O Autor/Intelectual
Ygor Borba
Especialista em Ensino de Filosofia no Ensino Médio (Faced-UFBA) e Mestre em Cultura e Sociedade (UFBA)
28/07/2022 • Coluna ANPOF
Cada teoria assimilada, interpretada, reinventada e apropriada faz emergir dúvidas ou revela caminhos possíveis para pensarmos problemas que realmente nos tocam e, desta forma, assumindo postura de autor, enxergarmos nosso presente e a sociedade a nossa volta. Mas afinal, qual seria o papel do autor? O que fazer com nossas influências intelectuais? Como fazê-las falar por nós? Antes de responder essas perguntas, seria interessante responder outra, que englobaria todas elas: Quem é o autor? Assim,
[...] o autor não é uma fonte infinita de significações que viriam preencher a obra, o autor não precede as obras. Ele é um certo princípio funcional pelo qual, em nossa cultura, delimita-se, exclui-se ou seleciona-se: em suma, o princípio pelo qual se entrava a livre circulação, a livre manipulação, a livre composição, decomposição, recomposição da ficção. (FOUCAULT, 2009, p. 234).
Michel Foucault em O que é o Autor? (2009) nos diz que a função autor não passaria, como um nome próprio, no interior de um discurso [1] ao sujeito real e exterior que o produziu. Contudo, ele recorre de qualquer maneira aos limites do texto, que ele o recorta, segue suas fundamentações, manifesta o modo de ser, ou simplesmente o define. O autor manifesta a ocorrência de certo conjunto de discursos, e se refere ao status desses discursos no interior de uma sociedade e de uma cultura. Assim, a função autor é característica do modo de existência no interior de uma sociedade. Que importa quem fala? Para Foucault, essa inferência perpassa todo pensamento ocidental e, se afirma como um princípio ético, talvez o mais fundamental da prática do conhecimento contemporâneo. O apagamento do autor tornou-se, desde então, para a epistemologia moderna, um tema dos debates filosóficos e intelectuais em geral. Mas, o essencial não seria constatar uma vez mais seu desaparecimento, pois, seria preciso descobrir como lugar vazio – ao mesmo tempo indiferente e obrigatório os locais onde sua função é exercida. Para melhor entendermos seu papel, Foucault define quatro relações da função do objeto autor: 1 – o nome do autor: com a sua impossibilidade de tratá-lo como uma descrição definida e como um nome próprio e comum; 2 – a relação de apropriação: o autor não seria exatamente nem o proprietário nem o responsável por seus textos, não é nem o produtor nem o inventor deles; 3 – a relação de atribuição: o autor, portanto, seria sem dúvida, aquele a quem se pode atribuir o que foi dito ou escrito. Todavia, a atribuição (mesmo quando se trata de um autor conhecido) é o resultado de operações críticas complexas e raramente justificadas; 4 – posição do autor nos diferentes tipos de discursos ou em campos discursivos, ou seja, a posição do autor no uso de funções dos prefácios; do narrador, do confidente, do memorialista, entre outros.
Portanto, o nome do autor funcionaria para caracterizar um modo de ser do discurso: para um discurso, o fato de haver um nome de autor, o fato de que se possa dizer "isso foi escrito por tal pessoa", ou "tal pessoa é o autor disso", indica que esse discurso não é uma palavra cotidiana, indiferente, uma palavra imediatamente aceitável, mas que se trata de uma palavra que deveria ser assimilada de certa maneira e que pode, em um determinado meio social e cultural, receber notoriedade. Ora, com essa discussão Foucault quer nos mostrar como o objeto “autor” é concebido para se tornar, entre outras coisas, meio de proliferação de conhecimento nas civilizações ocidentais.
Em suma, o conceito ou a função autor que Foucault tentou descrever é, sem dúvida, apenas uma das especificações possíveis da função sujeito sendo esta possível ou necessária. Tendo em vista as modificações históricas ocorridas, não parece indispensável, que a função autor permaneça constante em sua forma, em sua complexidade e mesmo em sua existência. Pode-se imaginar uma sociedade em que os discursos circulassem e fossem aceitos sem que a função autor jamais aparecesse. Todos os discursos sejam quais seja seu status, sua forma, seu valor e seja qual for o tratamento que se dê a eles, desenvolviam-se no anonimato. Por fim, a discussão sobre o que seria o Autor analisada e exposta pela filosofia foucaultiana no ano de 1969, perpassa diversos campos do conhecimento e abre caminhos para pensarmos o papel do intelectual na atualidade.
