O antifilósofo

Filipe Campello

Doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, pós-doutorado pela New School for Social Research (Nova York). Professor de Filosofia da Universidade Federal de Pernambuco

18/04/2019 • Coluna ANPOF

Prof. Dr. Filipe Campello (1)

Certas ideias em destaque no Brasil de hoje deveriam provocar indignação não só naqueles com posições políticas de esquerda, mas em quaisquer simpatizantes da tradição liberal. Pois embora divirjam sobre vários assuntos, esses dois lados do espectro político possuem visões semelhantes sobre a defesa da dignidade humana, da liberdade de expressão ou da igualdade de gênero, por exemplo.

De modo similar, em assuntos como o aquecimento global, o efeito das vacinas na saúde humana e a forma do planeta Terra, ambos os lados preferem apoiar-se antes no consenso científico do que em exóticas teorias da conspiração. Isso acontece porque tais posições compartilhadas estão associadas ao próprio progresso moral e científico das sociedades modernas. Nada tem a ver com “marxismo cultural”.


Mas o estado atual do debate público brasileiro tornou-se tão distópico que, se um liberal sair em defesa de alguma dessas posições, será rotulado de esquerdista e sofrerá ataques virulentos nas redes sociais.

Por mais heterodoxas que possam ser essas ideias, há um problema que está aquém até do conteúdo delas. Trata-se de uma disfunção na “forma” de discuti-las - nas normas básicas que configuram os atos de pensar, argumentar e defender ideias. Ora, o uso refletido dessas normas é um elemento fundador da filosofia ocidental, mas viceja hoje uma grande confusão, inclusive sobre isso.

Ainda que a própria concepção de filosofia, inclusive do seu papel e do seu domínio específico, tenha sido objeto de reflexão por parte dos filósofos e filósofas, algumas de suas características são mais ou menos consensuais.

Primeiro, todo pensamento filosófico precisa estar aberto à crítica. Embora difira das ciências empíricas, por não submeter hipóteses a testes experimentais, a filosofia também se ancora em evidências que só podem ser reconhecidas como tais se estiverem disponíveis ao escrutínio racional. 

Esse problema de fundamentação está ligado ao próprio estatuto de “objetividade” ou “cientificidade” das humanidades – querela que remonta a discussões do início da modernidade, intensificando-se na segunda metade do século XVIII. Nas humanidades, em particular em contribuições como as da filosofia, há um critério distinto das assim chamadas ciências duras: o da recepção de um pensamento. O peso e a importância dados a uma determinada obra filosófica cabem à sua recepção, à sua capacidade de resistir ao tempo. Não cabem ao seu autor, mas a quem o lê.

Esse critério cumpre um papel equivalente à objetividade ou fundamentação empírica de outras áreas. Isso não quer dizer que pessoas com formação e atuação em outras áreas não possam expressar uma reflexão de caráter filosófico, como não é raro na literatura, na sociologia ou na neurociência. Tanto outras áreas podem estar imbuídas de conteúdo filosófico quanto é tarefa da filosofia pôr-se em diálogo com elas.

Em segundo lugar, em filosofia não há “gurus”, portadores da verdade absoluta. Pelo contrário, a filosofia parte do questionamento do que se coloca como verdade. Um dos seus pilares é a máxima de pensar por si mesmo. Ela não é um campo somente de respostas, mas sobretudo de questionamento.

Um dos principais pilares da filosofia é, portanto, o de pensar por si mesmo. Kant, no seu conhecido opúsculo “O que é o esclarecimento?”, define o esclarecimento como a saída da menoridade. O termo em alemão que Kant utiliza para maioridade é “Mündigkeit”, que remete à boca (Mund): a maioridade como aprender a falar por si mesmo. Não ensina filosofia quem cultiva séquitos de seguidores; ensiná-la é, antes, orientar o estudante na arte de pensar por si mesmo, inclusive estimulando a possibilidade de discordância.

Por fim, as universidades são as instituições modernas nas quais as características do debate filosófico, mencionadas acima, podem ser exercitadas, ensinadas e aperfeiçoadas com o maior grau de competência possível.

