto da Criança e do Adolescente), senão ajudar nossas crianças?

Nos comentários sobre esse vídeo, tive a oportunidade de compartilhar minha experiência. Falei sobre meus métodos de comunicação alternativa e sobre como precisei adaptar minha metodologia de ensino por ser autista. Relatei ainda um episódio em que fui eliminada de um concurso por não manter contato visual com a "turma simulada", ou seja, com os avaliadores.

Um usuário respondeu ao meu comentário afirmando:

"A verdade é que essa incapacidade de fixar o olhar iria prejudicar suas aulas. Não que você não possa dar uma boa aula, mas ia ter que supercompensar sendo incrível em outros aspectos. Difícil, né?"

Diante dessa resposta, proponho uma reflexão, com um adendo: numa sala de aula real, onde os alunos não são meros espectadores imaginários, mas interagem ativamente, nunca tive problemas em estabelecer contato visual e dialogar com os estudantes. Mas, mesmo que minha condição dentro do espectro autista impedisse esse contato visual, isso me impediria de lecionar? Emprestemos o exemplo de uma deficiência física visível. Se eu fosse cega, por exemplo, minha incapacidade de fixar o olhar me tornaria uma professora menos competente?

A questão central não é minha experiência isolada, mas o que essa lógica representa para a inclusão de pessoas com deficiência (PCD) na sociedade. Se excluímos professores PCD do ensino, por que não excluiríamos alunos PCD da aprendizagem? Na minha vivência em sala de aula, vejo alunos com deficiência que são apenas "colocados" na escola, sem adaptações adequadas, sem suporte suficiente, sem monitores capacitados. A inclusão se torna figurativa: uma presença numérica, não uma realidade acessível.

E, como se não bastasse, exige-se dessas pessoas que sejam "incríveis". O que sequer significa isso? Que só podem ocupar um espaço se compensarem suas diferenças com talentos extraordinários? Que a inclusão é uma concessão para poucos e não um direito de todos?

A injustiça que enfrento e testemunho não é isolada, mas consequência da estrutura social em que vivemos. Esse padrão de exclusão se repete em questões de raça, gênero, sexualidade e outras características humanas que desafiam a normalidade imposta. O sistema não exclui apenas PCDs, mas todos que não se encaixam em um modelo produtivo e normativo.

Isso nos leva a uma pergunta fundamental: o que significa inclusão? Trata-se apenas de estatísticas e cotas? Quem é o PCD "aceitável" para ocupar esses espaços? E quem será considerado "demais" ou “de menos” para ser incluído?

Aproveitando esse ensejo, podemos aprofundar essa reflexão filosoficamente. Judith Butler, ao reler Hegel por meio da teoria queer e da psicanálise, argumenta que o reconhecimento social não apenas constitui os sujeitos, mas também define limites para quem pode ou não ser reconhecido. Se um desejo ou identidade foge das normas, isso gera precariedade e exclusão. Mas para além de desejo ou identidade, proponho refletir como o reconhecimento afeta a quem foge de uma norma estética, corpórea ou neural.

Como Hegel sugere, essa exclusão não é definitiva: ela pode ser contestada, ressignificada e transformada. Para Butler, a luta pelo reconhecimento pode desestabilizar normas e criar novos modos de existência. Mas, numa sociedade que impõe até mesmo a anatomia e a neurotipicidade dentro de padrões morais inventados, qual deve ser o próximo passo? Devemos adaptar a sociedade para acolher os indivíduos ou modificar cirurgicamente e medicamente os indivíduos para que se adequem à sociedade?

Se queremos falar seriamente sobre inclusão, não basta abrir portas que continuam sendo obstáculos invisíveis. Precisamos pensar em soluções reais e estruturais. Afinal, a inclusão não pode ser apenas um espetáculo moral – ela precisa ser um compromisso concreto com a dignidade e o reconhecimento de todas as pessoas.


Referências

GLOBO. Inclusão! Caroline, autista e pedagoga, fala sobre educação | Conversa com Bial. YouTube, 18 abr. 2023. Disponível em: Acesso em: 6 fev. 2025.

BUTLER, Judith. Desfazendo o gênero. Desfazendo gênero / Judith Butler; traduzido por Aléxia Bretas, Ana Luiza Gussen, Beatriz Zampieri, Gabriel Lisboa Ponciano, Luís Felipe Teixeira, Nathan Teixeira, Petra Bastone e Victor Galdino. Coordenação da tradução por Carla Rodrigues – São Paulo: Editora Unesp, 2022. 1. Gênero.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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