O que é ser de esquerda?
Felipe G. A. Moreira
Doutor em Filosofia (University of Miami) e Pesquisador de pós-doutorado em Filosofia (Unesp)
29/05/2023 • Coluna ANPOF
O que é ser de esquerda? Uma resposta recorrente é que ser de esquerda é adotar uma determinada rede de crenças. Mas quais crenças seriam essas? Disputas têm se dado acerca dessa questão. Ao menos desde o século 19, marxistas têm sugerido que as crenças em jogo são aquelas associáveis à filosofia de Karl Marx. Por exemplo,
(M-i): O materialismo histórico é uma ciência.
(M-2): A distinção mais fundamental entre pessoas é aquela entre burgueses que possuem os meios de produção e proletários que não possuem tais meios.
(M-3): Desapropriar ou mesmo matar burgueses é uma ação justificada se essa leva a uma revolução que procura, mesmo se apenas gradualmente, atualizar uma comunidade de pessoas que não é dividida entre burgueses e proletários, mas, sim, entre camaradas que compartilham dos meios de produção.
Por outro lado, ao menos desde a metade do século 20, identitários apontam para outra direção; a que seriam crenças, como as seguintes, que caracterizariam a rede de crenças da pessoa esquerdista:
(I-i): O “patriarcado”, o “racismo estrutural” e/ou “supremacia heterossexual branca” condicionam a apreensão daquilo que existe ou pretensamente existiria para além de qualquer condição.
(I-ii): É moralmente inaceitável não adotar crenças como as que: “mulheres são tão, senão, mais capazes do que homens no que está em jogo é a performance de tarefas como fazer filosofia ou ser presidente de um país”; “alegações sobre pretos que outrora eram vistas como ‘piadas’ devem ser criminalizadas se feitas hoje”; “ao contrário do que diz uma leitura recorrente da bíblia, práticas sexuais entre pessoas que têm o mesmo sexo biológico não é uma doença ou uma imoralidade” etc.
(I-iii): Novas normas linguísticas (e.g., acerca do uso de termos como “negro” ou “mulato”) e penas mais duras para aqueles que agem de modo “sexista”, “racista” e/ou “homofóbico” devem ser estabelecidas.
Se a rede de crenças da pessoa esquerdista for caracterizada por (M-i) a (M-iii), exemplos de pessoas de esquerda são: Vladimir Lenin, Mao Tsé-Tung, Fidel Castro etc. Por outro lado, essas pessoas não acreditavam em (I-i) a (I-iii). Logo, se a rede de crenças da pessoa esquerdista é caracterizada por essas crenças, essas pessoas não seriam esquerdistas; esse termo, na verdade, deveria ser aplicado a outras pessoas que não adotam (M-i) a (M-iii). Por exemplo, políticos do partido democrata dos EUA, como Kamala Harris, Hilary Clinton, Barack Obama etc.
Segue-se que as pessoas que compartilham de crenças como (M-i) a (M-iii) são muitas vezes outras em relação àquelas que adotam crenças como (I-i) a (I-iii). Um outro de x, pressuponho, é alguém que discorda e tem uma sensibilidade radicalmente diferente da de x em relação a pelo menos uma disputa, e.g., aquela sobre o que é ser de esquerda. Isso ocorre porque um outro de x ignora, problematiza ou lê de modo diferente os pontos de partida de x para lidar com tal disputa.
Devemos aceitar a visão dos marxistas ou a dos identitários?
Nenhuma das duas. É isso que eu sugeri no The Politics of Metaphysics e que eu gostaria de defender nesta coluna.
Essa defesa começa a ser feita quando se problematiza a própria questão, “O que é ser de esquerda?”, sob a base que ela dá a entender que o predicado, “ser de esquerda” — adiante <Esquerdista> — deve ser aplicado a uma pessoa uma vez e para todo o sempre. Essa pergunta parece sugerir assim que <Esquerdista> se refere a uma espécie de essência que uma pessoa teria independentemente do contexto no qual ela está inserida. Essa visão não parece, porém, mais persuasiva do que uma outra segundo a qual ninguém é de esquerda o tempo todo, mas apenas em certas ocasiões.
Notemos, além disso, que um ponto comum entre marxistas e identitários é que <Esquerdista> deve ser atribuído a alguém que tem uma determinada rede de crenças, seja essa caracterizada por (M-i) a (M-iii), por (I-i) a (I-iii), por uma combinação dessas crenças ou por quaisquer outras crenças. Uma outra visão que eu tendo a achar mais atraente é que <Esquerdista> deve ser utilizado, não em referência a uma pessoa, mas, sim, a uma dada atitude adotada por uma pessoa.
