O que Karl Marx disse sobre Jeremy Bentham?
Wesley Sousa
Mestrando em Filosofia pela UFSC
26/05/2022 • Coluna ANPOF
Durante a graduação, tive contato com a filosofia moral inglesa, em especial John Locke e David Hume. Nos corredores da universidade, um professor meu, especialista no pensamento de Jeremy Bentham, em uma conversa casual comigo, pude falar que Marx havia escrito algumas coisas sobre Bentham. Lembrando disso, anos depois, ofereço algumas reflexões a partir da leitura de Marx sobre Bentham aos leitores aqui.
Neste pequeno espaço explicito o diálogo de Marx em relação ao utilitarismo, sobretudo a Bentham. A título de exemplo, em seus Grundrisse (esboços da crítica da economia política de 1857-8), argumenta que foi “Somente no século XVIII, com a ‘sociedade burguesa’, as diversas formas de conexão social confrontam o indivíduo como simples meio para seus fins privados, como necessidade exterior” (MARX, 2011, p. 55).
Em O Capital, Marx relembra Bentham como uma espécie de baluarte da moral utilitarista. Como é bem conhecida a passagem: “A esfera da circulação ou da troca de mercadorias, em cujo limites se move a compra e a venda da força de trabalho, é, de fato, um verdadeiro Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, da igualdade, da propriedade e de Bentham” (MARX, 2017, p. 250). O proceder de Marx, de modo sucinto, revelaria a “igualdade” entre compradores e vendedores da força de trabalho, cujos “recebem uma expressão legal comum a ambas partes”. A “igualdade” seria de que ambos “se relacionam um com o outro apenas como possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente; a “propriedade” seria aquilo que se disporiam daquilo que é “seu”.
Já Bentham seria o corolário do interesse privado, em que “a única força que os une os põe em relação mútua é a de sua utilidade própria, de sua vantagem pessoal”, ou seja, “em consequência de uma harmoniosa preestabelecida das coisas ou sob auspícios de uma providência todo-astuciosa, realizam em conjunto a obra de sua vantagem mútua, da utilidade comum, do interesse geral” para sua amplitude da felicidade (Idem, p. 250-251). A respeito desse individualismo pressuposto na sociedade burguesa, Marx ironiza: “só se leva em consideração a minha simples utilidade para os outros, sou trabalho como um sujeito utilizável” (MARX, 2007, p. 394).
Entretanto, em sua obra A Sagrada Família, escrita em 1845, junto com Friedrich Engels, resulta de uma polêmica com a filosofia pós-hegeliana. Um diálogo de muita aridez, é possível reter os aspectos da formulação da “moral materialista”, citando trechos de Helvétius, d’Holbach, por um lado, e de Bentham por outro, pelos quais se torna patente a concepção de natureza humana que tem como princípio o amor-próprio, princípio que deve ser conciliado com uma adequada expressão social. Nas palavras de Marx, “Bentham erige seu sistema do interesse bem-entendido sobre a moral de Helvétius, do mesmo modo que [Robert] Owen, partindo de Bentham, assenta as bases do comunismo inglês” (MARX; ENGELS, 2011, p. 151 – itálicos do autor).
Marx perfilha que a luta teórica do “materialismo francês”, sob a batuta do pensamento Iluminista – revolucionário na aurora do revolucionamento burguês. Para ele, “o materialismo francês, não foram apenas uma luta contra as instituições políticas existentes e contra a religião e a teologia imperantes, mas também e na mesma medida uma luta aberta e marcada contra a metafísica do século XVIII” (MARX; ENGELS, 2011, p. 143-4 – itálicos do autor). Se na argumentação contida em A Sagrada Família, Marx lastreia os elementos constitutivos do “materialismo francês”, em oposição ao idealismo, sua crítica à “filosofia especulativa” (Bruno Bauer, Max Stirner, dentre outros) é retomada com força em seus escritos na Ideologia Alemã.
Será nesses escritos – escritos estes não pensados para publicação, vale ressaltar – Marx realizou um sintético rastreamento da expressão teórica dessa relação de utilidade que se desenvolve em meio à sociedade burguesa, na qual cada indivíduo passa a ser medido por sua utilidade em relação ao outro. É aí que entra a discussão, ainda que breve, em relação à moral utilitarista. Para ele, não caberia prescrever preceitos morais, apriorísticos para a conduta humana em sociedade – tampouco uma deontologia na gramática moral dos sujeitos no capitalismo. O assunto aparece, segundo Marx, em sua crítica aos chamados “socialistas utópicos”. Nas suas considerações a alguns de seus “representantes”, o filósofo alemão ironiza-os, pois, “imagina[m] que a exigência moral que ele[s] faz[em] aos homens para que modifiquem sua consciência seria capaz de produzir essa consciência modificada” (MARX; ENGELS, 2007, p. 145).
