O Eichmann de Hannah Arendt

Adriano Correia

Professor da UFG e pesquisador do CNPq

02/07/2020 • Coluna ANPOF

Prof. Dr. Adriano Correia (UFG)

Este texto foi publicado no dia 30 de junho na Revista Estado da Arte,

inaugurando a parceria com a Coluna Anpof

 

Em um ensaio em homenagem a Bertolt Brecht para a revista The New Yorker (1966), coligido posteriormente na obra Homens em Tempos sombrios (Companhia das Letras,), Hannah Arendt menciona um trecho das notas de Brecht à obra A Resistível ascensão de Arturo Ui (1941), uma sátira da ascensão de Hitler ao poder: “Os grandes criminosos políticos têm de ser expostos de todos os modos, e especialmente pelo ridículo. Porquanto eles são acima de tudo não grandes criminosos políticos, mas os perpetradores de grandes crimes políticos, o que de modo algum é a mesma coisa. O fracasso nos empreendimentos de Hitler não significa que ele era um idiota, e a abrangência dos seus empreendimentos não significa que ele era um grande homem”.

A despeito de ter concebido este ensaio pouco após publicar o livro Eichmann em Jerusalém: Um relato sobre a banalidade do mal (Companhia das Letras, 1999), de 1963, apenas em uma entrevista concedida em 1973 a Roger Errera para a rede pública de rádio e TV da França (ORTF) Arendt estabelece uma relação entre a posição de Brecht e a sua própria em Eichmann em Jerusalém, afirmando que, embora chocante, a declaração é inteiramente verdadeira. Na entrevista, ela ainda cita outro trecho decisivo das notas de Brecht: “Se as classes dominantes permitem que um pequeno trapaceiro se torne um grande trapaceiro, ele não tem direito a uma posição privilegiada em nossa visão da história. Isto é, o fato de que ele tenha se tornado um grande trapaceiro e que o que ele faz tem grandes consequências nada acrescenta a sua estatura”. E ela conclui, com suas próprias palavras: “Não importa o que ele faz, se matou dez milhões de pessoas, ele é ainda um palhaço.” (The Last Interview and other conversations, Melville House, 2013).

Nesta entrevista, Arendt vincula Eichmann em Jerusalém às considerações de Brecht ao observar que uma de suas intenções principais em sua obra consistia em destruir a lenda da grandeza e da força demoníaca do mal, o que acabava por levar as pessoas a admirar os grandes malfeitores, ao menos na medida em que eram realizadores bem sucedidos de seus empreendimentos, não importa quais fossem estes. É claro que esta lenda a que ela se refere não foi destruída, o que indica o fato de biografias novelescas de grandes malfeitores como Hitler serem livros de cabeceira dos que aspiram ser empreendedores bem sucedidos.

Vários personagens emergidos com o nazismo interessaram a Arendt desde suas primevas análises do fenômeno totalitário, mas alguns lhe foram mais caros: os que se ajustaram prontamente à nova ordem, dos intelectuais oportunistas aos oportunistas de toda sorte; os que protagonizaram a concepção do regime, desde pequeno-burgueses a sádicos pervertidos; os aventureiros pais de família da crise do entre-guerras, dispostos a sacrificar toda sua dignidade pessoal à segurança dos seus; aqueles que se alinharam ao regime apenas por não parecerem possuir uma resposta plausível à pergunta “Por que não?”.

Adolf K. Eichmann, organizador da logística da deportação para os campos de extermínio julgado e condenado em Israel, com uma fala permeada de clichês, animado em seu próprio julgamento, autovangloriador, esquecediço, distraído, parecia incapaz, consoante a caracterização de Arendt, de compreender a natureza e a magnitude dos seus feitos — como quando disse no tribunal em Jerusalém que deveria ser premiado e não condenado por cumprir seus deveres, ou quando disse que seu maior pesar era ter dado um tapa em um funcionário judeu e que sua maior frustração foi não ter ascendido de tenente-coronel a uma patente superior. Em Eichmann em Jerusalém ela conclui: “Apesar de todos os esforços da promotoria, todo mundo percebia que esse homem não era um ‘monstro’, mas era difícil não desconfiar que fosse um palhaço” (p. 67).

A hipótese de Arendt é a de que Eichmann de modo algum era burro e que a razão de ele ter se tornado um dos maiores criminosos do século passado era simplesmente a irreflexão. Essa incapacidade de pensar, já mencionada por Arendt em As Origens do Totalitarismo como sendo uma consequência do acesso ao mundo apenas pela força autocoerciva da lógica ou da ideologia, é que estaria por trás de todos esses atos monstruosos para cuja perpetração a maldade, o interesse próprio ou o egoísmo não parecem ser necessários.

