O conservador (i)moral
Wendel de Holanda P. Campelo
Doutor em Filosofia pela UFMG e professor adjunto de Filosofia do IFPA
15/10/2021 • Coluna ANPOF
Em sua obra, Kiekegaard defende que os verdadeiros cristãos seriam, na verdade, poucos. De fato, a verdade incômoda da devoção cristã é que, pela caminhada da fé, haverá inumeráveis ocasiões onde o crente vai se deparar consigo mesmo burlando seus próprios preceitos. Não necessariamente por que não os leve tão à sério, mas porque muitos deles são bastante difíceis de pôr em prática. É aí que reside o problema da hipocrisia religiosa: o crente reiteradas vezes não segue seu ideal moral, pois, embora reconheça a falibilidade humana, tem o próprio Deus infalível - encarnado em seu filho - como modelo de ação virtuosa.
Neste sentido, há uma ambivalência que sempre oscila no caráter cristão: de um lado temos o modelo do santo e, do outro, o do pecador. A humanidade estaria, pois, entre essas duas formas de existência aparentemente antagônicas, uns para mais e outros para menos. A propósito, muitos cristãos não se identificam propriamente com a religião pela via da virtude, mas optam pela via da resignação, na medida em que julgam ser muito difícil, ou mesmo impossível, que a humanidade se livre completamente do pecado. Isso talvez explique um pouco do comportamento obsceno e repulsivo de certos cristãos conversadores, na medida que buscam uma relação com a fé religiosa de maneira bem menos otimista no que toca o caráter humano, baseados num pessimismo antropológico sobre o que esperar das outras pessoas.
Sob essas condições, a moralidade ideal pregada pelo cristianismo que, para estes crentes seria impraticável, só seria minimamente viável dentro de um número seleto de pessoas santas ou mesmo para ninguém - pois quem realmente daria a outra face para bater? Por conseguinte, não é tão exagerado dizer que, de forma bastante paradoxal, o conservadorismo religioso tem sido o bastião da descrença no ideal moral do cristianismo. Tendo em vista que o conservador irá encarar, com bastante desconfiança, o lado virtuoso das criaturas humanas, na medida em que vê a caminhada da humanidade na Terra como a própria história do decaimento e da corrupção pelo pecado original. Isso significa que o conservadorismo vê na salvação não necessariamente um caminho de ascese espiritual, mas antes uma posição conformista diante das penitências e do sofrimento na vida terrena: é impossível seguir o próprio Jesus de Nazaré no caminho da santidade, pois, sendo decaídas e corrompidas, as criaturas humanas não poderiam jamais ser melhoradas, sob o risco do seu aprimoramento moral, logo em seguida, se degenerar em vaidade e arrogância.
É claro que nem todos os cristãos pensam assim, tampouco todo conservador é cristão. Mas somos um país de maioria cristã, onde a personalidade burlesca frequentemente parece se misturar com uma espécie de moralismo cafona. Como é, por exemplo, o caso do nosso atual presidente da república. Neste sentido, lideranças, políticas ou religiosas, que ganham destaque midiático por defenderem posições reacionárias, não precisam propriamente se envergonhar tanto de pintar sua própria imagem de maneira tão grosseira e ignóbil. Tendo em vista que sua visão distorcida da moralidade humana converge respectivamente com uma forma degenerada de encarar a humanidade, além disso, nem o próprio crente (tal como ele próprio admite) está imune do pecado. Apenas a sua fé, talvez, o redimiria. É claro, ele também não sabe se sua fé é verdadeira ou não, já que, dada sua suposta índole maligna, poderia estar somente tentando enganar a si mesmo ou até o próprio Deus.
