O 'fim do fim' da filosofia em Alain Badiou | Especial Minicursos XX Anpof

Lucas Azevedo Maksud

Doutorando em Filosofia (UFMG)

29/07/2024 • Coluna ANPOF

Ao menos em O ser e o evento e no [primeiro] Manifesto pela filosofia [1], a argumentação de Badiou se dá em direção a uma defesa da existência da filosofia. Logo, a começar por eximir a filosofia de seu fim historicamente determinado, o materialismo de badiouano se caracteriza por romper com o diagnóstico do século passado de que a filosofia deve abandonar sua dimensão especulativa e sistemática, ou seja: a proposição de que uma doutrina do nó ser/não-ser/pensamento não é mais possível na forma de um discurso acabado (SE, p. 12). O balanço do século XX é, para o filósofo, aquele segundo o qual a filosofia, condenada à sua inexistência, deve se ocupar de questões que a extrapolam, as ditas – e mesmo valorizadas – questões extrafilosóficas. Esse posicionamento é fruto do levantamento de mais de uma corrente filosófica, é verdade, mas que vemos ser pavimentada por vias, inclusive, materialistas.

Por certo, o século passado fez suas críticas extrafilosóficas à filosofia: segundo elas, o ser não pode ser nem existência (crítica política - Marxismo), nem um (crítica psicanalítica – Lacan), nem sentido (crítica científica - Wittgenstein), nem objeto (crítica artística/poética – vinda de Heidegger, principalmente, e de Nietzsche) [2]. Das quatro grandes correntes que dominaram a filosofia, vale destacar, de início, que o materialismo do século XX sequer se mostra mais como filosofia em sentido estrito. Sob a figura do materialismo dialético, o marxismo nos remete, de Lênin a Althusser, a uma verdade que é política e que denuncia assim qualquer ontologia filosófica como ideologia, ou seja, justificando e perenizando uma existência que é em verdade mutável. Então, em confronto direto com as pretensões filosóficas, a política passa a almejar, por si só, dar conta de todo o sistema geral do sentido, o que, por consequência, coloca a filosofia em função apenas de sua realização prática e sua consequente supressão (Primeiro Manifesto, p. 30).

Junto a essa tendência que já não é mais uma tendência exatamente filosófica, soma-se ainda mais claramente a psicanálise. Se o exame de Badiou aponta para um esgotamento na capacidade filosófica do marxismo, o caso da psicanálise vai além (Badiou, 1994, p. 14). A começar pelas rejeições de Freud de se identificar com a filosofia e preferir se aproximar da ciência, a psicanálise chega enfim em Lacan com uma característica bem definida: Lacan se declara antifilósofo. O argumento que sustenta essa posição, em linhas gerais, é aquele segundo o qual se equipara o desejo do filósofo meramente ao desejo do Mestre (Ibid.) e que relega a dimensão especulativa ao imaginário.

Sem que adentremos, por ora, em qualquer minúcia da antifilosofia lacaniana ou do materialismo marxista, nosso intuito é evidenciar que resta, por conseguinte, segundo Badiou, apenas a fenomenologia – ou de modo geral, o que ele chama de uma tendência hermenêutica – e a filosofia analítica na cena propriamente filosófica do século XX. Sendo assim, o panorama verdadeiramente filosófico fica nas mãos de uma filosofia continental cuja referência maior é Heidegger, o último filósofo universalmente reconhecível (SE, p. 11), e da “filosofia da ilha” que traça seu percurso do Círculo de Viena ao pós-positivismo de Quine. Essa é uma divisão metodológica que se mostrou, de fato, habitual para se contextualizar as duas vias possíveis para a filosofia contemporânea e que naturalmente não é uma postulação autoral de Badiou (Vide Ivan Domingues em sua obra “O continente e a ilha: duas vias da filosofia contemporânea”).

Todavia, como já exposto, também essas duas vias fizeram, com suas críticas, uma espécie de tábula rasa da história da filosofia. Trata-se do anúncio do fechamento de uma época inteira de pensamento. Badiou afirma:

Não há dúvida de que designam, cada um à sua maneira, o fecho de uma época inteira do pensamento e de seus desafios. Heidegger, no elemento da desconstrução da metafísica, pensa a época como regida por um esquecimento inaugural, e propõe um retorno grego. A corrente “analítica” anglo-saxã desqualifica a maior parte das frases da filosofia clássica como desprovidas de sentido, ou limitadas ao exercício livre de um jogo de linguagem (SE, p. 11, grifo do autor).

