Notas sobre “A filosofia como coisa civil”

Ivan Domingues

UFMG

21/12/2018 • Coluna ANPOF

Gostei muito do livro A filosofia entre nós, cuja leitura terminei na última semana.

Conforme disse ao autor, em mensagem pessoal, depois de ter vencido as primeiras páginas, eu muito lamentava o fato de só ter tomado conhecimento do livro 13 anos depois da publicação: foi em 2005 e estamos em 2018! Eu fiquei chocado, sobretudo depois de constatar que ele e eu temos uma entrada parecida em filosofia, o mesmo gosto pelas questões histórico-culturais e políticas, um feeling semelhante ao tratar as questões existenciais e sua relação com a filosofia, e a mesma preocupação com a agenda da filosofia no e do Brasil.

Sobre o conjunto do livro, ao fazer uma apreciação geral, e não apenas do capítulo em apreço, ressalto que gostei muito do capítulo-entrevista de Tugendhadt, que eu não conhecia e achei um primor. 1 Gostei de reler o capítulo de Porchat, que estava meio esquecido, em algum canto de minha mente, e eu considero uma pequena obra- prima. Li com muito proveito o capítulo de Renato Janine, que escreve bem e sempre tem o que dizer acerca destas matérias. E gostei de um modo especial da epígrafe com a citação de Giannotti encabeçando um dos capítulos, a qual foi retirada do livro coletivo dedicado a Flusser e em que eu vejo uma pérola, contendo numa gotícula toda a síntese da filosofia feita no Brasil em anos recentes – e cujo resultado, como ele, Giannotti, bem o mostra, será justamente o esgotamento do modelo difundido pela Missão Francesa, o modelo da história da filosofia e da exegese, ao longo da criação do Departement Français d’Outre Mer, para retomarmos a boutade célebre de Foucault, e ao qual modelo Giannotti contrapõe o ensaísmo filosófico: antes, visto por muitos, como o nosso maior mal e o sinal da deficiência de nossa formação, e agora considerado por Giannotti como a nossa saída. 2

Sobre o ensaio “A Filosofia como coisa civil”, que ocupa quase a metade do livro, digo também que gostei muito: no início eu tive uma certa dificuldade em compreender o que deveríamos entender por “filosofia civil”, tendo o colega evitado apresentar uma definição cabal, e ficando eu desconfiado do hegelianismo de certas formulações, mesmo que Crisóstomo tivesse evitado falar, com todo o zelo desse mundo, de filosofia do Estado e do espírito objetivo. Contudo, o vocabulário do civil e da sociedade civil, diferente da sociedade política, deixava-o próximo, bem próximo, e o meu medo era o Espírito Absoluto e o Deus sobre a Terra, qual o Leviatã de Hobbes, terminarem vencendo.

Para sorte de todos nós, à única exceção talvez dos hegelianos, não foi bem isso o que aconteceu, tendo José Crisóstomo evitado em cair nas armadilhas da grã-filosofia (expressão do autor) e das big questions filosóficas das mais variadas proveniências, como as da metafísica e da filosofia clássica, com Hegel de mãos atadas com Fichte e Schelling, no meio do desvario do idealismo alemão, e tendo o prezado colega buscado o antídoto nas hostes do pragmatismo, para o meu gosto pessoal e a minha indisfarçável surpresa – eu que não sabia que o autor do livro tivesse frequentado o Metaphysical Club.

Por isso, eu sou só elogios, e antes de tudo por ver na formulação da filosofia civil, cuja súmula é fornecida na p. 84, bem como no trecho que se estende à p. 75-77, ao longo das quais ressalta-se com ênfase e pertinência a proposta cosmopolítica da filosofia civil de tornar-se mundo, como em Kant, justificando a ideia de uma filosofia mundana – ou seja, ao colocar as coisas em minha perspectiva, em busca de compartilhamentos futuros com o colega e sua filosofia civil, algo correlato da filosofia pública que em meu livro leva ao intelectual público, cujo caminho deverá ser pavimentado por alguma coisa como uma ética pública, levando-me a falar de ethos e coisas correlatas: intelectual que eu recuso a chamá-lo de intelectual político, devido às minhas reservas com respeito à identificação entre o público, a política e o estatal, como em Rousseau – contra o que eu proponho a interposição entre o público e o privado da esfera mais ampla do social e do cultural, como venho insistindo em meus estudos, e com o que, suspeito eu, nosso autor estaria de acordo. 3

Outro ponto importante, e em relação ao qual o meu acordo é total, reside na decisão de Crisóstomo de trocar as definições da filosofia como essência pela definição da filosofia como atividade, e no mesmo compasso propor a troca da ideia da filosofia como artefato lógico ou coisa da lógica pela ideia da filosofia como artefato cultural e coisa dialógica, dando razão a Platão contra Aristóteles e a Peirce contra Hegel.

