O QUE É ENSINAR FILOSOFIA?

Prof. Dr. Plínio Junqueira Smith

31/10/2016 • Coluna ANPOF

Nestes tempos obscurantistas, eu gostaria de tentar trazer alguma luz para uma questão permanente para nós, filósofos e professores de filosofia na universidade. A partir de minha experiência docente, tentarei articular uma visão abrangente sobre como ensinar filosofia na graduação. Começarei por duas considerações genéricas sobre a perspectiva a partir da qual devemos tratar do ensino da filosofia, um tema tradicional desde o começo da filosofia.

Primeira, parece-me haver uma pouco saudável separação entre a preocupação pedagógica com a filosofia e a preocupação filosófica com o ensino. De um lado, muitos filósofos parecem acreditar que o domínio somente do conteúdo garantiria a qualidade de sua transmissão, que bastaria conhecer bem um autor ou um assunto para ser um bom professor. De outro lado, pedagogos parecem supor que haveria uma técnica de ensino que seria indiferente ao conteúdo. Enquanto os primeiros tendem a ignorar questões pedagógicas, fixando-se somente nos conteúdos, os últimos tendem a falar sobre o que não entendem, tratando somente da forma. Essa separação entre conteúdo e forma é, a meu ver, condenável. Nos últimos anos, felizmente, o interesse pelo ensino da filosofia ganhou novo impulso e o fosso entre forma e conteúdo está diminuindo.


A segunda consideração diz respeito ao conceito mesmo de educação: esta envolve necessariamente interferir num processo, de modo que o professor interfere no aprendizado do aluno. Dada essa concepção, segue-se que, quando se ignora essa interferência inevitável, os resultados serão piores do que os resultados de uma intervenção consciente e deliberada. Para ensinar bem é preciso refletir sobre como se interfere no processo de aprendizado e agir com consciência do que se está fazendo. Caso contrário, corre-se o risco de deixar o aluno à deriva e obter uma formação imprevisível e, talvez, de qualidade duvidosa.

Tendo em vista essas duas considerações acima, fui levado a pensar o ensino da filosofia a contrapelo, por assim dizer. Em vez de ir pensando sobre as primeiras etapas e, a partir delas, pensar o que deveria vir depois, num certo momento julguei que o melhor é pensar de trás para a frente. Primeiro, devemos nos perguntar o que um diploma de graduação deve garantir e, depois, o que devemos fazer para que nossos alunos cheguem lá (ou o mais perto possível). Portanto, a primeira e fundamental questão para pensar o ensino da filosofia é saber aonde se quer levar o aluno: o que norteia o processo educacional é o fim que definimos para ele. Assim, parece-me correto dizer que as perguntas fundamentais são: quais capacidades ou habilidades o aluno deve adquirir? Que conhecimentos ele deve ter? Naturalmente, outras questões são cruciais também. É preciso saber quais são as necessidades do aluno e a situação real de onde ele parte. Nesse sentido, o professor precisa ir até o aluno e, dali, ajudá-lo a progredir. Uma vez definido o fim e sabendo-se em que situação o aluno se encontra de fato, cabe discutir os meios a serem empregados para conduzir o aluno da melhor maneira possível.

Parece-me desejável, quando um aluno se forma na graduação, que ele tenha alguns tipos de conhecimento e algumas capacidades. O aluno deve adquirir conhecimento da história da filosofia, mas também das discussões filosóficas atuais; e não somente a capacidade de tratar os temas da filosofia, mas também de ler, pensar e redigir textos filosóficos. Se assim é, a grade curricular de um curso de graduação deve contemplar quatro tipos de disciplinas. Não pretendo uma correspondência exata entre dois tipos de conhecimento e dois tipos de capacidade com os quatro tipos de disciplina que descrevo abaixo; de um modo geral, elas se complementam e se reforçam, mas isso não implica a ausência de diferenças e de perspectivas entre elas. O primeiro tipo é constituído por aquelas que tratam especialmente da interpretação de uma filosofia dada (em geral, as disciplinas de história da filosofia se ocupam disso). O segundo tipo aborda os problemas filosóficos contemporâneos, cuja finalidade precípua é desenvolver a capacidade de reflexão sobre um problema atual e as soluções recentemente propostas (nos nossos currículos nem sempre há disciplinas específicas para isso e a disciplina de história da filosofia contemporânea costuma ser dada de maneira similar às demais histórias da filosofia – como antiga, medieval, moderna). As disciplinas temáticas (por ex., Ética, Política, Estética, Teoria do Conhecimento, Lógica) seriam responsáveis pelo conhecimento de uma área da filosofia (e não um período ou um sistema filosófico). Finalmente, a grade curricular deveria reserva um espaço significativo para disciplinas que focalizam a análise e a redação de textos. A meu ver, se na grade curricular algum desses tipos de disciplina estiver faltando, é provável que a formação do aluno seja deficiente e nós estaremos privando o aluno de algum conhecimento ou capacidade que seria desejável que ele tivesse.

