O que é o tempo?
Aline Karen Cristina Canella
Doutoranda e mestre em Filosofia (PPGFIL/UCS)
21/06/2022 • Coluna ANPOF
Neste espaço [1] abordarei não somente a pergunta “O que é o tempo?”, como também arriscarei ir além. Portanto, a pergunta que tentarei responder nas próximas páginas é: “O que é o tempo e quais as dificuldades de lidarmos, enquanto indivíduos e dentro da filosofia, com o tempo presente estando necessária e continuamente inseridos nele (no tempo presente)?”. Antes de começar a responder esta pergunta é preciso analisa-la, já que a própria análise da pergunta ditará os passos subsequentes. Em primeiro lugar, a pergunta inicia com: o que é o tempo? Sendo assim, esta é a primeira definição que deve ser feita. Posteriormente se fala em dificuldades para lidar com o tempo no qual estamos inseridos, ou seja, a atualidade – em duas condições: como indivíduos humanos, e como pessoas que estudam e pensam a filosofia.
Iniciaremos com a tentativa de definir “tempo”. A questão da passagem do tempo já era objeto de curiosidade de filósofos como Platão (período antigo ocidental) e Santo Agostinho (período medieval ocidental). Agostinho, em especial, foi um pioneiro nas reflexões sobre o tempo. Segundo o filósofo, o passado não existe, o futuro, da mesma forma, também não existe – ainda – e o presente se torna pretérito continuamente. Ou seja, o próprio do tempo não é o ser, e sim o não ser. O passado e a noção de tempo são atributos que somente existem, no presente, por força da memória de um ser que se lembra. Os medievais, como Agostinho, tenderam a apresentar a ideia de que o tempo teria um passado limitado, finito, que começou em algum lugar, em algum momento (TORNAU, C. 2020). Já Platão, ainda antes disso, defendia que o tempo era ilimitado em direção ao passado. De toda forma, parece importante abordar que a filosofia do espaço-tempo vai tentar entender este fenômeno por duas abordagens, e dessas abordagens, parece surgir uma disputa (BIEMILLER, 2019).
A disputa a qual eu me referia era entre realistas e antirrealistas. Os primeiros, influenciados pela epistemologia, argumentarão que o tempo e o espaço existem apesar e para além da mente humana na realidade – ou seja, é um fenômeno do universo. Já os antirrealistas vão defender que o tempo existe enquanto a mente humana o percebe (OKASHA, S. 2002). Por exemplo, uma árvore cai no meio de um deserto. Nenhum ser vivo testemunha o fato – nessa hipótese absurda, nem mesmo microrganismos estavam presentes. Pode-se dizer que o barulho da árvore caindo, que não foi ouvido por absolutamente ninguém, foi um acontecimento real no espaço-tempo? De fato: a percepção de um “BANG” da queda da árvore, seguido de um provável susto, não aconteceu da perspectiva humana, porque não haviam ouvidos humanos para escutar. Mas parece plausível dizer que uma onda de partículas, de fato, vibrou no ar. Esse simples exemplo – que não fui eu quem criei e que instiga filósofos a anos – nos faz perceber uma grande limitação que temos: a nossa própria condição e os nossos sentidos funcionam como filtros que apenas nos permitem vivenciar fenômenos de forma limitada (STEEL C. & JAGATIA apud KNOX E., 2021). De toda forma, alguns autores explorarão os aspectos metafísicos do tema, como um fenômeno que transcende a natureza física das coisas, e outros abordarão aspectos epistemológicos que levarão, por exemplo, a teorias como a Teoria das Cordas.
Chego então a uma conclusão sobre partes da pergunta: o tempo é um fenômeno que pode ou não existir para além da percepção humana, mas que dentro desta parece exercer um papel importante na forma em que se estabelece a humanidade. Apesar de não vivermos o passado nem o futuro – apenas o presente, é inegável que nossa cognição entende que existe uma noção de passado, traduzida pela memória, e uma perspectiva de futuro, apreendida pela experiência sensível, no sentido de que o sol nasce todas as manhãs e tem sido assim desde que o conceito de manhã foi criado. De toda forma, parece que o estar no presente nos leva a alguns desafios – porque este instante contínuo se confunde com nossas noções de passado e perspectivas de futuro, e esta parece ser a dificuldade de lidar com o tempo presente para o indivíduo humano enquanto pessoa.
