O deboche e crítica: sobre a prática de um professor de Filosofia
Lucas Barreto Dias
Professor de Filosofia do IFCE, campus Fortaleza, e do Programa de Pós-graduação em Filosofia da UECE
30/04/2025 • Coluna ANPOF
Em colaboração com Associação Brasileira de Ensino de Filosofia (ABEFil)
e GT Filosofar e Ensinar a Filosofar da Anpof
Não é novidade falar hoje sobre a ascensão que partidos e políticos de extrema-direita têm galgado nos últimos anos. Suas origens podem ser rastreadas em distintas direções, mas são seus impactos que mobilizam esse texto. Em especial, chamo a atenção para elementos que passam a fazer parte da rotina de professores, sobretudo os que compõem as chamadas ciências humanas e, mais ainda, soando como deboche, os professores de Filosofia.
Muito se fala do fenômeno do pobre de direita, mas, dado o tema educacional, há um outro grupo que lhe é interconectado, mas que tem sua forma própria de existência. Quem quiser se aventurar no mais inóspito espaço da virtualidade amplamente acessível, pode fazer um estágio na seção de comentários das mais diversas redes sociais. Sem demora, qualquer menção crítica à extrema-direita e ao fascismo, ou mesmo a defesa de que pessoas devam ter onde morar e o que comer, facilmente se transforma em chamariz para os jovens conservadores defensores de bilionários. Certamente não se verá apenas adolescentes, mas, em minhas experiências etnológicas em tal ambiente, podemos ampliar para esse grupo os jovens adultos, bem como alguns adultos frustrados.
Ao jogar a isca nos comentários criticando a tentativa de golpe realizada no Brasil entre o fim de 2022 e o início de 2023, por exemplo, rapidamente aparece alguém com xingamentos mais generalistas, ou se tenta minimizar todo o ato orquestrado como algo desimportante ou, quando muito, vem alguém perguntar se eu sei o que é um golpe. Esse padrão se repete sob os mesmos mantras em assuntos ligeiramente diferentes, mas que respondam a um posicionamento mais à esquerda. Contudo, não demora muito para que alguém se dê ao trabalho de olhar no meu perfil e descobrir que sou professor – e, mais ainda – de Filosofia. Daí em diante essas características logo são usadas com deboche: primeiro, dizendo que professores nada sabem sobre esse assunto, segundo, que professores de Filosofia não apenas não teriam competência, eles não seriam confiáveis.
Aquilo que convencionou-se chamar de neoliberalismo se converteu em algo mais problemático e que está na base da extrema-direita: um libertarismo econômico misturado com conservadorismo moral. Vários outros temperos se somam a isso, como o nacionalismo, o racismo, a xenofobia etc., formas de categorizar indivíduos de maneira a os subalternizar. Disciplinas, como a Filosofia, que se colocam a pensar tais categorias problematizando suas raízes, estruturas e impactos, passam a ser o tio esquisito que ninguém queria na festa. Se a importação do American dream sob a forma do atual sonho empreendedor em nossa cultura brasileira se torna sinônimo de avanço, transformando o trabalhador CLT em piada enquanto exalta quem passa a ser um MEI e abandona seus direitos, o professor de Filosofia que olha com desconfiança para isso tudo e faz perguntas impertinentes se converte em uma versão contemporânea de Sócrates e se vê acusado de negar o deus do mercado e de corromper a juventude.
“Como um mero professor se atreve a questionar a coragem do empreendedor, que tanto luta contra um Estado malvado que lhe cobra tributos? Mais que isso, esse professor ainda tem a pachorra de corromper nossos jovens os induzindo a pensar, expondo contradições e os induzindo a desenvolver uma visão de mundo não convencional? O que sabe um professor de Filosofia sobre política e economia? Não acredito, ele ainda fala de questões religiosas em sala de aula? Só pode estar querendo converter nossos filhos ao ateísmo e ao comunismo”.
Esse parágrafo pode até soar exagerado para quem não for da área ou mesmo para alguns colegas, mas infelizmente é mais ordinário do que parece. Imagine: nossas aulas de Filosofia para o Ensino Médio tratam de assuntos como a relação entre a Mitologia grega e a Filosofia antiga, falamos de Agostinho e de Tomás de Aquino, sem falar na prova ontológica da existência de Deus na versão cartesiana, mas basta que se mencione o ceticismo de Hume ou o existencialismo ateu de Beauvoir e Sartre para que se esqueça a pluralidade de ideias apresentadas e se reduza tudo a uma suposta doutrinação anticristã. Quando o assunto é Ética e Filosofia política, bem, os problemas tendem a ser mais complexos, pois qualquer menção ao termo ‘comum’, como em bem comum, ou, mesmo, comunidade, se torna um possível modo de se dizer que há uma doutrinação comunista.