Pode-se ensinar a história da filosofia (a interpretar uma filosofia) de várias maneiras diferentes. Primeiro, pode-se ensiná-la em ordem cronológica, começando com os pré-socráticos e terminando no século XX. Se, de um lado, o aluno perceberá uma continuidade na tradição filosófica, de outro, corre-se o risco de ter uma visão muito superficial. De qualquer forma, é bom ter uma visão geral da tradição filosófica, mesmo que problemática (sempre é problemática). Segundo, pode-se ensinar uma única filosofia, mas estudando-a de maneira abrangente, sem se restringir a uma parte muito específica. Desta perspectiva, a ordem cronológica é menos importante e o exame dos argumentos empregados pelo autor, bem como a concatenação das ideias assume o lugar privilegiado. Não creio que distinguir entre autores fundamentais e não fundamentais seja essencial aqui (embora não seja irrelevante); mais importante é saber identificar as filosofias mais acessíveis (para alunos iniciantes) e as menos acessíveis (para alunos mais avançados). A meu ver, o ideal é que os alunos aprendam ambas as maneiras de estudar a história da filosofia. Enquanto o método contextualista é bastante adequado para a primeira maneira de ensinar história da filosofia, o método estrutural aplica-se bem à segunda maneira de interpretar uma filosofia. Naturalmente, apresentar uma diversidade de métodos ao aluno é algo bem vindo.

Passemos das disciplinas cuja finalidade é interpretar um pensamento para aquelas que visam à discussão de um problema filosófico que preocupa a comunidade filosófica contemporânea e a eventual tomada de posição a esse respeito. Parece-me importante não perder de vista que muitos filósofos contemporâneos debatem entre si uma diversidade enorme de questões e que, se não apresentarmos ao menos algumas a nossos alunos, estes terão uma formação menos completa. Embora alguns pensem que, em filosofia, não há mais nada a dizer, outros pensam de maneira diferente, e o aluno deve saber que, pelo menos, há diferentes concepções da filosofia contemporânea. Ensinar a interpretar uma filosofia dada e ensinar a pensar os problemas filosóficos atuais provavelmente implicam maneiras diferentes de interferir no aprendizado do aluno. Como ensinar a pensar filosoficamente? Num primeiro momento, fazendo os alunos conhecerem os problemas e algumas das soluções recentes; em seguida, fazendo-os discutir os argumentos, ensinando-os a analisar e avaliar um argumento. O papel do professor é não somente apresentar os textos chave numa discussão, mas apresentar e leva-los a discutir os principais argumentos de um lado e de outro da questão. Embora fornecer esse conhecimento dos textos básicos sobre uma discussão atual é indispensável, esta segunda etapa é, neste tipo de disciplina, ainda mais importante. O assim chamado método analítico, que permite examinar a forma lógica dos argumentos e a concentrar-se na aceitabilidade das premissas, discutindo-as criticamente, parece um bom método (entre outros métodos possíveis, como, num certo momento, foi fértil o assim chamado método da análise da linguagem ordinária).

