Necessidade da vacina antropofágica

Rodrigo Ornelas

Doutor em Filosofia e coordenador do GT Poética Pragmática (UFBA)

25/10/2021 • Coluna ANPOF

Este é o primeiro artigo de uma pequena série que publicarei aqui na esteira das celebrações do centenário da nossa Semana de Arte Moderna. A chamada Semana de 1922 é, antes de tudo, um marco; é antes uma referência simbólica do que um evento histórico a ser, por exemplo, exageradamente exaltado ou criticamente desconstruído. Fazemos melhor ao falar de “gerações de 22” ou do “contexto produzido pela Semana de 22”, do “entorno da Semana de 22”; e ao partirmos daí para o que eles representam nacionalmente. Seu mais importante fruto naquele momento foi o Movimento Antropofágico, liderado pelo irrequieto Oswald de Andrade, e cujas lições preservam-se ainda atuais, com pertinência hoje renovada.

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Há quase cem anos uma pandemia abria a década de ascensão do Modernismo brasileiro. Os anos 20 prepararam a modernização do país que iria adquirir expressão nacional principalmente a partir da década seguinte. E foi preciso esperar os anos 30 para que se produzisse a vacina contra o vírus influenza, causador da chamada Gripe Espanhola. Hoje acompanhamos em tempo real a produção de vacinas contra a atual pandemia de Covid-19, esta causada pelo agente coronavírus, em uma velocidade e capacidade de pesquisa, produção e aplicação inimagináveis em 1919. O que não sabemos ainda é se, depois da crise ampla e perversa na qual afundamos, teremos uma solução para a enfermidade que em todos os âmbitos ameaça o nosso desenvolvimento nacional.

Ao situar-se no ano de comemoração do centenário daquele 07 de setembro de 1822, a Semana de Arte Moderna foi também um convite a repensar o próprio sentido da nossa independência, da nossa identidade nacional, do país que se afirmara como Estado próprio cem anos antes. Isso porque o Modernismo, normalmente associado a questões estéticas, adquiriu no Brasil – e na América Latina em geral – o caráter de reflexão que extrapola o campo da arte e da cultura, passando daí ao político, ao econômico, ao social e ao filosófico.

 Após a Semana de 22, importantes documentos foram produzidos nesse espírito, quase sempre com atuação direta de Oswald de Andrade. Ainda dessa mesma década, são alguns exemplos a revista Klaxon (1922), o Manifesto da Poesia Pau Brasil (1924), a Revista de Antropofagia (1928-1929) e, publicado nela, enfim, o antológico Manifesto Antropófago (1928). E é no 16º aforismo desse último que podemos ler esta oportuna prescrição:

“Necessidade da vacina antropofágica.” [1]

A antropofagia é, primeiramente, uma característica “genética” brasileira, dos habitantes originários destas terras onde se construiu o Brasil. Com Oswald de Andrade e seus parceiros de Movimento, a antropofagia é assumida como metáfora para, finalmente, ser transformada por ele em proposta de filosofia nacional – sobretudo, a partir da segunda metade da década de 1940. Ele desenvolveu uma espécie de dialética positiva, de afirmação do Outro, ao mesmo tempo transformado e preservado naquele que o come. Isso porque, em seu sentido original, a antropofagia não era um ato de mera alimentação, ou algo como um canibalismo selvagem. O padre Antônio Vieira, aliás, distinguia o canibalismo indígena do “canibalismo” dos brancos, acreditando ser o primeiro “menos mau”, como um canibalismo de muitos peixes que comem um só (um que alimenta muitos), enquanto o outro seria o “canibalismo” de um peixe grande (a empresa colonial) a comer muitos pequenos: “muito maior açougue é o de cá”, dizia ele [2]. Ademais, antropofagia era um rito, do qual Oswald soube extrair seu significado mais profundo.

Em quase todos os relatos de europeus que escreveram sobre seus contatos com antropófagos no Brasil colonial, vemos que uma das coisas que mais lhes chamava a atenção era o diálogo travado entre o sujeito a ser devorado e o seu futuro assassino. O que estava para ser comido afirmava que seria vingado pelos seus, assim como ele próprio já comera outros daquela tribo que agora os vingava, comendo-o. Esse diálogo mostra que a chave da antropofagia é lê-la como, simultaneamente, transformação e permanência. Ela permite uma noção de temporalidade cíclica que avança abarcando preservação e mudança. Também de identidade e progresso, no seu sentido metafórico modernista.

Mais do que isso, ela nos oferece uma ferramenta para nos engendrarmos como nação moderna de forma sempre atualizada. Em sua autoimagem (que também impõe a sua cara na comunidade global) o Brasil não pode rejeitar-se a si mesmo como nação – um movimento caracteristicamente reacionário (de pós-modernos ou anti-modernos, o que dá no mesmo). Não é possível haver desenvolvimento real para as pessoas se engessarmos nossas referências de pensamento sempre em relação ao que não-fomos, ao que nos apequena ou nos divide, ao que participa da nossa constituição de modo a nos incapacitar para uma construção nacional ativa, de exuberância e grandeza, vocacionada para o futuro. Isso é padecer da falta de imaginação social e política que nos ameaça, seja em sua forma de cópia institucional, no elitismo neoliberalista, ou de denuncismo sem proposição, no desconstrucionismo academicista.

