O ensino de Filosofia diante do 'novíssimo' Ensino Médio
Christian Lindberg
Professor vinculado ao Programa de Pós-graduação em Filosofia da UFS e ao Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UFPE).
Taís Pereira
Professora vinculada ao Programa de Pós-graduação em Ensino de Filosofia do CEFET-RJ e ao Mestrado Profissional em Filosofia (PROF-FILO/UNIRIO).
13/08/2024 • Coluna ANPOF
Foi sancionada, no último dia 31 de julho, pelo presidente Lula (PT), a lei nº 14.945/2024, que tem por objetivo estabelecer as diretrizes para o Ensino Médio. O novo dispositivo legal surgiu após a pressão realizada, desde 2017, por estudantes, professores/as, pesquisadores/as e diversas entidades representativas da sociedade civil, a exemplo da ANPOF, que reivindicava a revogação do novo Ensino Médio (NEM).
A revogação não veio por completo. Em seu lugar, ocorreram algumas mudanças na última etapa da educação básica. A principal delas diz respeito à carga horária. Na lei nº 13.415/2017, um dos itens do NEM, o arranjo curricular era organizado da seguinte forma: 1.800 horas destinadas à Formação Geral Básica (FGB) e 1.200h aos itinerários formativos, totalizando 3.000h de aulas, no mínimo, ao longo do Ensino Médio. A atual determina que a carga horária da FGB seja de 2.400h e as 600h restantes fiquem designadas aos itinerários formativos. Porém, se o/a estudante optar pelo itinerário formação técnica-profissional, a carga horária da FGB reduz para 2.100h, podendo chegar a 1.800h, a depender do curso técnico que optar.
Há pontos que geram tensão, como, por exemplo: 1) A permissão para que o ensino médio presencial seja mediado por tecnologias; 2) A autorização para trocar parte da carga horária destinada à FGB por atividades laborais; 3) A manutenção do notório saber sem a devida regulamentação, permitindo a contratação de profissionais sem titulação mínima; 4) O fim do modelo pedagógico em vigor nos Institutos Federais, o denominado Ensino Médio Técnico Integrado, conhecido pelo seu nível de excelência educacional.
A Filosofia retornou a ter o status de componente obrigatório?
Como é de amplo conhecimento, o Ensino de Filosofia perdeu seu status disciplinar em 2017, deixando de ser obrigatório. Ele foi diluído e fragmentado na área de conhecimento denominada Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHSA). Além disso, a lei nº 13.415/2017 determinou que, na Base Nacional Comum Curricular (BNCC), o Ensino de Filosofia fosse considerado como estudos e práticas, a exemplo da Sociologia, Educação Física e Artes. Com sua implantação, o que se viu foi a redução da carga horária destinada ao Ensino de Filosofia. Com base em levantamento feito pelo Observatório do Ensino de Filosofia em Sergipe (OBSEFIS) nos anos de 2020 e 2022, ou seja, antes e depois da lei ser efetivada pelos estados, detectou-se que quinze estados diminuíram os tempos dedicados a ele. Em outros dez, houve a manutenção e apenas em dois, Sergipe e Amapá, a carga horária foi ampliada. Porém, em 2023, com a mudança dos governos estatuais, São Paulo e Pará modificaram a matriz curricular, aumentando para dezessete o número dos estados que promoveram a redução do tempo destinado ao Ensino de Filosofia em sala de aula.
O fato “novo”, que tem provocado a afirmação de que a Filosofia voltou a ser disciplina obrigatória, talvez não tenha o impacto que algumas pessoas esperam. É o mesmo que dizer que a lei mudou para não mudar nada. O texto afirma que: 1) A Filosofia está integrada na área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas (CHSA); 2) A BNCC deve ser cumprida integralmente ao longo do Ensino Médio.
Ora, quando se fala em integração, pressupõe-se que a Filosofia, a exemplo da Geografia, História e Sociologia, deve ser ensinada de modo integrado com os componentes curriculares da área de CHSA. Como se sabe, a palavra integrada pode muito bem ser substituída por interligada, conectada, conexa. Em outros termos, a nova lei manteve o caráter interdisciplinar da Filosofia, não reservando a ela nenhum status disciplinar, muito menos obrigatório.