O significado da academia remete a Platão e à escola de Atenas, como retratada no famoso afresco de Rafael, onde já encontramos a importância do que seria uma formação “acadêmica” em filosofia. Mas é principalmente a partir de Kant – quando surge mais propriamente a ideia da profissão do filósofo como professor universitário tal qual conhecemos hoje – que vemos a quase totalidade dos filósofos tendo sido formado e se tornado professores universitários de filosofia, como Hegel, Heidegger, Wittgenstein ou Hannah Arendt.

Certamente, não é imprescindível fazer parte do mundo acadêmico institucionalizado para se fazer boa filosofia, mas a discussão filosófica de qualidade é sobretudo feita nas universidades.

Nessas três características da filosofia, o que está em jogo não é propriamente o conteúdo de uma tradição de pensamento, mas quais os critérios para avaliarmos a sua consistência. Ou seja, não tanto quais são essas ideias, mas como elas são defendidas e postas ao escrutínio público. Este embate se dá através de meios que são reconhecidos pela própria comunidade: publicação de artigos científicos, debates acadêmicos ou pela mídia.

Não por acaso, levantar suspeitas sobre a credibilidade e a relevância desses meios é geralmente o primeiro passo para solapar as condições de qualquer debate filosófico genuíno. Tal estratégia é o que, na lógica, se chama de envenenar o poço: uma falácia na qual se desqualifica o oponente do debate com a intenção de ridicularizar tudo o que ele tem a dizer. A argumentação dá lugar ao deboche, em que se despreza qualquer crítica ou argumento contrário. É o fim do diálogo, ou, como vimos numa declaração circulada recentemente: diante da tentativa do diálogo, a melhor saída é o xingamento. Trata-se, em resumo, do descredenciamento antifilosófico da própria filosofia.

Um outro poderoso aliado nessa cruzada é a não menos antifilosófica defesa de teorias da conspiração. Apoiar uma argumentação nisso é novamente fragilizar a possibilidade da crítica. Diante de ideias abraçadas como verdades indiscutíveis, de teses apoiadas em teorias da conspiração, de propagandas visando anular interlocutores só por estarem na universidade ou por serem jornalistas, não há o que se debater. 

A crítica à ciência ou à pretensão de objetividade da história não é, contudo, per se antifilosófica. Isso foi feito por diversos filósofos, de Nietzsche a Richard Rorty. Segundo essas tradições, independente de haver um correspondente no mundo de nossas crenças (o que na filosofia se chama de posições realistas ou antirrealistas), nossas crenças ou a própria ciência seriam modos de melhor descrever o mundo e de nele vivermos. O que está em jogo, portanto, não é a crítica à ciência ou mesmo à filosofia, mas a forma como é feita.

O mínimo que podemos fazer, para não sermos levianos, é defender o que torna possível qualquer debate, o que faz de qualquer ideia algo digno de ser discutido. A comunhão de algumas posições entre a esquerda e a direita liberal, mencionada acima, deriva desse compromisso filosófico e civilizatório fundamental.

Se hoje há o predomínio de ideias comuns tanto à esquerda quanto ao espectro liberal, isto é resultado de um embate criterioso acerca de ideias e teorias que são postas à prova e reconhecidas na sua validade.

A história da filosofia foi escrita sobretudo por filósofos e filósofas que se colocavam continuamente em diálogo com seus pares, e, a partir disso, repensaram suas próprias ideias. A postura daqueles que fazem filosofia é o de dar a cara a tapa: certamente, a de acreditar na força de suas próprias ideias, mas também a de ter humildade em escutar seus críticos.
 
Quem se coloca, arrogantemente, numa posição de guru, age contra o próprio exercício filosófico. Fazer filosofia, boa ou má, é primeiramente tornar-se independente de gurus. Pensar por si mesmo é uma tarefa árdua e que pode colocar em questão até mesmo aquilo em que acreditamos.

Mas esse é o fascínio de se fazer filosofia. Assumir essa postura não é uma batalha entre esquerda e direita, menos ainda entre marxismo cultural e conservadorismo; é uma batalha contra o obscurantismo, contra a ridicularização das próprias premissas da reflexão filosófica. Qualquer um que seja contra tal retrocesso civilizatório deveria estar na linha de frente dessa batalha.

 

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(1) FILIPE CAMPELLO, Doutor em filosofia pela Universidade de Frankfurt, pós-doutorado pela New School for Social Research (Nova York) e professor de filosofia da Universidade Federal de Pernambuco.

 

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