O que pode um professor de filosofia na prisão?

Marcio Nicodemos

Professor de filosofia da DIESP/SEEDUC-RJ e doutorando em Educação pelo ProPEd/UERJ

25/10/2021 • Coluna ANPOF

 

Amar e mudar as coisas me interessa mais

Belchior

 

Esta pergunta provocadora me acompanha há quase uma década, desde que pisei pela primeira vez em uma prisão como professor de filosofia. Entre curiosidades, conselhos, advertências e provérbios, atrás de muros, grades e cadeados, durante aulas, projetos e reuniões, lá está ela, sempre, a me deslumbrar. Por muito tempo, em vão, eu procurei uma resposta, até entender que a prisão nunca oferece respostas, muito pelo contrário, ela faz emergir incessantemente muitas perguntas que me põem a pensar e a repensar a minha atividade por lá. O ensino de filosofia em prisões está fundamentado em uma proposta política de educação em direitos humanos e inserida em uma perspectiva jurídica que considera a educação como um direito social de todo e qualquer cidadão, inclusive aquele que está preso. Ele é ofertado em escolas públicas, localizadas dentro de estabelecimentos penais, no nível do ensino médio, na modalidade de educação de jovens e adultos, como um dos elementos da instrução formal escolar. Há inúmeras especificidades pedagógicas contextuais a serem consideradas visando a criação de uma experiência transformadora que possibilite a construção de uma multiplicidade de identidades pessoais e da vivência de uma pluralidade de práticas da vida social. Mas o que pode um professor de filosofia na prisão?

Pode habitar as instituições provocando o amor à sabedoria para praticar a sabedoria do amor com seus sujeitos? Pode criar conceitos, traçar um plano e encarnar personagens para desterritorializar os pensamentos e as ações? Pode provocar movimentos de maravilhamento e esperança entre seus sujeitos para fazer emergir aquilo que constitui a instituição com o propósito de alterá-la? Pode intensificar os agenciamentos para despertar potencialidades revolucionárias? Pode aprender com os sujeitos novas formas de resistência para empreender ali uma potente máquina de guerra contra um destruidor aparelho de Estado? Pode procurar e percorrer os segmentos das linhas duras que constituem a instituição e seus sujeitos, com vistas às linhas flexíveis e seus fluxos com o intuito de fazê-las abrir linhas de fuga possíveis?

Estas questões me atravessam sempre quando me encontro diante, dentro e entre aquilo que toma forma e se constitui como um processo contínuo de espoliação de vida por meio da restrição de movimentos, do confinamento do espaço e da subtração de tempo. Aquilo que funciona ininterruptamente reprimindo e castigando por meio de mecanismos exaustivos e violentos de controle com o propósito de fazer desaparecer aqueles que não mais puderem ser aproveitados como pequenas peças bem encaixadas e bem aproveitadas em sua engrenagem maior. Aquilo que se estrutura como uma macro maquinaria disciplinar de instrumentos e procedimentos perversos para fabricar micro autômatos adestrados e sem desejo fabricantes de micro autômatos adestrados e sem desejo fabricantes de... Aquilo que deveria ser inominável, mas que tem muitos nomes e é invocado a todo momento em um imperceptível ritual cotidiano: Vigilância! Punição! Disciplina! Controle! Vingança! Prisão!

Estar diante da prisão, do lado de fora, é estar diante do impenetrável. É estar em um tempo que lentamente começa a estagnar, é estar em um espaço que lentamente começa a desaparecer, e, em alguma medida, é sentir a si mesmo lentamente estagnar e desaparecer também. Os muros de concreto com arame farpado no topo são tão altos que o sol tem seu caminhar interrompido e a brisa já não pode correr. Os muros e os portões de ferro são tão grandes que não possibilitam a visão de nenhum ser. O asfalto sob os pés é irregular e propício a muitos tropeços e tombos. E é tudo cinza: muros, portões e asfalto. Nenhum som se ouve. Talvez, o único som que se ouça do lado de fora seja o som do ferrolho da portilhola que abre e fecha quando o agente responsável pela portaria lança um olhar sobre você antes de permitir sua entrada. A boca fica seca.  