Além disso, ao sentenciar que as habilidades e competências da BNCC devem ser cumpridas integralmente, espera-se que as 32 (trinta e duas) habilidades da área de CHSA sejam desenvolvidas totalmente. O problema é que a noção de habilidades e competências guarda consigo um processo cognitivo, pautado em metodologias ativas de ensino, que demanda a problematização e contextualização de questões cotidianas, mas sem a devida fundamentação teórica. Grosso modo, mobilizam-se conteúdos não para aprendê-los, mas para utilizá-los diante de uma situação prática. Para ilustrar o que estamos dizendo, basta observar os livros do Objeto 01, do atual Programa Nacional do Livro Didático (PNLD), que são inteiramente organizados por projetos integradores.
Outro aspecto a considerar da BNCC é que, ao observar a presença das grandes áreas da Filosofia nos livros aprovados pelo PNLD - Ética, Filosofia Política, Epistemologia, Metafísica, Lógica e Estética -, nota-se que as atuais habilidades e competências da área de Ciências Humanas e Sociais Aplicadas não mobilizam conteúdos de Estética e Lógica, e muito pouco de Metafísica e Epistemologia. Concentra-se, portanto, em temas relacionados à Ética e à Filosofia Política.
Mesmo com o lançamento do novo edital do PNLD, feito pelo MEC no último mês de julho, onde se prevê o retorno das obras por componentes curriculares, e não mais por áreas do conhecimento, pode-se especular que os livros de Filosofia deverão ser estruturados nos moldes da BNCC. Não há, portanto, garantias de que todas as grandes áreas da Filosofia sejam melhor distribuídas, visto que a orientação dos objetos de aprendizagem se dá pelas competências e habilidades gerais e específicas das CHSA.
Os próximos passos
Com a sanção presidencial, há a expectativa de que a nova lei comece a ser executada nas escolas ano que vem. Até lá, caberá aos governos estaduais e ao Conselho Nacional de Educação (CNE) promover os ajustes, talvez, na BNCC e nas Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (DCN). Na mesma direção, o Ministério da Educação (MEC) deverá, além de financiar a implantação do “novíssimo” Ensino Médio, dar suporte técnico às redes estaduais através de consultorias ou algo do tipo.
Para quem sonhava com o retorno da obrigatoriedade do Ensino de Filosofia na última etapa da educação básica, como ocorreu em 2008, resta algumas possibilidades: 1) Propor um projeto de lei, no âmbito do Congresso Nacional, que garanta a obrigatoriedade da Filosofia na educação básica e trabalhar pela sua aprovação; 2) Pressionar, na esfera estadual, pelo aumento da carga horária destinada ao Ensino de Filosofia de tal modo a ter, no mínimo, dois tempos por semana ao longo de todo ensino médio; 3) Dialogar com o CNE e os Conselhos Estaduais de Educação (CEE’s) para que a BNCC e os referenciais curriculares estaduais, respectivamente, contemplem todas as grandes áreas da Filosofia; 4) Reivindicar, no âmbito do CNE, INEP e MEC, que as questões específicas de Filosofia sejam garantidas no futuro formato do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM).
Por fim, e não menos importante, tem-se a sensação de que nossa peleja reivindicatória é para que a Filosofia se torne uma constante na vida educacional de nossos/as crianças e jovens. Nesse sentido, fundar uma entidade nacional de Ensino de Filosofia, que possua um caráter científico e político, torna-se num movimento importante e legítimo. Para tanto, os/as professores/as de Filosofia que lecionam na educação básica, os/as pesquisadores/as vinculados/as aos programas profissionais e acadêmicos de pós-graduação, os diversos fóruns estaduais/municipais em defesa da Filosofia, as associações estaduais de professores/as de Filosofia, os grupos do PIBID’s e todos/as aqueles/aquelas interessados/as precisam se unir, se articular e se organizar nacionalmente, a exemplo do que acontece com nossos/as colegas da História e Sociologia, através da ABEH e da ABECS. A Filosofia agradece.