O machismo nosso de cada dia não rima com a filosofia
Cinara Nahra
Professora titular da UFRN. Coordenadora Adjunta da área de filosofia na CAPES.
14/11/2023 • Coluna ANPOF
Parece que começa a ganhar cada vez mais espaço na sociedade brasileira, felizmente, a percepção de que as mulheres deveriam ter uma participação muito maior na esfera pública e em cargos e em funções decisórias do que elas atualmente têm. Assim, o estabelecimento de cotas mínimas para a participação feminina não se limita mais ao campo legislativo/eleitoral, mas se expande para vários setores, órgãos públicos e privados e Instituições. Na educação e na pesquisa já se percebe que os órgãos de financiamento começam a fomentar políticas de inclusão regionais, de raça e de gênero. A CAPES começa a incentivar questões relativas à inclusão nas diretrizes da ficha de avaliação na abertura de novos programas e na avaliação dos já existentes e espera-se que o mesmo comece a acontecer nas políticas de fomento do CNPQ. A realidade, entretanto, mostra que as distorções são enormes e há muito a fazer neste campo.
Aqui neste artigo vou me limitar a discutir, a partir do meu lugar de fala, questões relativas à participação e valorização das mulheres na ciência e na academia em geral, e na filosofia em particular. Iniciarei citando os dados de uma pesquisa das colegas da psicologia Rocelly, Magda e Candida [1]. Segundo as colegas, neste artigo de 2021, do total de 12.917 bolsas PQ oferecidas pelo CNPQ (64,4%) são ocupadas por homens; e somente (35,6%) das bolsas, pelas mulheres. Porém, quando analisamos os dados da área da filosofia mostrados neste artigo, estes dados são ainda mais estarrecedores, já que do total de 152 bolsas PQ 120 são de homens e apenas 32 de mulheres, ou seja, em torno de apenas 21,3% das bolsas PQ na área da filosofia são obtidas por mulheres.
Já na área da filosofia da Capes os dados que mostramos no último seminário de meio termo são também assustadores [2]. Em 2012 apenas 19,2% dos docentes permanentes na pós-graduação em filosofia eram mulheres, e em 2020 foi de 19,9%, mostrando que em 12 anos, apesar do crescimento do sistema de pós-graduação, isto não se refletiu no crescimento da porcentagem feminina que estacionou em torno de 20%. Na titulação de discentes a situação se repete. Em 2012 apenas 30% dos titulados (doutorado, mestrado e mestrado profissional) eram mulheres, enquanto que 70% eram homens e em 2020 foi de 27,5% de mulheres contra 72,5% de homens.
Esses desoladores números expressam a triste obviedade: a área da filosofia é dominada por homens. Mas precisamos ir além da obviedade dos números para tentar fazer um diagnóstico mais preciso a fim de começar a mudar esta situação, e aí é inevitável que se traga aqui elementos culturais e subjetivos que a mera análise dos números não é capaz de fornecer, e sobre os quais normalmente evitamos falar, mas que são fundamentais para que se compreenda o que exatamente acontece na nossa área. O fato é que não é de hoje que as mulheres em geral, infelizmente, não são tratadas com a devida consideração e respeito na filosofia. Há evidentemente uma boa parte de colegas filósofos que são maravilhosos nas suas práticas diárias e no tratamento a nós dispensado, e devemos reconhecer e aplaudir isto, mas há também um “caldo cultural” machista na filosofia que aparece inúmeras vezes. Aparece, por exemplo, quando sutilmente (ou nem tanto) somos silenciadas e menosprezadas de uma forma que nem sempre o próprio perpetrador do ato percebe. Quantos homens efetivamente nos escutam e nos dão o devido crédito pelos nossos ensinamentos e conhecimentos ao invés de tomá-los como seus? Quantos não nos desqualificam dos mais variados modos, tentando nos “explicar” assuntos que pesquisamos há anos e dos quais sabemos muito mais do que eles, mas que eles sempre acham que saberão mais do que nós? Quantos homens na filosofia citam nossos artigos? Será que efetivamente não nos leem ou tomam como suas as ideias que na realidade são nossas?
Penso que é, de fato, a hora de se fazer, coletivamente, uma longa reflexão na área sobre o machismo nosso de cada dia e sobre políticas capazes de superá-lo. Fala-se sobre a implementação de concursos com cotas para mulheres, o que se for feito deve ser feito ouvindo-se, sempre, as mulheres. Pessoalmente sou a favor, também, de cotas para mulheres na distribuição de bolsas, em todos os níveis. Mas alerto que isso de nada adiantará se não houver uma profunda autorreflexão dos filósofos sobre suas práticas e suas atitudes machistas na área. O “como” fazer esta inserção talvez seja o ponto crucial. Muitas vezes sob o argumento da necessidade da maior inserção, os homens nos “convocam” para realizar tarefas que eles mesmos não gostariam de fazer, porque são instanciações das várias tarefas “chatas” que é preciso que se faça na vida acadêmica. Não é a aceitação destas tarefas que resolverá o problema da inserção feminina, não queremos apenas mais trabalho (afinal sempre é bom recordar o fenômeno da dupla jornada de trabalho a que muitas de nós estão submetidas), queremos tarefas, posições e postos nos quais possamos exercer o melhor de nossas competências intelectuais e para as quais sejamos bem remuneradas.