Antropofagia não é, como Oswald sempre alertou, um romantismo etnográfico. “Não é o índio de rótulo de garrafa”, ele escreveu, mas “o antropófago de knicker-bockers” [3]. É um recurso modernista, quer dizer, de afirmação da Modernidade, de tomá-la e realizá-la, cobrar o que ela nos promete; e que nos permite uma atualização constante. É um caminhar sempre e decididamente para o futuro (como disse Gilberto Freyre sobre Oswald [4]) – e não para a “tradição”. Por outro lado, não é uma aceitação passiva de tudo que nos chega: sendo um rito de deglutição, envolve também gosto(!), exige escolha daquilo que queremos metabolizar, absorver como valor, transformando-o em nosso enquanto nós mesmos nos transformamos em outro – e devemos nos lembrar do caso de Hans Staden, o alemão que foi rejeitado de ser comido pelos tupinambás por lhes parecer sujo e covarde. O Outro não é posto em oposição a mim, não é negado na devoração, mas absorvido, preservado-transformado (e transformando). Antropofagia é o contrário de resistência.

Antropofagia é um princípio para uma utopia nacional brasileira, isto é, para imaginação de um horizonte comum realmente possível e para o qual caminhamos – o que nos exige atividade transformadora (mudança, futuro) ao mesmo tempo em que nos afirma como brasileiros (identidade, memória), coisas que só se conjugam, de fato, numa experiência nacional. Antropofagia é uma rebeldia permanente; experimentalista, criadora e seriamente programática.

Considerada por Antônio Cândido “o momento mais denso da dialética modernista” [5] e por Eduardo Viveiros de Castro como “a reflexão meta-cultural mais original produzida na América Latina” [6], a antropofagia, tal como proposta por Oswald, é um expediente teórico que toma uma característica antropológica como metáfora, para transformá-la em um princípio filosófico prático. Na descrição de José Guilherme Merquior encontro um resumo de como a compreendendo, ou seja, como uma chave brasileira para interpretar e elaborar a Modernidade de forma própria, cuja “ideia geral não era nem a de respeitar e nem a de repelir os valores e técnicas ocidentais, mas simplesmente a de devorá-los. Quer dizer, digeri-los num espírito audacioso agressivo e alegre de assimilação criativa” [7]. É o oposto da “oeste-fobia do radical-chic” (para usar uma expressão sua).

Antes da vacina, o diagnóstico. A vacina combate um agente causador de males que nos acometem. Vacina para combater a gripe (vírus influenza); vacina contra a covid (coronavírus). Sobre a vacina antropofágica, no mesmo aforismo 16 do Manifesto, Oswald de Andrade completava: “Para o equilíbrio contra as religiões de meridiano. E as inquisições exteriores”. A antropofagia oswaldiana é um poderoso recurso para lidar com o inevitável global e o imprescindível local que se sobrepõem no Brasil, para nos dar um sentido cultural forte de nação. Nosso “local” são muitos, é global; mas nem por isso devemos rejeitar essa complexa formação, eminentemente ambígua, rejeitando o Brasil profundo em favor, por exemplo, de imagens fantasiosas dos países desenvolvidos ou de identidades fragmentárias romantizadas. Pelo contrário, devemos metabolizar essa complexidade fazendo dela uma força de nacionalidade. Não como síntese – porque ela não elimina o ambíguo, antes o devora, isto é, incorpora-o – e sim como futuro comum. O que a vacina antropofágica combate é aquilo que Roberto Mangabeira Unger chama de colonialismo mental.

 

 

[1] “Manifesto Antropofágico”, em Revista de Antropofagia, ano 1, nº 1, 1928.

[2] “Sermão de Santo Antônio aos peixes”, 1654.

[3] “Uma adesão que não nos interessa”, em Revista de Antropofagia, ano 2, nº 10, 1929.

[4] “Modernidade e Modernismo na arte política”, publicado em 6 conferências em busca de um leitor, 1964 (lido por Freyre, a quem Oswald chamava de “mestre”, primeiro como conferência no Teatro Municipal de São Paulo em 1946).

[5] “A literatura na evolução de uma comunidade”, em Literatura e Sociedade, 1965 (publicado antes n’O Estado de São Paulo, em 1954).

[6] “Temos que criar um outro conceito de criação”, entrevista para a Revista Azougue, 2006.

[7] “O outro Ocidente”, publicado na revista Presença, nº 15, 1990 (escrito originalmente em inglês para uma apresentação na Universidade de Harvard em 1988)

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