Para este cristão pessimista, o fato da natureza humana ser pecadora e precária, faz com que seus próprios vícios sejam, em certa medida, "aceitáveis", porque são inevitáveis, mas não precisam ser necessariamente corretos (num sentido forte). Quem julga é Deus, é claro. Não obstante, sua aposta na fé, fundada no medo da condenação final, o reprime de fazer algumas coisas, obrigando-o também assumir certos preceitos. Nota-se que estes preceitos não são necessariamente morais (no sentido forte, é claro), mas é uma obediência cega a uma conduta que se supõe imposta pelo próprio Deus. Se existe ainda quem acredita, por exemplo, que a mulher deve somente obedecer ao marido ou que a homossexualidade é um pecado mortal, não dispõe, hoje em dia, de um repertório argumentativo suficiente para sustentar tal crença. Portanto, a irracionalidade de certas posições conservadoras - muitas sustentadas em nome da religiã0 - corrobora que, no fim das contas, seu moralismo cafona é, no fundo, imoral.
Não obstante, rebaixar demais a humanidade a esse ponto, como um pretenso gesto de humildade da criatura diante do seu Criador, pode ter um preço muito alto, pois aí passaremos a tratar os outros sempre pelo viés daquilo que eles têm supostamente de pior, seremos então incapazes de enxergar qualquer coisa no ser humano de maneira boa. Simplesmente por subestimá-los demais. Iremos reiteradamente querer puni-los, aprisioná-los, encarcerá-los, controlá-los, além de querer o poder total da sua vida e da sua morte.
Ao que parece, o conservador que adere essas ideias sente a necessidade de se proteger de um suposto lado ruim dos reles mortais, mesmo sob o preço de se tornar bem parecido com tudo que odeia. A personalidade conservadora teme que a possibilidade de premiar, de dar oportunidade, ciência, arte, liberdade, saúde, poderia tornar os homens assaz mal-acostumados e preguiçosos - é mais ou menos isso que subjaz no discurso contrário à bolsa família, às cotas raciais, às oportunidades aos mais pobres. Em outras palavras, tudo isso, que aparece ser bom, é, no fundo, ruim. Dado que os seres humanos, vale ressaltar, seriam corrompidos em sua essência. É como arriscar demais, já que, na visão deles, a humanidade, por sua natureza pecaminosa, inevitavelmente arruinaria com tudo. Mas essa visão pequena sobre os homens nos torna também pessoas muito pequenas, sem orgulho nenhum, sem brio, sem alegria, sombrias demais, sem gozo algum pela vida.
De modo contrário, de maneira mais ou menos exagerada, é pintada a imagem de que, através de sua ascese revolucionária, o militante esquerdista incorporaria bem melhor certas virtudes cristãs do que o próprio crente dominical. Esculpido à imagem e à semelhança de Cristo, o esquerdista é aquele que, caricaturalmente, desprendido de bens materiais, defensor dos pobres e dos oprimidos, "faz o bem sem ver a quem": humanitarismo, generosidade, fraternidade, temperança, solidariedade, piedade são virtudes que transbordariam do seu caráter. Sendo assim, o esquerdismo seria a realização do ideal da religião cristão - ainda que sem Deus. Todavia, quem pensa assim, parte da convicção de que a rigidez moral - parecida com a da religião - deveria ser um norte dentro de um sistema moral secular.
É importante considerar que, neste momento político que vivemos, as pautas de costumes contaminaram fortemente o debate público. Grosso modo, existe dois sistemas morais em pauta: um reacionário e outro liberal, que disputam qual a melhor forma de se atingir o melhor para sociedade, seja pela via da resignação, seja pela via da generosidade. O reacionário não pretende melhorar o mundo, mas deixar como está (ou talvez até retroagir um pouquinho), talvez por que, no fundo, não acredite que as pessoas sejam merecedoras de viverem numa sociedade melhor do que esta que já existe. Já o segundo sistema prega justamente que o papel dos seres humanos é, pelo contrário, melhorar o mundo que vivem, visto que não há outro além deste.
No fim das contas, é importante notar que não devemos ceder tão completamente às nossas ideologias políticas (em geral, bastante fundadas em nossas opiniões morais). Talvez sejamos mais contraditórios do que acreditamos: às vezes somos progressistas em alguns pontos, mas conservadores em outros e vice-versa. O mundo não é tão preto no branco, assim. Devemos assumir o compromisso de não sermos tão simplórios consigo mesmo e com os outros. É talvez daí que avançaremos para um real debate ético-político.