Em relação a remuneração, aliás, este é um outro ponto importantíssimo e que requer atenção e ações imediatas. Na realidade não temos muitos dados sobre a desigualdade salarial de gênero e o abismo salarial na academia brasileira. Muitos dizem que nas universidades federais esta desigualdade não existe, mas onde estão os dados que corroboram isso? Em artigo que escrevi conjuntamente com a orientanda Landa em 2020 [3] apontamos a necessidade de que sejam levantadas estas estatísticas na academia e sugerimos ali hipóteses, como as de que as mulheres estão muito mais dispostas do que os homens a aceitar funções voluntárias que embora necessárias para o bom andamento da coisa pública e de nossas Instituições não são assumidas na mesma proporção pelos homens por não serem remuneradas, enquanto há uma certa avidez masculina por projetos e funções que possibilitam ganhos econômicos pessoais e pecuniários extras, o que explicaria (mas não justificaria) porque homens acabariam ganhando mais do que mulheres, mesmo no exercício do mesmo cargo.
Assim como é importante que se desenvolva na academia políticas para evitar a desigualdade salarial de gênero e o abismo salarial, urge também que se estabeleçam políticas do cuidado, uma atividade que, como sabemos, é exercida majoritariamente por mulheres [4]. Como implementar políticas de “cuidado”, não apenas na nossa pós-graduação, mas na filosofia e na academia como um todo? Permitir que mulheres em gestação e por um bom período após o nascimento de seus filhos possam produzir menos sem prejudicarem seus programas ou perderem suas bolsas é fundamental. Mas há mais a ser feito. Em uma população como a brasileira onde cresce o número de idosos e cada vez mais somos chamadas (em geral as mulheres, mas muitas vezes também os homens) a cuidar de nossas mães e pais, é importante que se crie as condições para que isto aconteça do modo o mais suave possível, e sem perdas para o cuidador e seus programas. Temos que assimilar, nas políticas que estabelecemos, que o cuidado não é necessário apenas em relação às crianças, mas também, e cada vez mais daqui para frente, em relação aos idosos.
A conclusão então a que chego neste artigo é a de que é para ontem a necessidade de que haja uma revolução em nossa área no que se refere às políticas em relação às mulheres e as atitudes em relação a elas. É preciso mudar o perfil da área de modo que cada vez mais e mais mulheres se titulem como mestres e doutoras em filosofia e se tornem professoras nos nossos departamentos e na pós-graduação. Entre as que já são docentes é preciso que recebam cada vez mais as bolsas e assumam as funções e os projetos mais atrativos do ponto de vista acadêmico e financeiro. Mas penso que tão importante quanto isto é que haja uma mudança de atitude e que estejamos, também conscientes de que há muito machismo na nossa área e que isso, além de ser em si mesmo um sério problema, é uma forte indicação de um índice alto de toxicidade nas relações em nossa área, que não vem de hoje, que é histórico, e que se reflete, também, na distribuição de verbas e bolsas. É preciso acabar de uma vez por todas com a lógica do “Mateus, Mateus, primeiro os meus” e instaurar a lógica da unidade na diversidade, da cortesia, da cooperação, da solidariedade (para usar um termo extremamente apropriado que vários colegas utilizaram no nosso recente seminário de meio termo), compreendendo que o fazer filosófico é diverso por excelência, que o discurso do “o que você faz não é filosofia” (explícito ou não) ou mesmo a tentativa de impor o que pode ou não ser feito na pesquisa filosófica é um dos maiores anacronismos de nossa área (devendo ser expurgado de uma vez por todas do nosso vocabulário e do nosso horizonte cognitivo). Precisamos de uma filosofia mais gentil e mais feminina, em todos os sentidos do termo. Penso que este é um dos nossos maiores desafios de nossa área no momento atual e será preciso um esforço individual e coletivo para enfrentá-lo. Espero que estejamos tod@s, de coração, dispostos a isto!
Notas
[1] CUNHA, Rocelly; DIMENSTEIN, Magda; DANTAS, Candida. "Desigualdades de gênero por área de conhecimento na ciência brasileira: panorama das bolsistas PQ/CNPq" SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 45, N. ESPECIAL 1, P. 83-97, OUT 2021.
[2] Os dados brutos em planilha foram fornecidos pela CAPES.
[3] NAHRA,Cinara; DA COSTA, Fernanda Alves “Desigualdade salarial de gênero e o abismo salarial entre os gêneros” Princípios: Revista de Filosofia, Natal, v. 27, n. 52, jan.-abr. 2020, Natal. ISSN1983-2109.
[4] TIME TO CARE - OXFAM BRIEFING PAPER – JANUARY 2020 www.oxfam.org disponível em https://oxfamilibrary.openrepository.com/bitstream/handle/10546/620928/bp-time-to-care-inequality-200120-en.pdf. Em relação ao Brasil segundo a Oxfambrasil 90% do trabalho de cuidado no Brasil é feito informalmente pelas famílias e desses 90% quase 85% é feito por mulheres.
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