Nós, os outros: sobre o fracasso na academia
Daniela Lima
Doutoranda em Filosofia (UFF/FAPERJ) e integrante do GT de Filosofia Francesa Contemporânea da Anpof
15/03/2022 • Coluna ANPOF
TUDO OU NADA
“[...] cada um tem a sensação de que num único instante vai se decidir sua existência social e intelectual: tudo ou nada” [1], é dessa forma que Didier Eribon descreve, em sua biografia de Michel Foucault, o momento em que os candidatos a uma vaga na École Normale Supérieure se acotovelam para ver o resultado do concurso realizado em 1946. Longe de ser anacrônico, esse trecho poderia descrever também a sensação que antecede a constante espera por resultados que decidem – ou ajudam a decidir – os mais diferentes percursos acadêmicos no Brasil.
Uma e a cada vez, tudo é decidido, como se o que costumamos chamar de intelectualidade estivesse sempre por vir. Neste ponto, poderíamos iniciar um debate sobre a intelectualidade como um contínuo por fazer e, consequentemente, sobre o inacabamento como próprio de seu percurso. Contudo, o que Eribon parece indicar é que a falha, o erro, o fracasso, seriam recusados enquanto parte constitutiva desse percurso: “é tudo ou nada”. Não é possível fracassar melhor, uma vez que o fracasso determinaria o fim da “existência social e intelectual”.
Portanto, para que o passado exista enquanto percurso acadêmico, é necessário extrair dele o fracasso. Ato contínuo: este passado planificado, normatizado, uniformizado é exibido nos currículos, onde não há espaço para o fracasso e para as dificuldades que também o constituem. Não começamos do mesmo lugar, não temos as mesmas oportunidades, não somos vistos, ouvidos ou entendidos da mesma forma. Consequentemente, fracassamos de formas diferentes, por motivos diferentes, em tempos diferentes e o silêncio em torno do fracasso é também o silêncio em torno da diferença.
Embora eu não esteja sugerindo a publicação de um currículo de fracassos, é interessante trazer à tona o caso de Johannes Haushofer, professor de Princeton, que publicou, em 2016, uma listagem dos programas de pós-graduação pelos quais não foi aceito, dos processos seletivos nos quais não foi aprovado, dos prêmios que não recebeu, etc. Essa publicação é precedida pela seguinte nota: “a maioria das coisas que tentei fracassaram, mas esses fracassos são frequentemente invisíveis, enquanto os sucessos são visíveis. [...]. Este currículo de fracassos é uma tentativa de acerto de contas e de colocar as coisas em perspectiva” [2]. Com efeito, Haushofer é preciso em apontar algumas possíveis consequências dessa invisibilização do fracasso, como supor, a partir de uma lógica concorrencial e comparativa, que o outro não fracasse.
CONCORRÊNCIA E NEOLIBERALISMO
Retomando a biografia de Michel Foucault, encontramos a informação de que seu nome é o quarto na lista de aprovados para a École Normale em 1946, resultado que parece invisibilizar o fracasso no concurso do ano anterior. Falar sobre esse fracasso é, como sugerido anteriormente, falar sobre diferença: em 1945, a cidade de Poitiers, onde nasceu Foucault, ainda enfrentava as consequências dos bombardeios sofridos durante a Segunda Guerra. Dessa forma, a preparação e o concurso ocorreram de modo atribulado. Foucault ficou em centésimo primeiro lugar nas provas escritas, posição que o excluiu das provas orais.
Em 1946, quando finamente chega à rue d’Ulm, Foucault encontra um ambiente descrito por Eribon como “patogênico”, “pois impõe que cada um brilhe, se singularize; e para isso, para fazer o papel da criatura excepcional, para tomar as atitudes dignas da glória futura, todos os meios servem” [3]. Imagino que haja algum excesso na ideia de que os normaliens mostravam algo de terrível e maléfico naqueles anos de formação – afinal, é no excesso que surgem as lendas. Contudo, o que importa para este ensaio é um único aspecto: a concorrência, que permanece central, ainda que por diferentes razões, no espaço acadêmico.
A temática da concorrência pode se tornar caleidoscópica, de modo que pretendo tão somente delimitar alguns aspectos que me parecem relevantes para o espaço acadêmico brasileiro, como a relação entre concorrência e escassez. A minha hipótese é que essa relação operaria de acordo com o neoliberalismo enquanto “tecnologia de poder”. Neste ponto, começo a mobilizar algumas ferramentas de análise foucaultianas, que talvez precisem de certo desdobramento: para Foucault, o poder não é algo que “se adquira, arrebate ou compartilhe, algo que se guarde ou se deixe escapar”, mas algo que “se exerce a partir de inúmeros pontos” [4] e o seu exercício pressupõe um conjunto de práticas ou procedimentos, “esses procedimentos de poder, é preciso considerá-los como técnicas, ou seja como procedimentos que foram inventados, aperfeiçoados, que se desenvolvem sem parar” [5].