Agora, em resposta ao restante da pergunta que se propôs, suponho que no contexto da filosofia o lidar com o tempo presente assume desafios ainda maiores, já que a pessoa que pensa filosoficamente necessariamente faz um exercício para além de sua individualidade. Michel Foucault (1984 p.35) afirma poder ter sido Kant o primeiro filósofo a problematizar a atualidade de sua prática filosófica. A visão de Foucault sobre Kant é importante para explicar o encontro do filósofo com o seu tempo presente. A primeira observação a se fazer é: aquele que fala a filosofia faz parte da atualidade tanto como elemento quanto como ator (FOUCAULT, 1984, p.36). Isso dito, ressalto que Para Foucault, ao falar sobre o Iluminismo, Kant falava sobre sua atualidade, e não somente isso, mas também questionava o que é a atualidade e o campo atual das experiências possíveis.
E, assim sendo, parece que uma explicação sobre o encontro do filosofo com o seu tempo presente começa a se desenhar. Tal encontro está no problematizar os acontecimentos contemporâneos e atribuir a eles sentido, valor filosófico. A filosofia do presente e para o presente é mais complexa, porque não se pode simplesmente olhar para questões do passado e pensar sobre elas (FOUCAULT, 1984, p.36). É necessário o exercício de estabelecer o que se está tentando espiar sem ter realmente espiado ainda, e, a partir desta imagem que por vezes não é clara, tentar atribuir fundamentos filosóficos.
De toda forma, o exercício de perceber e fundamentar filosoficamente a realidade é escorregadio e traiçoeiro, no sentido de que inevitavelmente parecemos nos agarrar a previsões do futuro e noções do passado. E esta parece ser a dificuldade em lidar, dentro da filosofia, com o tempo presente.
Passo ao encerramento desta exposição na forma de uma pequena provocação. Não foi meu objetivo, ao longo da explanação, trazer soluções para os problemas da atualidade. Mas arrisco dizer que, em seu âmago, muitas pessoas buscam estas soluções continuamente – eu inclusa. Nesse sentido, e tendo em vista a dificuldade da mente humana em entender o presente, parece que algumas opções são deixadas: (1) entender o “presente” não como o momento atual e constante, mas como um espaço de tempo recente, e assim arriscar apresentar eventuais fundamentos filosóficos e análises sobre o o presente sob pena de talvez errar – que parece ser o que Kant foi pioneiro em fazer. (2) desistir completamente e sentar, esperando a ampulheta fazer seu trabalho para posteriormente filosofar sobre o passado.
REFERÊNCIAS
BIEMILLER, M. Augustine and Plato: Clarifying Misconception. Aporia vol. 29 no. 2—2019. Disponível em: <https://aporia.byu.edu/pdfs/biemiller-augustine_and_plato.pdf> Acesso em: 12 jun 2022
FOUCAULT, Michel. Tradução de Wanderson Flor do Nascimento. Dits et Écrits. Paris: Gallimard, 1994, Vol. IV, pp. 679-688 Qu’est-ce que les Lumières? Magazine Littéraire, nº 207, maio 1984, pp. 35-39. (Retirado do curso de 5 de jan de 1983, no Collège de France).
FOUCAULT, Michel. What is Enllgthenment? ("O que são as Luzes?") in Rabinow (P), ed. The Foucault reader. Nova Iorque, Pantheon Books. 1984. p. 32-50.
OKASHA, S. Cap. IV do livro Philosophy of science: a very short introduction, Oxford University Press, 2002, pp. 58-76. Tradução de Luiz Helvécio Marques Segundo e Sérgio Ricardo Neves Miranda, Universidade Federal de Ouro Preto, 2011. Disponível em: <https://opessoa.fflch.usp.br/sites/opessoa.fflch.usp.br/files/Okasha-1.pdf> Acesso em: 12 jun 2022
STEEL C. & JAGATIA A. If a tree falls in a forest… does it make a sound? CrowdScience, 02 abr 2021. Disponível em: <https://www.bbc.co.uk/sounds/play/w3ct1pq5> Acesso em: 12 jun 2022
TORNAU, Christian, "Saint Augustine", The Stanford Encyclopedia of Philosophy (Edição de Verão de 2020). Disponível em: <https://plato.stanford.edu/archives/sum2020/entries/augustine/> Acesso em: 12 jun 2022
NOTAS
[1] O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001