O martelo filosófico de Max Stirner
Rodrigo Ornelas
Doutor em Filosofia e coordenador do GT Poética Pragmática (UFBA)
18/12/2024 • Coluna ANPOF
Em 19 de novembro de 1844, Engels escreveu para Marx (em Paris): “Você já deve ter ouvido falar do livro de Stirner, O único e sua propriedade. Wigand enviou-me as provas tipográficas, que levei para Colônia e deixei com Hess.(...) você o conhece, o Schmidt de Berlin”. Max Stirner era o pseudônimo de Johann Schmidt (1806-1956), conhecido nos círculos hegelianos pelo apelido, devido à sua testa [Stirn] “surpreendentemente comprida”[1]. Segue Engels: “é um idealista transformado em materialista e empirista.(...) Não temos que jogá-lo fora, mas explorá-lo como expressão perfeita da loucura existente e, revertendo-o, continuar a construí-lo”. Mas que livro é esse e qual sua relevância?
Quero responder a essa pergunta resumindo sua tese filosófica e apontando seu impacto do na esquerda hegeliana, com destaque para Marx – indicando ainda outras influências. Meu objetivo é mostrar Stirner, lido normalmente pela crítica marxiana, como um filósofo com mais importância do que se costuma lhe atribuir.
Lançado há 180 anos, O único e sua propriedade (UP) é a obra máxima de Stirner, autor que publicou menos que seus pares mas que mobilizou suficientemente o campo filosófico (e político) contemporâneo. Seu livro é exemplo de como filosofar com o martelo para um crepúsculo dos ídolos (Götzen, afinal) como nem Nietzsche escreveu.
Stirner rejeita as ideias totalizantes que ganham independência da pessoa viva, ao passo que corporificam-se nela, que é quem, de fato, tem corpo. Para Stirner, Hegel (seu ex-professor) materializa Deus sob o nome da Verdade e sistematiza o mundo religioso, “ao dar método ao absurdo”, transformando conceitos “em dogmas acabados”[UP]. Mas isso não se restringe a Hegel e aos hegelianos conservadores.
Stirner observa que não superamos a metafísica religiosa se mantemos uma referência abstrata de identidade à qual se confere realidade material, lugar ocupado antes pelo Espírito e, na esquerda hegeliana, pelo Humano. Tal metafísica existe na insistência de um ideal para o indivíduo, que busca “reencontrá-lo” em si: o princípio religioso da “reassimilação” está na suposição da cisão sobre uma unidade originária (existência-essência). Por isso Stirner afirmou que os “ateus” de seu tempo (Feuerbach, Bauer, mas também Marx) permaneciam “devotos”[UP]: não a Deus, mas a outras abstrações autoritárias. E faz uma pergunta cabal, considerando a história que vai do domínio cristão à crítica do cristianismo: “No início da Idade Moderna está o ‘Deus-humano’ [Gottmensch]. Em sua fase final desaparecerá somente o Deus do Deus-humano?(...) Como podeis crer que o Deus-humano morreu se não morreu ainda nele, para além do Deus [Gott], também o Humano [Mensch]?”[UP].
O Humano (essência) toma a efetividade de Deus para si, não para mim. A isso Stirner chamará “egoísmo”, pois não há divisão essência-existência como realidade prática, senão existências entre existências – e quando um filósofo diz “sociedade”, p.ex., não o faz por atingir um ponto de vista privilegiado (mais verdadeiro) sobre a “sociedade” que justificaria minha subordinação a tal ideia, em última instância sua. Stirner, então, não dispensa, mas assume o termo: “em vez de continuar servindo com altruísmo aqueles grandes egoístas, sou eu próprio o egoísta”[UP].
Tal insurgência, entretanto, não é “desconstrução” ou negação (do humano, de Deus), mas empoderamento de si: “Ao velho ‘Glória a Deus’ corresponde o moderno ‘Glória ao Homem...’. Eu, no entanto, pretendo reservá-la só para mim”[UP]. Este “eu”, que Stirner chama de único, não é “o Indivíduo”, ou “o Eu” (também abstrações), mas uma autoafirmação, atualizada na apropriação, pelo que faço minha propriedade – não sou uma ideia, mas tenho ideias, não sou um nome, mas tenho um nome[2]. Em conflito com o que não sou eu, existo afirmando-me, egoistamente – por uma atividade, não teoricamente. Não é resistência (negativa): é erguimento, afirmativo[3]. Rejeita o humanismo social (do socialismo e comunismo), propondo a prática associativa entre indivíduos; quer não a revolução, mas rebeldia. Nos dois casos, substituindo a orientação por uma ideia abstrata pela ação pessoalmente interessada.