Confesso que eu, por mais que já tenha experienciado isso em sala aula, trabalho em um ambiente bastante confortável e que, em sua maioria, os debates com e entre os alunos costumam ser respeitosos e de bom nível. Minha situação, porém, é exceção, não regra. Quando volto ao mundo digital, em que o público se torna mais heterogêneo, o deboche e o desrespeito se afirmam como padrão. Na maioria, jovens que certamente são alunos de outros tantos professores de Filosofia.
Tornar-se empreendedor – e o influenciador digital acaba por se transformar em uma nova forma de empreendedor de si mesmo – vem se transformando em sonho coletivo de tal modo que a defesa de bilionários parece ser mais comum que a crítica à existência de tamanha concentração de riqueza. Argumentos de que cada bilionário gera milhões de miseráveis, ou de que o sucesso de um país capitalista depende da exploração de diversas outras nações não são suficientes. É como se na experiência do véu da ignorância de Ralws escolhêssemos por uma realidade em que não há problemas em grandes desigualdades, pois se acredita que é melhor poder ascender e fazer parte de uma elite, ainda que gerando miséria, do que vivermos todos em circunstâncias de dignidade.
Tratar de dignidade humana a partir de Kant se torna, portanto, um perigo aos olhos daqueles que têm no mérito o valor maior do ser humano. Sabemos, é claro, que o mérito nunca opera sozinho, mas essa maquiagem sobre as conquistas continua a ser impactante e a ganhar adeptos. O professor que ousa questionar isso se torna um indesejável, sua liberdade já não é mais válida e seu conhecimento passa a ser parte de uma “agenda” cultural de doutrinação.
Defender a pluralidade humana e criticar a irreflexão são, contudo, valores inegociáveis. Não há Filosofia possível sem a suspensão da realidade, colocar o mundo entre parênteses é pôr o mundo e suas contradições em evidência. Crítica e crise não têm a mesma raiz etimológica por acaso: a crise é o momento de desorganização e desigualdade, é quando um ou mais elementos se desconectam do todo do qual fazem parte e põem em risco primeiramente os outros e depois a si mesmos, pois que nunca deixaram de estar vinculados. O momento da crise, na medida em que desestabiliza, também desvela, cria espaço para repensar o atual modo de vida e julgar como queremos viver. A crítica é a forma pela qual nos contrapomos à preguiça do comportamento automático, é quando agimos apresentando a beleza e a feiura que nos cerca e que nem todo juízo é necessariamente igual; é quando corrompemos a juventude não as ensinando como devem pensar, mas que devem pensar. E, bem, isso significa questionar os valores atuais em que pessoas são sacrificadas em nome do deus do mercado, ou outros deuses que são mobilizados com a finalidade da dominação de uns sobre outros.
Para finalizar, gostaria de mencionar algo que sempre digo em minhas turmas em todo início de período letivo. Eu penso que a importância da Filosofia enquanto disciplina no ensino médio provém, pelo menos, de dois motivos. O primeiro: tentar entender um pensamento que não é o nosso; podemos até vir a concordar com ele no todo ou em parte, mas em nosso mundo atual, em que cada vez mais temos dificuldade de compreender o outro, a Filosofia é um convite à humildade de parar, ler, ouvir e pensar sobre um pensamento distinto do que temos. O segundo: aprender que as teorias filosóficas não são inquestionáveis, mas formas de dar sentido à existência, de compreender a realidade e, no mesmo movimento, perceber que são possíveis críticas a essas mesmas ideias. O mais interessante nisso, contudo, é perceber que concordaremos e discordaremos dos mais diversos argumentos; nos pegaremos intrigados por ideias que passarão a ser nossas, não por cópia, mas pela sua capacidade persuasiva, ao mesmo tempo que refutaremos aquelas que não nos parecem coerentes.
O pensamento autônomo não se desenvolve sozinho, mas em diálogo com quem convivemos e com aqueles que nos antecederam. Essa prática nos conduz a uma preocupação com o mundo em que vivemos e que deixaremos para os que nele nos sucederão. A arma da extrema-direita vai do deboche ao extermínio. Somos por ela indesejáveis. O que cabe para nós? Não sei se muito, não tenho receitas, mas resisto tentando transformar o pensamento em uma atividade coletiva: com amigos, com colegas, com alunos e mesmo nas redes sociais.
A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.