Por isso até agora eu fui só elogios. Há, porém, as reservas de sempre, elas são de três ordens, com a terceira mais não sendo do que uma dúvida, conquanto importante, mas dúvida, e as quais passo a comentar agora, ao concluir a apreciação do livro:

1ª – A tendência de esvaziar a influência anglo-americana em nossos meios, p. ex. par. 18, p. 59, no contexto mais amplo das últimas quatro décadas, recuando até os anos 65, a contar a data de publicação do livro (2005): eu diria que essa análise pode bem estar correta até o final dos anos 70, se consideramos que o CLE da Unicamp foi fundado em 1977, mas o mesmo não se pode dizer dos anos 90, quando a influência do neo-pragmatismo e da filosofia analítica passou a ser mais significativa nos nossos meios, com os EUA e o UK dividindo o pedaço com a França e a Alemanha.

2ª – A decisão, mesmo ali onde o foco parece ser a filosofia anglo-americana – expressão que eu prefiro à filosofia anglo-saxã, com seu risco de nos deixar presos à ilha e ao norte da Europa –, de manter em segundo plano no campo das investigações filosóficas os Estados Unidos, como ocorre na p. 68, em que se deixa o Império ao lado da Austrália, da Holanda e da Espanha, reconhecendo que são países da vanguarda científica, e dando a impressão de que eles são de segunda linha ou ocupam uma escala intermediária na atividade filosófica: se é isso que o autor quis dizer, meu desacordo é total no tocante aos EUA, por acreditar que hoje o centro da filosofia mundial está nos Estados Unidos, que faz a globalização da filosofia, como nenhum outro país do globo, de modo que eu compartilho da opinião de Tugendhat que, além de reconhecer a excelência filosófica das universidades norte-americanas, fala da existência de uma verdadeira colonização da filosofia alemã pela filosofia anglo-americana nos dias de hoje.

3ª – Não ficou claro para mim, depois de José Crisóstomo se insurgir com razão, ao longo do ensaio, contra o panteão filosófico com seus 10 ou 12 deuses filósofos – e, no mesmo passo, acusar o fim da grande filosofia num tempo como o de hoje, quando as big questions da grã-filosofia cedem o lugar para as questões menores, com recortes mais bem delimitados, e há a vitória da filosofia técnica por toda a parte, inclusive no Brasil –, não ficou claro para mim, repito, se o autor, Crisóstomo, vê essa vitória como algo positivo e digno de ser festejado ou a derrota do pensamento e algo a ser repudiado: quem está na boa rota é Carnap ou Heidegger? E entre nós?

Feito o inventário do livro, o qual apesar da defasagem da data eu de pronto recomendo à nossa comunidade espalhada pelos quatro cantos do país, como no caso do capítulo de Tugendhat com suas argutas reflexões sobre a situação de filosofia em nossas universidades, não faltando um elenco de recomendações de suma atualidade, eu termino essas notas, sem poder me reportar aos outros co-autores, dirigindo-me mais uma vez a Crisóstomo, com a pergunta: se na perspectiva da filosofia civil ele endossaria a distinção efetuada por Cruz Costa, no tocante à filosofia feita no Brasil, entre os “glosadores”, com suas cópias e comentários, e os pragmáticos com seus “equipamentos de campanha” dirigidos à ação e visando a transformação do mundo? E ainda: se ele diria que Cruz Costa é partidário da filosofia civil tal como ele, Crisóstomo, a entende? 

Acrescento, ao concluir, que as respostas não tardaram e foram um duplo sim: à distinção e ao alinhamento. 4

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1 O texto de Tugendhat foi recém republicado, quase integral, na Coluna Anpof de 06 de dez. 2018, sob o título A Filosofia é Mais um Exercício do que um Conteúdo (N. Ed.)

2 A parte final da referida epígrafe de Giannotti conclui: ”A situação hoje é totalmente diversa, porque agora nós chegamos num momento em que o departamento [Filosofia, USP] se esgotou, que esse pensamento técnico também se esgotou, transformou-se numa espécie de engessamento do pensamento, não é isso? Eu mesmo estou aconselhando meus últimos alunos a que procurem mais o ensaísmo, que abandonem a tese francesa como forma.” (N. Ed.)

3 O livro de Ivan Domingues é o notável Filosofia no Brasil, Legados e Perspectivas, S. P.: Ed. Unesp, 2017. Nos últimos anos, um outro conhecido filósofo brasileiro de formação técnica, modelo exegético- uspiano, Paulo Margutti Pinto, também resolveu ocupar-se do desenvolvimento histórico da filosofia no Brasil, com o valoroso História da Filosofia do Brasil, S.P.: Ed. Loyola, 2013, 1º. vol., volumes seguintes em vias de publicação. (N. Ed.).

4 Crisóstomo informa que a edição do Filosofia Civil em inglês, programada para janeiro de 2019, já sairá com um registro e uma caracterização, ainda que breves, da filosofia analítica anglo-americana entre nós, pouco visível nas edições anteriores (do Filosofia Civil) pela preocupação do autor em sublinhar um quase incontrastado predomínio escolástico-continental na nossa filosofia universitária, técnica, de matriz uspiana, das últimas décadas (N. Ed.).

 

DO MESMO AUTOR

Uma Agenda para a Filosofia no Brasil - Horizonte de um Projeto Coletivo

Ivan Domingues

UFMG

15/09/2020 • Coluna ANPOF