Marx, na Ideologia Alemã, desde logo afirma: “O capitalista, que “vê” o trabalhador “como trabalhador”, só o leva em consideração porque ele precisa de um trabalhador; o trabalhador age da mesma maneira em relação ao capitalista” (MARX, 2007, p. 395). A questão afeiçoada pelo jovem Marx, na relação entre moralidade e economia, na nascente sociedade capitalista, fez com que suas considerações propiciassem o velamento da gênese dos valores normativos para tais autores no materialismo francês e ressonante na filosofia alemã. Os pioneiros foram Thomas Hobbes e John Locke, na Revolução inglesa. Na França, tivemos Holbach e Helvétius, estes que, para Marx, na Revolução Francesa, tiveram “a ilusão filosófica, historicamente justificada, da burguesia surgida precisamente na França e cuja disposição para a exploração ainda podia ser exposta como disposição para o desenvolvimento pleno dos indivíduos num intercâmbio liberto dos antigos laços medievais” (MARX; ENGELS, 2007, p. 396). Em A Ideologia Alemã, citando Bentham, escreve o filósofo de Trier: “Hegel, na sua ‘Fenomenologia’, mostra o quanto essa teoria da exploração recíproca, que foi desenvolvida por Bentham até a saciedade, já fora concebida no início deste século como uma fase do século anterior” (MARX; ENGELS, 2007, p. 394).
Essa chamada “teoria da exploração” colocada pelo jovem Marx, seria uma “teoria que os ingleses desenvolveram como uma simples constatação de uma realidade se torna, nos autores franceses, um sistema filosófico”. Segundo a concepção marxiana de 1845-6, essa concepção “corresponde à burguesia em luta, ainda não desenvolvida; a segunda à burguesia dominante, desenvolvida” (MARX; ENGELS, 2007, p. 398). Marx interpela que o utilitarismo benthamiano, direcionaria, assim como o de Mill, para uma posição que se encontra os indivíduos puramente isolados que, agindo somente por interesses, ter-se-ia ao desenvolvimento da sociedade burguesa.
Dessa maneira, o utilitarismo se conecta diretamente com as relações econômicas de modo estreito: propriedade, assalariamento, exploração, etc. engendradas nesse modelo civil. Para Marx, as decisões se tornam reificadas, isto é, as decisões só são porque há um princípio que as fazem ser notáveis e “desejáveis”. É um modo da existência social, em que as cadeias heterogêneas de alternativas e escolhas foram condicionadas anteriormente. Surgindo o que viria a ser desenvolvido: a noção de estranhamento. Inclusive, a partir de Marx, apenas bastaria uma crítica moral da moral utilitarista, ou seria necessário pensar o terreno em que o utilitarismo existe enquanto tal?
As exposições que Marx faz acerca de Bentham, parecem pertinentes para uma discussão moral contemporânea. Marx reconhece a relação entre o conteúdo econômico e as respectivas expressões ideológicas no campo da moralidade, uma formulação mais acabada e alinhada a um sistema filosófico como em Jeremy Bentham. O corolário disso é explicado pelas relações econômicas que dão azo às formas de atividades morais em sociedade. Pois, na sociedade civil, o utilitarismo não é um reducionismo teórico: é uma forma particular do social, mas agora universalizada.
Depois dessa breve apreciação dos comentários de Marx acerca do utilitarismo de Bentham, penso que convém também observar que aqui a exposição não teve como elemento catalisador “refutar” ou jogar por terra a teoria de Bentham. Embora a teoria do autor britânico tenha se mostrado bastante convencido das suas ideias. Portanto, ainda que possamos enxergar uma petição de princípio ou um raciocínio circular no autor inglês, Marx está correto ao afirmar que o princípio do utilitarismo moral e a relação econômica deste se funda na maximização dos desejos, mas que esses desejos, egoístas, apenas o são de acordo com as formas econômicas que ali se encontram.
Para Marx seria uma vertente ética sustentada sobre o princípio do governo das paixões sobre a vontade privada sob a mercadoria; no mito da “natureza humana”, tida como universal, mas que seria ideologicamente justificada na modernidade. Sua crítica à moral utilitarista, não se reduz, portanto, a uma crítica moral pura e simples, mas à própria forma social da tipicidade da ética utilitarista se exorta. Marx centrou-se no eixo de uma análise interna do próprio desdobramento da sociabilidade do capital, não prescrições futurísticas. É, então, uma crítica imanente ao objeto.
Esse diálogo com meu professor, entre tantos outros e com os demais professores, foram também bons momentos de aprendizagem: ironia ou não, foram-me muito úteis.
REFERÊNCIAS
MARX, Karl; ENGELS, Friedrich. A ideologia alemã. Tradução Rubens Enderle, Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2007.
____________________________________. A Sagrada Família. Tradução, organização e notas Marcelo Backes. 1° edição. São Paulo: Boitempo, 2011.
MARX, Karl. Grundrisse. Tradução Mario Duayer e Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2011.
___________. O capital (livro I). Tradução Rubens Enderle. 2° edição. São Paulo: Boitempo, 2017.