Quando publicado, seu livro foi logo proibido em Leipzig. Dias depois o Ministério do Interior suspendeu a decisão, considerando-o “‘absurdo demais’ para ser perigoso”[4]. Mas ele não mobilizou apenas as autoridades da Prússia (conservadora, cristã, monárquica). Se hoje ainda suscita menos entusiasmo que desconforto, na esquerda hegeliana ele não era pouco indigesto. Stirner articula palavras, conceitos, ideias, sabendo-as com existência apenas através dele, enquanto afirma-se inapreensível pela linguagem ou pelo pensamento. A vida supera conceitos e ideias. O mundo dos pensamentos é o da própria filosofia aberta por Descartes e que culmina no idealismo alemão, coroado por Hegel mas desenvolvido pelos pós-hegelianos. O sujeito stirneriano tem seu fundamento no corpo do si-mesmo. Para esse passo radical os seus contemporâneos não estavam dispostos.
Feuerbach reagiu com “A essência do cristianismo em relação a O único e sua propriedade”. Após ser respondido por Stirner, aparentemente admitiu alguns pontos, revendo aspectos da relação Gênero-Indivíduo[5]. Aliás, quando o livro foi lançado, ele escreveu ao irmão adjetivando-o de “espirituoso” e “genial”, obra do “autor mais genial e mais livre que já conheci”[6]. Bruno Bauer percebeu imediatamente que Stirner havia levado a questão a um ponto onde ele não acompanharia[7]. Depois publicou Caracterização de Feuerbach, que Marx e Engels descreveriam como uma cópia desastrada dos argumentos stirnerianos[8].
Moses Hess, que responde a Stirner em Os últimos filósofos, afasta-se filosoficamente de Feuerbach, antecipando a crítica que Marx faria (sem publicar) nas Teses as Feuerbach. Arnold Ruge, importante feuerbachiano da época, foi logo influenciado pelo livro, como vemos em O egoísmo e a prática: eu e o mundo, onde o descreve como um corajoso “chamado de despertar no campo dos teóricos adormecidos” – e em cartas, diz ser “o primeiro livro de filosofia legível em toda a Alemanha” e que “deve ser apoiado e divulgado”[9].
Stirner foi debatido sobretudo nas revistas do editor Wigand, como no terceiro volume da Vierteljahrsschirft, seção “Feuerbach e O único” – onde saiu (anonimamente) o “Caracterização de Feuerbach”, de Bauer. Também fora da Alemanha, como na detalhada resenha de Saint-René Taillandier na Revue des deux Mondes[10].
Observar as reações e transformações provocadas por Stirner é impressionante, dada a pouca atenção que ele recebe ainda hoje. Vejamos o caso imediato mais relevante: seu impacto sobre Marx.
Em agosto de 1844, Marx escrevia a Feuerbach elogiando suas obras Filosofia do futuro e A essência da fé, dizendo que “têm mais peso do que toda a literatura alemã atual agrega” e que têm “uma base filosófica para o socialismo”. Marx conclui: “A unidade dos homens [Menschen] com o humano [Menschen], (...) o conceito de gênero humano saído do céu da abstração para a terra real, que é ele senão o conceito de sociedade!”[11]. Em novembro, lançava com Engels A sagrada família, crítica a Bauer em tom feuerbachiano. Vem, então, no mesmo mês, o livro de Stirner; e o fato é que nos meses seguintes ambos escreveriam A ideologia alemã criticando Stirner, Bauer e agora também Feuerbach! – aparecendo como um decidido substancialista no “Concílio de Leipzig”. Vale lembrar ainda que nas Teses de 1845, o que para Marx falta ao materialismo feuerbachiano é justamente... subjetividade (Tese 1).
A devastadora revisão da esquerda hegeliana feita por Stirner mexeu com um jovem Marx feuerbachiano (antes baueriano). Ou talvez Marx já entendesse a necessidade de distanciar-se daquele vocabulário pós-hegeliano, começando por Bauer, apesar de fazê-lo adotando fundamentalmente o pensamento de Feuerbach, para depois também afastar-se desse último. Como observa Crisóstomo de Souza, “Stirner como que escreve uma ‘ideologia alemã’ antes de Marx e Engels”[12]. Seja como for, é significativo observar a virada marxiana no intervalo de um ano, no meio do qual O único e sua propriedade aparece.