Um risco inerente às disciplinas temáticas, que pode empobrecer a formação do aluno, é que, embora por razões diferentes, também elas podem se tornar praticamente indistinguíveis das disciplinas históricas e de interpretação. Normalmente, entende-se (de maneira implícita, a meu ver) que o que diferencia as disciplinas temáticas das históricas é que, enquanto estas últimas tratam de temas metafísicos, as primeiras tratam de outros temas centrais, como o conhecimento, a política, a ética, a lógica, a estética etc. Assim, por exemplo, no caso da história da filosofia, ensina-se a metafísica de Aristóteles e, no caso da de Ética ou Política a Ética a Nicômaco ou a Política de Aristóteles. A meu ver, a diferença entre esses dois tipos de disciplinas é de outra natureza: com o perdão do pleonasmo, enquanto as Histórias da Filosofia fazem um recorte histórico, as disciplinas temáticas fazem um recorte temático. Portanto, as disciplinas temáticas devem privilegiar os conceitos fundamentais de sua área. Em Filosofia Política, por exemplo, investigar os conceitos de liberdade e igualdade, ao longo do tempo e como são hoje retomados; em Teoria do Conhecimento, apresentar aos alunos os conceitos fundamentais de verdade, crença, justificação e como estes estão interrelacionados; essa explicação, naturalmente, não impede ensinar como esses conceitos foram examinados por alguns filósofos importantes do passado.

Resta-me fazer algumas considerações sobre o ensino de certas técnicas de leitura e de redação. Esse tipo de disciplina é mais importante do que pode parecer à primeira vista e me parece falso dizer que todas as outras disciplinas já fazem isso de alguma maneira. Na prática, elas não fazem, simplesmente porque não podem fazer tudo ao mesmo tempo. Na minha experiência, relegar esse tipo de capacidade na formação do aluno a um segundo plano tem produzido resultados muito negativos. Isso é especialmente visível quando avaliamos dissertações de mestrado e até teses de doutorado. Nossos alunos tem um desempenho claramente inferior ao que poderiam ter se tivéssemos dado mais atenção a esse componente de sua formação. Não estou me referindo a como fazer citações, montar uma bibliografia etc. (embora talvez até isso tenha de ser ensinado), mas a questões de conteúdo. Por exemplo, como ensinar o aluno a ler detidamente, com paciência e se tornar capaz de extrair de um texto todas as ricas informações que este contém. Isso não é nada fácil e, a meu ver, seria bom ter ao menos duas disciplinas para treinar os alunos em uma leitura minuciosa de um texto específico.

Um aspecto particularmente ignorado é o ensino de como usar adequadamente comentadores, isto é, não apenas ter o costume de lê-los, mas sobretudo mostrar-lhes como aproveitar dessa leitura para aprofundar a compreensão, discussão e interpretação das filosofias. Há quem pense que a leitura de comentadores é uma etapa muito posterior, que primeiro é preciso ter a sua interpretação elaborada para somente depois comparar com outras interpretações. Neste caso, o comentador serviria apenas para ser criticado, por pensar diferente, ou somente para indicar que a ideia (que me deu tanto trabalho para descobrir) já tinha sido vista por outrem. É um uso muito limitado dos comentadores. Os comentadores ajudam a levantar problemas, apontar obscuridades, chamam a atenção para passagens cruciais, apontam aparentes contradições, propões soluções, esclarecem conceitos etc. Ninguém elabora uma boa interpretação de um texto filosófico rico, profundo e difícil sem recorrer à ajuda inestimável dos comentadores. Por isso, ensinar nossos alunos a usarem adequadamente os comentadores é uma etapa importante na formação deles.

A redação de um texto, por não ser fácil, constitui-se em algo essencial a ser praticada repetidas vezes, com acompanhamento de perto de um professor especialmente designado para isso. Aqui, a dificuldade principal reside mais no tempo gasto pelo professor (e na sua paciência) do que em alguma técnica específica. Além disso, conforme aprendemos a ler atentamente textos filosóficos, vamos aprendendo, por imitação, a redigir nossos próprios textos.

Naturalmente, não se deve ver, nas considerações acima, uma proposta muito rígida, pois ideia mesma é a de permitir uma formação completa do aluno, permitindo-lhe mover-se de diferentes maneiras pela filosofia. O espírito dessa proposta é antes o da pluralidade (dos conhecimentos, das capacidades, dos conteúdos, das perspectivas, dos métodos) do que um espírito que visa uma concepção muito específica do filosofar. Por certo, muitas adaptações podem ser feitas e o esquema pode ser preenchido das mais variadas maneiras. Mas, de forma geral, eu sugeriria que cada tipo de disciplina tivesse mais ou menos a mesma carga horária das demais e que todas fossem ministradas nos quatro anos de graduação. Se não nos preocuparmos em dar uma formação sólida e articulada, nossos alunos tenderão a se perder nos labirintos da filosofia e a desenvolverem suas capacidades menos do que poderiam.

DO MESMO AUTOR

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