De um lado, as práticas não filosóficas da militância e da clínica pretendem o fim da filosofia com suas doutrinas pós-cartesianas do sujeito, i.e., com o ser social do marxismo e com o sujeito descentrado da psicanálise. Por outro lado, também as filosofias hermenêuticas e analíticas impuseram severas alterações para as pretensões da filosofia e, por que não dizer, impuseram o seu fim. Isso se daria se, ao menos, tomarmos novamente o nó parmenidiano entre ser/não-ser/pensamento como o que define a filosofia. Certamente não é a intenção heideggeriana apertar esse nó com sua Destruktion da metafísica. Certamente esse também seria um caso que exigiria uma correção para os analíticos, em especial se dizendo de Wittgenstein – considerado o Górgias de nosso tempo (Badiou, 1992, p. 61) – com a necessidade uma “terapia gramatical” que desfizesse as tentativas de a filosofia dizer sobre o ser, ao invés de ela assumir a verdade em um âmbito científico e modelável em proposições lógicas.

A originalidade ambicionada por Badiou vem afinal ao renunciar, por isso, tanto à via analítica quanto à continental [3], romper com a divisão e declarar o fim do fim da filosofia. Tanto uma via quanto a outra seriam insuficientes sozinhas para manter vivo o desejo de filosofia, seria preciso ir além da analítica e ir além da hermenêutica. As razões do filósofo francês para postular tal intento são, contudo, mais modestas do que se poderia esperar de uma ambição inovadora como essa e fazem uso de críticas que já são comuns a essas tradições.

Ademais, Badiou não recomeça a filosofia contemporânea desconsiderando os avanços dessas tradições; antes eles serão conservados e superados, a fim de ele estabelecer em suas obras um projeto de filosofia no sentido mais forte do termo, isto é, um projeto de filosofia que recoloca o lugar da filosofia. Para entender esse novo lugar onde a filosofia será realocada na contemporaneidade, o filósofo propõe, assim, quatro pontos em que se está ancorado o desejo de filosofia: “A revolta, a recusa a ficar instalado e satisfeito; A lógica, o desejo de uma razão coerente; O universal, a recusa do que é particular e fechado; A aposta, o gosto pelo encontro e pelo acaso, o engajamento e o risco” (1994, p. 12). Pontos esses que poderão ser elucidados em detalhes no minicurso proposto para o XX Encontro Nacional da Anpof.

O minicurso "O 'fim do fim' da filosofia em Alain Badiou" será ministrado pelo doutorando Lucas Azevedo Maksud(UFMG/GT  Ontologias Contemporâneas) no XX Encontro Anpof, em Recife/PE. As inscrições estarão abertas às pessoas já inscritas no evento a partir do dia 15 de agosto.

[1] Diz-se ao menos nessas obras, já que no Segundo manifesto pela filosofia a situação político-filosófica do pensamento já havia se alterado nesses 20 anos que separam as obras. Em 2009, nesse último manifesto, a questão se tornaria muito mais reconhecer o aparecimento da filosofia diante da hiperinflação do termo na qual tudo pode ser filosofia, distinguindo-a dos moralismos.

[2] Cf. interpretação de Gabriel Tupinambá (Minicurso: Introdução ao pensamento de Alain Badiou, UFABC. Material organizado por: Ronaldo Hernandes e Suze de Oliveira Piza, p. 33).

[3]  Mais detalhadamente, conforme assinala Toscano em relação a Badiou: “ele nega com veemência a fenomenologia (por sua insistência na continuidade e na experiência), o bergsonismo (por sua visão de um ser completo) ou a filosofia analítica (por sua negação da novidade radical na forma de um transcendentalismo linguístico)” (2000, p. 225).

 

Referências bibliográficas:

Badiou, Alain. Conditions. Paris : Éditions du Seuil, 1992.

___________. Manifesto pela filosofia. Versão e nota MD Magno. Rio de Janeiro: aoutra editora, 1991.

___________. O ser e o evento. Tradução Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.: Ed. UFRJ, 1996.

___________. Para uma teoria do sujeito: conferências brasileiras. Rio de Janeiro,
RJ: Relume-Dumará, 1994.

TOSCANO, Alberto. To have done with the end of philosophy. Pli: The Warwick Journal of Philosophy, v. 9, p. 220-238, 2000.