Novos Materialismos Poéticos de um jeito "bem nosso"!

Leonardo Rangel

Professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Educação Profissional e Tecnológica do Instituto Federal da Bahia; Membro do GT Poética Pragmática.

27/10/2022 • Coluna ANPOF

Por que, podemos perguntar, o sensível, não-linguístico, não poderia ser tomado de modo não empirista abstrato, mas como mediado em primeiro lugar pela prática, por uma significadora interação sensível com ele, envolvida assim por nossos propósitos, interesses, gostos, fantasias e caprichos? (JCS) [1] 

 

Falar a respeito dos novos materialismos não é tarefa fácil, porque corremos o risco de nos encontrar em complexo labirinto, sobretudo pelo fato de eles tentarem operar por meio de gramáticas não dicotômicas e pragmáticas, o que nos faz ter de ir contra grande parte da nossa herança, que sempre fez questão de marcar e separar exageradamente o prático do teórico, o físico do conceitual, o corpo da mente, a natureza da cultura etc., e nos tornar o que o filósofo contemporâneo alemão Sloterdijk [2] chama de “bastardo/a”: aquele/a capaz de incorporar novos modos de estar lançado no mundo, com o mundo. Ou ter a coragem de assumir, com Krenak [3], nossa primitividade, ao afirmar que também somos parte da natureza, somos filhos/as da terra. “A ideia de nós, os humanos, nos descolarmos da terra, vivendo numa abstração civilizatória, é absurda. Ela suprime a diversidade, nega a pluralidade das formas de vida, de existência e de hábitos” [4]. Meu objetivo, neste ensaio, é o de navegar através de algumas linhas de força que emergem dessa atmosfera. 

Antes de prosseguir, gostaria de fazer uma observação gnosiológica, pois ela se refletirá em todo texto. Venho de uma formação estruturalista da/na antropologia, mas sempre estudando os movimentos do pós-estruturalismo, ambos com dominância da escola francesa ou da chamada filosofia continental. Acontece que o curto-circuito filosófico aconteceu quando comecei a ler a arejada filosofia anglo-saxônica, principalmente seu foco pragmático no mundo da vida. Aliás, devo admitir que muitas coisas que já tinha visto na própria filosofia continental passaram a fazer mais sentido, ganharam novos ares. E que a noção de ser-no-mundo de Heidegger e a importância conferida por ele ao instrumental nos modos de habitar o mundo passaram a ser compreendidas de modo mais situado, encarnado. Essa aprendizagem me ensinou duas coisas: (i) o pós-estruturalismo é muito mais influenciado pela fenomenologia do que costumamos admitir; e, (ii) para transformar nossa herança academicista – que tende a inferiorizar as técnicas, as práticas –, a arejada filosofia anglo-saxônica, especialmente seu foco pragmático, tem muito a nos ensinar.  

Essa relação da fenomenologia com o pós-estruturalismo pode ser mais profícua se tivermos atentos à precaução de Rabinow e Dreyfus [5], quando, interpretando Foucault, comentam que ele: (i) contornou o estruturalismo porque, percebendo que este eliminava toda noção de sentido, preferiu substituí-lo por um modelo formal do comportamento que apresentasse as transformações governadas por regras mas sem elementos de significação (nessa época, ele fora acusado de ser positivista, porque seu método guardava aproximações com o behaviorismo); (ii) evitou a tendência fenomenológica de ligar todo sentido à atividade de um sujeito transcendental e autônomo; (iii) fugiu da tentativa hermenêutica de ler os sentidos implícitos das práticas sociais, bem como evitou buscar um sentido mais profundo e diferente do qual os agentes têm vaga consciência. Foi por isso que assegurou que sua compreensão da história era diferente da concepção weberiana, vez que não era dependente da teleologia da razão nem da procura pelas intencionalidades das ações.           

A precaução pragmática de que nossa interface com o mundo envolve toda nossa corporalidade é de fundamental importância para ousarmos ultrapassar a metafísica cognitivista dominante e seus dualismos limitadores que opõem o prático ao teórico, o físico ao conceitual, o corpo à mente, a natureza à cultura etc. Essa compreensão crítica da metafisica, atualmente conhecida como “novos materialismos”, vem influenciando estudos ecológicos, escritos feministas, novas abordagens em neurociências, estudos em CTS (ciência, tecnologia e sociedade) etc. Deleuze, um dos autores mais citados e influentes nos círculos dos novos materialismos no país, afirma ter se tornado um marxista heterodoxo ao longo da sua obra. Esse autoproclamado materialismo tem reverberado em várias áreas do conhecimento no Brasil, e já se encontra disseminado em muitas pesquisas, desenvolvidas em diversas regiões. Acontece que o “materialismo” de Deleuze ainda parece enviesado pelo antirrepresentacionismo linguístico, principalmente se arrazoarmos que o autor sempre esteve muito concentrado em seus movimentos com a literatura – especialmente através de vasto e importante diálogo com autores/as da tradição anglo-saxônica –, ao ponto de parecer envolver precipitadamente as diversas práticas sociais a ela. 