A atitude em questão é a de se relacionar com a rede de crenças de um outro de si de uma maneira mente aberta, empática e/ou que procura maximizar ao menos uma, mas idealmente duas tendências. Primeiro, a tendência libertária de se expressar o que é único acerca de si. Segundo, a tendência igualitária de se contribuir para a criação de uma comunidade universal que defenderia os interesses de todas as pessoas ou mesmo de todos os entes; não apenas aquelas que compartilham de uma identidade particular com si, e.g., a de ser brasileiro.
Imagine uma pessoa que leciona numa escola dentro de uma “favela” (voltarei a esse termo na sequência). A imensa maioria dos alunos dessa pessoa, suponhamos, rejeita ou mesmo pouco compreende (M-i) a (M-iii) e (I-i) a (I-iii). Imagine, no entanto, que essa pessoa é mente aberta em relação a esses alunos; ela, por exemplo, procura entender o tipo de funk “proibidão” que esses ouvem, mesmo que esse não seja do agrado dela. Essa é uma atitude de esquerda na minha visão.
Imagine, além disso, que essa pessoa empatiza com seus alunos no que ela sente ou pelo menos procura entender a dor de se viver num lugar, onde se está constantemente à mercê de traficantes e/ou de policiais. Esse também é uma atitude de esquerda na minha visão.
Imagine, por fim, que ao lecionar de um dado modo, essa pessoa consegue, sim, maximizar suas tendências libertárias assim como as igualitárias. Em outras palavras, ao expressar sua singularidade, essa pessoa também consegue contribuir para a criação de uma comunidade universal, e.g., procurando dar as condições para que seus alunos entendam (M-i) a (M-iii) e (I-i) a (I-iii). Essa também é uma atitude de esquerda na minha visão.
“Pois bem” — imagine um objetor me interrompendo abruptamente —“mas por que adotar o seu uso de <Esquerdista> ao invés do marxista ou do identitário?”
Algumas razões são as seguintes.
O uso de <Esquerdista> adotado por marxistas está recorrentemente envolvido numa atitude usual entre aqueles que aderem a visões de filósofos ocidentais tradicionais como se essas representassem uma espécie de parada do processo sisifiano da história da metafísica. Essa atitude é a de se expressar a violência “sutil” propriamente dogmática: aquele de se sugerir, por exemplo, que somente um “inimigo do povo totalmente imbecil” poderia não acreditar em (M-i) a (M-iii). Não é para lugares muito diferentes que alguns identitários recorrentemente apontam quando confrontados com aqueles que rejeitam (I-i) a (I-iii) e se autorizam a utilizar um termo pretensamente ofensivo como “favela” quando o termo mais adequado, identitários alegam, seria “comunidade”.
Mais: o uso de <Esquerdista> dos identitários está constantemente envolvido em práticas que pertencem ao conjunto do imperialismo de vanguarda abordado no meu último texto aqui. Um exemplo desse tipo de prática é a de se sugerir que apenas aqueles que adotam (I-i) a (I-iii) seriam pessoas “decentes”; que todos os que não assim o fazem precisam ser “educados” e vivem no “passado”. Afinal, sugerem os identitários, os mencionados políticos dos EUA “educam” todas as pessoas, ao apontarem para um “futuro”, onde todos aceitariam (I-i) a (I-iii).
Tanto o uso marxista quanto o identitário de <Esquerdista> parecem implicar que aqueles aos quais esse predicado se referem passaram a existir não muito tempo atrás. Isto é, por volta do século 19, no caso do uso marxista; por volta do século 20, no caso do uso identitário. No entanto, não parece que durante esses séculos uma mudança ontológica na essência das pessoas se deu. Logo, parece mais plausível crer, como tenho defendido, que <Esquerdista> é um predicado que se aplica a variadas pessoas, incluindo aqueles que existiram em tempos imemoriais.
O uso marxista e o uso identitário de <Esquerdista> tem outra característica em comum; eles se referem a pessoas que têm uma formação intelectual consideravelmente específica. Quero dizer: uma formação que permitiu que essas pessoas adotassem crenças como (M-i) a (M-iii) ou (I-i) a (I-iii). Logo, o uso marxista e o identitário correm o risco de usar <Esquerdista> apenas em referência a uma certa elite intelectual. Essa não é uma implicação do uso que eu proponho. Afinal, segundo esse uso, <Esquerdista> se aplica a toda sorte de gente, inclusive àquelas que nunca ouviram falar ou entendem (M-i) a (M-iii), (I-i) a (I-iii) ou mesmo o texto dessa coluna.
Em suma, eu tendo a crer que o uso de <Esquerdista> proposto aqui tem a sua pertinência.