Também significativo vê-los dedicarem-se à minuciosa crítica de Stirner n’A ideologia alemã, seção “São Max” – quase tão extensa quanto o livro criticado. A despeito disso, a crítica não está à altura do livro e poderia ser respondida com a Resposta aos críticos (1846) que Stirner escreveu em tréplica a Feuerbach, Hess e Szeliga. Como Marx não publicou seu texto e Stirner não dedicou mais do que uma nota a Marx, o debate pós-hegeliano mais interessante ficou para os comentadores do futuro – em língua portuguesa devemos especialmente a Crisóstomo de Souza os estudos sobre esse autor e esse debate.
Voltemos à carta de Engels. Ele diz ainda que Hess tinha razão na crítica a Feuerbach, mas que também Hess – como Stirner apontou – sofre de “aberrações idealistas”, pois sempre está às voltas com “assuntos teóricos” e “categorias”. Sobre o egoísmo, Engels chega a afirmar que “é verdade que devemos primeiro fazer uma coisa por nossa própria causa, egoísta, antes de podermos fazer algo a respeito – e, nesse sentido, mesmo à parte de quaisquer esperanças materiais, também somos comunistas por egoísmo, por egoísmo queremos ser humanos, não meros indivíduos”.
Ao menos três outras influências atestam a relevância de Stirner no pensamento contemporâneo. Uma é ampla e notória, sobre os anarquistas. Outra, da qual temos menos material mas poucas dúvidas, é sobre Nietzsche. A terceira é no Modernismo, especialmente no surrealismo e dadaísmo franceses[13]. Infelizmente, não poderei desenvolvê-las[14]. Mas espero que este texto sirva de convite à leitura do filósofo bávaro que soou com estrondo em certo momento da decisiva filosofia alemã do século XIX.
Notas
[1] Ver carta de Engels a Max Hildebrand de 22.10.1889. Stirner adotou o apelido e entrou com esse nome na história da filosofia.
[2] Quando digo que sou Rodrigo ou que sou Humano, p.ex., sei que não sou um Rodrigo ou Humano “em geral”: esses nomes não me esgotam; o que sou, sou como um único, algo inapreensível por nomes, ideias ou conceitos. Lembremos que “Stirner” sequer é o nome original do autor que nos sugere isso assinando como “Stirner”.
[3] Como viu Camus, p.ex., em L’homme révolté.
[4] Ver Max Stirner: Sein Leben Und Sein Werk, de John Henry MacKay.
[5] Não mais subjugando o último ao primeiro – por exemplo, nas suas Vorlesungen über das Wesen der Religion, de 1851.
[6] Ludwig Feuerbach an Friedrich Feuerbach – November 1844.
[7] Ver MacKay, op. cit. Bauer jamais mencionou Stirner em publicações, mas nunca rompeu com ele, sendo um dos poucos antigos amigos presentes em seu precoce funeral.
[8] Em Die deutsche Ideologie.
[9] Ver MacKay, op. cit. O texto de Ruge está no volume 2 de seu Zwei Jahre in Paris.
[10] “De la crise actuelle de la Philosofie Hégélienne. Les parties extrême en Allemagne”, de 1847.
[11] Karl Marx an Ludwig Feuerbach (in Bruckberg) – 11.August 1844.
[12] Em Ascensão e Queda do Sujeito no Movimento Jovem Hegeliano.
[13] Engels coloca Stirner como precursor do anarquismo moderno (na carta a Hildebrand citada na nota 1, onde indica que Bakunin foi seu leitor); Plekhanov chama-o de “pai do anarquismo” (Anarquismo e Socialismo) e Kropotikin (O princípio anarquista) coloca-o entre entre os pensadores fundamentais do anarquismo – sem contar outros casos, como o de Emma Goldman, cuja ideia de indivíduo como “único” e de Estado como abstração são bastante stirnerianas (bem como suas ideas de rebeldia e associação). Sobre Nietzsche há os depoimentos do casal Franz e Ida Overbeck, amigos de Nietzsche que apontam menções do filósofo à obra de Stirner, incluindo o receio de ser lido como plágio dele. Há também as observações de Eduard von Hartmann sobre as críticas de Nietzsche ao seu Filosofia do inconsciente recaírem justamente nas suas rejeições a Stirner. Mas o que mais chama a atenção mesmo são as construções teóricas semelhantes, como na citação de Stirner que fiz (no 5º parágrafo) sobre a morte do Deus-humano. No Modernismo destaco a sabida influência de Stirner sobre André Breton e Francis Picabia, autores do Manifesto Surrealista e do Manifesto Canibal Dadá, respectivamente.
[14] Desenvolvi essas ideias, assim como os tópicos abordados neste texto, na minha tese de doutorado (sobre Modernidade e Modernismo), cuja parte II é dedicada a Stirner, autor que foi também tema do meu mestrado em filosofia.
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