Hannah Arendt, no entanto, não pretende sustentar que Eichmann represente apenas um tipo de criminoso com problemas de caráter que se pode encontrar em pessoas comuns e “normais”. Ainda que ele não fosse propriamente um monstro, representava uma espécie totalmente nova de criminoso, não apenas por ser um burocrata que efetivamente não sujou suas mãos com o sangue de suas vítimas, mas também porque os crimes perpetrados por ele e os do seu grupo foram de fato monstruosos. A posição sustentada por Hannah Arendt a esse respeito, que tanta polêmica gerou e ainda gera, é a de que Eichmann e os muitos que eram como ele não eram monstros pervertidos, mas “terrível e assustadoramente normais”.

O que é distintivo em Eichmann, acima de tudo, é a sua incapacidade de avaliar as consequências devastadoras de seus atos, mesmo quando consideradas instrumentalmente como meios de autopromoção. O seu déficit moral, por assim dizer, se assenta na sua incapacidade de avaliar a desproporção entre estes dois termos: eficiência na sua função (aliada ao reconhecimento público) e a consequente destruição gratuita (que vai contra tudo o que já pôde conceber mesmo o utilitarismo mais rasteiro).

 sua incapacidade consistia, por exemplo, em não perceber que os seus atos, ainda que compatíveis com a ordem moral, jurídica e social instaurada pelo nazismo, não seriam coadunáveis com qualquer contexto moral, jurídico ou social até então existente ou imaginado. Para Hannah Arendt, ainda o fato de ser carreirista não o tornava um criminoso de grande estatura, um vilão movido por motivos arraigados, e sim um burocrata eficiente, que poderia ser o típico bom funcionário de qualquer empresa privada ou órgão público nas mãos de quem caiu uma tarefa criminosa gigantesca a realizar e não a declinou.

Para Arendt, Eichmann era uma figura comum, normal, sem qualquer virtude específica para além da capacidade notável de organização e de negociação. Eichmann seria um indivíduo não muito dotado em termos de inteligência, com convicções ideológicas vagas e precariamente articuladas, vagamente conhecedor do programa do partido. Seria movido por um carreirismo adesista e subserviente e, pretensioso, tenderia à mentira e ao autoengano quando se tratava de enaltecer ou apequenar seus feitos — alguém que aderiu à SS por não possuir uma boa resposta à pergunta “Por que não?”, embora se concebesse como um “idealista”, alguém que vivia para sua ideia.

Eichmann seria um tagarela que padecia em uma luta constante com o idioma materno, organizando sua expressão verbal em torno de clichês do oficialês que dizia ser seu verdadeiro idioma: mais que isso, diz ela, “ele sempre foi genuinamente incapaz de pronunciar uma única frase que não fosse um clichꔠ(Eichmann em Jerusalém, p. 61), algo que não o teria abandonado nem na ocasião da própria morte: suas últimas palavras não passavam de clichês da oratória fúnebre, contrastantes com as convicções que alegava possuir. Além de no subtítulo da obra, esta é a única ocasião no corpo do texto em que Arendt emprega a expressão “banalidade do mal”.

Ao caracterizar o Eichmann que se deu a ver ao longo do julgamento como um tipo ideal dotado de validade exemplar, em vez de arvorar-se em sua biografia, Arendt parecia supor que a sua configuração como um tipo poderia operar na compreensão dos fenômenos contemporâneos não subsumíveis sob a imagem do mal como o cair tentação, como o mal que é ilimitado precisamente por ser desarraigado das fragilidades humanas. A banalidade desse mal cristalizado na conduta de Eichmann se assentaria no fato de que ele não possui raízes, motivos egoístas e utilidade proporcionais a seus feitos: “A conspícua superficialidade do agente tornava impossível retraçar o mal incontestável de seus atos, em suas raízes e motivos, em quaisquer níveis mais profundos. Os atos eram monstruosos, mas o agente — ao menos aquele que estava em julgamento — era bastante comum, banal, e não demoníaco ou monstruoso” (Eichmann em Jerusalém, p. 311). A banalidade do mal residiria nessa incongruência. Isso não quer dizer que todo mal seja banal, superficial ou que haja um Eichmann em cada um de nós — nem que ninguém seja como ele.

Em 1946, muito antes da publicação de Eichmann em Jerusalém, Karl Jaspers comenta em uma carta a Arendt que temos de nos precaver de interpretar o nazismo em termos de grandeza satânica e conclui: “parece-me que temos de ver essas coisas em sua total banalidade, em sua prosaica trivialidade, porque isso é o que verdadeiramente os caracteriza. Bactérias podem causar epidemias que destroem nações, mas elas permanecem meramente bactérias”.

Arendt emprega uma imagem análoga em uma discussão epistolar com Gershom Scholem sobre Eichmann em Jerusalém em 1963: o mal que se manifesta nas ações de Eichmann, diz ela, “pode proliferar e devastar o mundo inteiro precisamente porque ele se espalha como fungo sobre a superfície”. Para Arendt, a categoria de grandeza não se aplica a Eichmann nem se lhe pode atribuir qualquer profundidade demoníaca, apesar dos esforços em sentido contrário. Certamente isto não se aplica a todo mal moral e político e foi objeto de muitas críticas bem fundadas, mas pode inspirar a compreensão de certas condutas em contextos críticos como o nosso.

 

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