Ao fim da sua obra, Deleuze, em sua tão importante política dos afetos, explica-a por meio dos movimentos que advêm dos encontros com os personagens conceituais. Conceber os afetos do mundo, que nos formam como personagens, é muito redutor. E afirmar que são a priori conceituais é mais redutor ainda, pois é escolher um dos lados da gramática dicotômica que ele tão bem soube criticar, ao invés de avançar com sua implosão. Aliás, sua escolha fica evidente na desconcertante noção de corpos sem órgãos, de inspiração artaudiana. As experimentações são basilares em Deleuze, mas em algum momento elas parecem carecer de sustentação pela sua insistência em não dar a devida importância às dinâmicas que acontecem na dependência dos fenômenos físicos. Continuar negando a parte física dos corpos é avançar com o fenômeno da virtualização do mundo, como aponta Dreyfus. Tal virtualização é preponderante no “materialismo” heterodoxo de Deleuze. A saída, porém, não é a escolha pelo fisicalismo, arregimentando as afetações aos órgãos. Ela parece envolver-se muito mais com o que Crisóstomo de Souza consegue fazer no brilhante artigo “O mundo bem nosso: antirrepresentacionismo poiético-pragmático, não linguístico”[6], ao apontar que os emaranhados prático-sensíveis, forjados pelos diversos movimentos dos corpos nas interfaces com o mundo, criam um mundo “bem nosso”.  

O materialismo prático-sensível e poético, criado por Crisóstomo, parece ser simultaneamente mais amplo e situado, porque não fica circunscrito às fantásticas práticas fabuladas nas literaturas, e consegue, através de verve mais pragmática e experimental, transitar mais facilmente pelas diversas atividades que acontecem no mundo. Tal materialismo prático-sensível é potentemente sintonizado por quatro pressupostos: (i) os emaranhados se desdobram em intencionalidades prático-sensíveis, e elas são significadoras (notem que não há nenhuma dependência dicotômica, nenhum corte privilegiando o conceitual em detrimento do físico); (ii) o real se desdobra, a princípio, como atividade sensível (incluindo os humanos) e os artefatos (O tato é um sentido que nos ata de modo sensível ao mundo; é interessante compreender como isso tem se desdobrado na psicanálise, filosofia e antropologia contemporâneas); (iii) a ação humana é concernida privilegiadamente como poiesis (fazer criador que faz as coisas brotarem no mundo); (iv) não há formalização universal na normatividade, pois as regras são criadas na “prática social sensível de lidar com o mundo e uns com os outros, orientada por propósitos, os quais também brotam ou se modulam nela e a partir dela”[7].   

Só gostaríamos de tomar a liberdade para alterar levemente o enunciado iii, e propor que a escritura seja: “a ação é concernida privilegiadamente como poiesis”, porque acreditamos que o texto de Crisóstomo se sintoniza mais com a segunda proposição, e dialoga com Ingold [8] quando este nos diz que os fluxos não devem ser confundidos com agência, uma das críticas enderençadas por ele à teoria social do ator-rede, pois “seguir esses materiais é entrar num mundo, por assim dizer, em fervura constante”[9].  Tal precaução potencializa o pragmatismo e o faz gravitar na atmosfera de estarmos envolvidos/as no mundo, com o mundo, feito das/nas/com as práticas sensíveis como poiesis, porque a prevalência do/a praticante nos diz que “o que o cozinheiro, o alquimista e o pintor fazem não é impor forma à matéria, mas reunir materiais diversos e combinar e redirecionar seu fluxo tentando antecipar aquilo que irá emergir”[10]. Esses fluxos materiais acontecem de maneiras sempre emaranhadas, de um jeito “bem nosso”, sobretudo porque “o mundo seria, mesmo no seu nível mais primário, básico, natural, um conjunto de sensações qualitativas, gostos, cores e mais, a que reagimos, que buscamos ou evitamos comportamentalmente dessa ou daquela maneira” [11], de um jeito “bem nosso”.  


Notas

[1]  SOUZA, José Crisóstomo de. O mundo bem nosso: antirrepresentacionismo poiético-pragmático, não linguístico. Cognitio, São Paulo, v. 16, n. 2, p. 335-360, jul./dez. 2015. p. 351. Cf. https://revistas.pucsp.br/index.php/cognitiofilosofia/article/view/27770

[2]  SLOTERDIJK, Peter.  Los hijos terribles de la Edad Moderna: Sobre el experimento antigenealógico de la modernidade. Traducción del alemán de Isidoro Reguera. Madrid: Siruela, 2015. 

[3]  KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 

[4]  Op. Cit., p. 22-23.

[5]  RABINOW, Paul; DREYFUS, Hubert. Michel Foucault: uma trajetória filosófica para além do estruturalismo e da hermenêutica. Tradução de Vera Porto Carrero. R.J.: Forense Universitária, 1995. 

[6]  Op. Cit.

[7]  Op. Cit., p. 336-337.   

[8]  INGOLD, Tim. Trazendo as coisas de volta à vida: emaranhados criativos num mundo de materiais. Horizontes Antropológicos, Porto Alegre, ano 18, n. 37, p. 25-44, jan./jun. p. 35. Cf. https://www.scielo.br/j/ha/a/JRMDwSmzv4Cm9m9fTbLSBMs/

[9]  Op. Cit., p. 35.

[10]  Op. Cit., p. 36.

[11]  SOUZA, José Crisóstomo de. Op. Cit., p. 347.