Edward Said mais de duas décadas depois em Representações do Intelectual (2005), retoma esta problematização ao discutir o papel do intelectual. Ele pontua que haveria o perigo de que a figura ou imagem do intelectual pudesse desaparecer, e que ele poderia tornar-se apenas mais um profissional ou uma figura numa tendência social. Said quer enfatizar, portanto, o fato do intelectual ser um sujeito com um papel público na sociedade, que não pode ser reduzido simplesmente a um profissional sem rosto, um membro eficiente de uma classe, que só quer cuidar de suas coisas e de seus interesses. A questão central de Said é o fato de o intelectual ser um sujeito dotado de uma vocação para representar, dar corpo e articular uma mensagem, um ponto de vista, uma atitude filosófica ou opinião para e por um público. E esse papel encerra certa sensibilidade, porque, não poderia ser desempenhado sem a consciência de ser alguém cuja função seria levantar publicamente questões embaraçosas, confrontar ortodoxias e dogmas (mais do que cria-las); isto é, alguém que não pode ser facilmente absolvido por governos ou corporações, e cuja “razão de ser” é representar todos os sujeitos e todos os problemas que são sistematicamente esquecidos ou invisibilizados. Desta forma:
[...] o intelectual age com base em princípios universais: que todos os seres humanos tem direito de contar com padrões de comportamento decentes quanto a liberdade e a justiça da parte dos poderes ou nações do mundo, e que as violações deliberadas ou inadvertidas desses padrões tem de ser corajosamente denunciadas e combatidas. [...] O que o intelectual menos deveria fazer e atuar para que seu público se sinta bem: o importante é causar embaraço, ser do contra e até mesmo desagradável. (SAID, 2005, p. 26-27).
O objetivo da atividade reflexiva seria então, promover a liberdade humana e o conhecimento, como também, pensar a vocação intelectual como uma prática que mantém o pensador em um estado de alerta constante, de disposição perpétua para não permitir que meias verdades ou ideias preconcebidas norteiem os sujeitos. Said entende que acontecem proliferações de estudos sobre intelectuais, porém, com demasiado foco em sua definição, e pouca atenção tem se dado à imagem, às características pessoais, à intervenção efetiva e ao desempenho que juntos, constituem a própria força vital de todo verdadeiro intelectual.
Para Said, no fim das contas, o que interessa é o intelectual enquanto figura representativa — sujeito que visivelmente representa certo ponto de vista, ou seja, é alguém que articula representações a um público, apesar de todo tipo de barreiras. Consequentemente, os intelectuais seriam sujeitos com vocação para a arte de representar, seja escrevendo, falando, ensinando ou aparecendo em diversos meios de comunicação. Essa vocação seria importante na medida em que é reconhecível publicamente e envolve, ao mesmo tempo, compromisso e risco, ousadia e vulnerabilidade.
Enfim, o intelectual é para Said antes de tudo, um interlocutor/intermediador das diversas formas de produzir conhecimentos e que, sabe como articular, por outro lado, as múltiplas formas de manifestação dos saberes “oficiais” e “não-oficiais” para ampliar sua pesquisa e conhecimento do mundo, não porque o intelectual com essa disposição teria que concordar com as diversas formas de produção de conhecimento. Entretanto, o intelectual com sua postura de interlocutor/intermediador se abre a possibilidade de se reinventar para, da melhor maneira possível, propagar ou facilitar a inserção de outros conhecimentos e, consequentemente, evitar qualquer tipo de preconceito teórico.
Portanto, em cada sociedade o trabalho do intelectual/autor deve ser desenvolvido para atender, ao mesmo tempo, aos interesses desta, bem como, dos sujeitos que a compõe. Foi dessa combinação de interesses que emergiriam os fundamentos essenciais que devem nortear a elaboração dos conteúdos das diversas áreas do conhecimento tais como: descobertas científicas, produções artísticas e culturais, entre outros. Esses conteúdos são a base para que os sujeitos interajam de forma decisiva no mundo que os cercam. Consequentemente, o trabalho do intelectual/autor deve voltar-se para atividades críticas que nos forneçam ferramentas reflexivas de intervenção na realidade cultural e social de cada lugar, como também, ter um diálogo constante com as diferentes formas de conhecimento. Essa possibilidade de postura crítica frente aos problemas do nosso cotidiano social e cultural que às reflexão destes dois autores no inspiram.
Referências
FOUCAULT, Michel. 1969 – O que é um Autor? In: Ditos & Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Organização e seleção de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução: Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª ed. SP: Forense Universitária, 2009, p. 264-298.
SAID, Edward W. Representações do intelectual: as conferências Reith de 1993. SP: Cia das Letras, 2005.
Notas
[1] Para Foucault o discurso é uma rede de afirmações que são constituídas de um número limitado de formas de conhecimentos para os quais podemos definir um conjunto de condições de existência para tudo na vida.