Para Christian Laval e Pierre Dardot, analisar o neoliberalismo enquanto tecnologia de poder estenderia “a lógica capitalista a toda a vida, e, em particular, à subjetividade, ao domínio íntimo, à representação de si” [6]. Contudo, a crítica dos autores não aponta tão somente para o individualismo como consequência de um modo de subjetivação neoliberal, mas para os procedimentos que constituem o sujeito sob sua égide. Um desses procedimentos seria precisamente a concorrência: “os indivíduos são colocados em situações em que têm que viver em regime de concorrência, e são submetidos a todo tipo de pressão afim de que possam ir cada vez mais rápido, superar-se constantemente” [7].
Ao primeiro olhar, a concorrência não me parece um aspecto bom ou mau para o nosso espaço acadêmico, mas sim perigoso – sobretudo quando associada à escassez. Por sua vez, a escassez parece operar como uma forma de conduzir o modo de vida dos indivíduos a partir da regulação das condições materiais básicas para se manter na academia, tais como bolsas de estudo e outros meios de fomento à pesquisa. Nunca houve bolsas para todos, o que talvez não se dê – e essa é apenas uma suspeita – apenas pelas crises financeiras, mas antes por ser uma forma de governar as universidades brasileiras.
A escassez promove uma acirrada concorrência entre os candidatos pelos primeiros lugares nas seleções dos programas de pós-graduação, para publicações, participação em eventos, aquisição de bolsas etc. Esse jogo acadêmico de fracasso e sucesso não necessariamente produz os melhores resultados – dada a dificuldade de concluir uma dissertação, tese ou estágio de pesquisa com uma espada sobre a cabeça –, mas certamente produz ambientes nos quais as relações tendem a se tornar conflituosas.
Dardot e Laval situam esse conflito no âmbito da constituição do sujeito neoliberal: “Para alcançar este resultado, a socialização em seu sentido mais geral de integração de valores coletivos se opera de acordo com uma lógica concorrencial ao invés de cooperativa, e o indivíduo deve funcionar como um capitalista de si mesmo” [8]. No caso específico da pesquisa em filosofia, é costumeiro ouvir que um certo isolamento e solidão são necessários; mas me pergunto até que ponto esse isolamento não é acentuado e até mesmo estimulado pela lógica concorrencial.
DAQUILO QUE É MENOR
Se avançarmos na leitura da biografia, encontraremos o Foucault de Eribon sendo descrito pelos colegas de École Normale como “detestável” e “maluco”, o que autor atribui não só ao espaço de concorrência, mas à homofobia que o atravessava. De fato, havia ali, como em outras instituições, ontem e hoje, o imperativo da conformidade e, ao mesmo tempo, da inconformidade. Ou, melhor explicando, existia uma maneira conforme de ser inconforme, de modo que algumas inconformidades eram admitidas e até mesmo estimuladas e outras não. Nesse jogo que se joga sem querer e sem conhecer as regras, Foucault perdia.
O que se perdia – aliás, o que se perde – nesse jogo é a abertura ao outro. Estar aberto ao outro enquanto outro, diferente de mim e inapreensível em sua totalidade, exige coragem – sobretudo de mover nossos próprios limites, nossas certezas, nossas verdades. Essa é uma instabilidade necessária ao pensamento que a concorrência não produz, visto que tem como premissa o fechamento ao outro ameaçador, inimigo, adversário.
Chegamos talvez impasse: a escassez – se não chega a produzir – acentua a concorrência, que, por sua vez, produz espaços conflituosos. À vista disso, poderíamos considerar duas vias de reflexão: analisar se o fim da escassez é possível (e, consequentemente, projetar os contornos de um espaço de abundância total) ou prescrever ações político-institucionais para conter e/ou reduzir a escassez. Contudo, escolho uma terceira via – ciente do caráter problemático das terceiras vias –: identificar movimentos micropolíticos, pontuais, menores, que poderiam agir sobre esse ciclo da escassez. Dardot e Laval dão pistas que deixo aqui como provocação e convite à abertura: pensar a cooperação como alternativa à concorrência e refletir sobre a relação entre autonomia individual e coletiva. Não seria, evidentemente, o fim da concorrência ou da escassez, mas a possibilidade de encontrar o outro ao reencontrar aquilo que nos move: a Filosofia.
[1] ERIBON, Didier. FOUCAULT: UMA BIOGRAFIA. São Paulo: Editora Schwarcz, 1990, p. 40.
[2] Disponível em: https://www.uni-goettingen.de/de/document/download/bed2706fd34e29822004dbe29cd00bb5.pdf/Johannes_Haushofer_CV_of_Failures%5B1%5D.pdf [acesso em 27 de fevereiro de 2021, às 19h08]
[3] ERIBON, Didier. FOUCAULT: UMABIOGRAFIA. São Paulo: Editora Schwarcz, 1990, p. 40.
[4] FOUCAULT, MICHEL. História da Sexualidade V. I: A Vontade de Saber. São Paulo: Paz e Terra, p. 102.
[5] ___________________. Dits et Écrits V.IV. Paris : Gallimard, 1980, p. 189.
[6] Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/12804/114116122 [acesso em 22 de fevereiro, às 15h]
[7] Ibidem.
[8] Disponível em: http://seer.upf.br/index.php/rep/article/view/12804/114116122 [acesso em 22 de fevereiro, às 15h]