Estar na prisão, do lado de dentro, é estar dentro do inescapável. É estar em um tempo fora do tempo, é estar em um espaço fora do espaço, e, em alguma medida, é sentir a si mesmo fora de si mesmo por estar dentro. O olho que tudo vê está por toda parte e te vê antes que você possa vê-lo... Sempre. Pelas câmeras de segurança que estão por toda parte, seguindo todos os seus passos, pelos olhos dos agentes que te examinam e te revistam, observando todos os seus pertences, pelos olhos dos guardas nas guaritas e no alto das torres. Há tantas grades de ferro e tantos cadeados trancados que a impressão é que mesmo quando são abertos é apenas para te aprisionar mais. Os corredores são todos iguais e parecem labirintos sem saída. No chão há sempre pequenos buracos ou poças formadas pela última chuva que entrou pelas goteiras do teto. E é somente por esses pequenos furos que o sol pode entrar. Aqui dentro, além do cinza, há também o branco encardido das camisas, o preto suado da pele, e, muitas vezes, o vermelho sangue escorrido em algum lugar. Há sempre alguém falando alto em algum lugar, mas, em geral, é um som incompreensível, abafado pela dureza das paredes. Como não há nenhuma corrente de ar, o cheiro podre do lixo que se acumula em algum canto está sempre presente. A boca fica com um gosto ruim.

Estar entre a prisão, em suas dobras, entre o lado de fora e o lado de dentro, é ver a possibilidade de estar transitando no intransitável, de estar penetrando no impenetrável, de estar escapando do inescapável. É vislumbrar outros tempos possíveis, outros espaços possíveis e outros modos de ser possíveis. É encontrar a rachadura no muro de concreto, por onde é possível ver o sol e sentir a brisa. É encontrar a ferrugem das grades, descobrir um meio de destravar o cadeado. É descobrir um jeito de escapar por um pequeno instante aos olhos do que tudo vê e ver a saída nos olhos de um outro. É subitamente perceber que o chão ruim não te deixa fincar raízes e te impele a andar. É atentar que com o cinza, o branco, o preto e o vermelho é possível fabricar outras cores. É é possível falar incessantemente para unir sua voz às outras vozes que ali se levantam para fazer com que os murmúrios se transformem em clamor. É conseguir sentir o aroma da vida e sentir a boca salivar para abocanhá-la.

É nessas brechas que, talvez, seja possível a um charlatão de boa vontade como eu, intensificar um processo constante de ruminação de questões que me atravessam para encontrar e percorrer os caminhos que vazam, que fogem, que movimentam, rumo àquilo que é livramento de vida, ampliação de territórios e multiplicação de acontecimentos. Rumo àquilo que desestrutura a instituição, que desarticula seus dispositivos e que faz reaparecer os seus sujeitos. Rumo àquilo que se configura como uma máquina de guerra capaz de produzir mais e mais vagabundos eficazes desejantes de novos modos de vida, novas formas de organização e novas maneiras de relação. Rumo àquilo que é o inusitado, que é o inesperado, que é o impossível. Rumo àquilo que assusta por ainda não ter nome, mas que é possível invocar nos rituais cotidianos de pequenas rupturas.

Não é fácil ver o caminho da brecha rumo à ruptura, pois não há um mapa geral pronto. O caminho só aparece quando o primeiro passo é dado. O caminho é feito no próprio ato de caminhar agindo criativamente frente aos acontecimentos mais diversos. É caminhando que o caminho vem. É fazendo o caminho no caminhar que é possível desarticular rotas prontas, conectar novas rotas possíveis e encontrar uma rota de fuga. É preciso ser uma espécie cartógrafo do impossível: sair sem bússola para caminhar nas regiões fronteiriças de um mapa sempre por fazer, explorar a mobilidade das linhas comuns e errantes que o constituem e se orientar por pontos cardeais não dicotômicos. É preciso caminhar para mapear o imapeável e, assim, imaginar o inimaginável.

Caminhar pelas dobras, caminhar para encontrar brechas e rupturas, caminhar para mapear e imaginar outros caminhos possíveis. Em uma instituição que cerca, paralisa, identifica e classifica, estar sempre em movimento é vital aos sujeitos que a habitam. É preciso, incessantemente e simultaneamente, ir de um lugar a outro, ir de uma ideia a outra, ir de um caminho a outro. Estimular pôr os pés e o pensamento para andarem juntos pelos caminhos como se fossem uma coisa só em busca da mesma rota de fuga. Caminhar, pensar e repensar abrindo caminhos entre o medo, o entendimento, o poder e a aflição para, quem sabe, poder trilhar o caminho que se abre com uma outra pergunta: algo de novo está acontecendo nas prisões e em torno das prisões? (1)

1. Àqueles que desejarem saber mais sobre o tema, sugiro a leitura do artigo Escola, cárcere e pandemia o que pode uma educação filosófica? (2021) que escrevi em coautoria com o professor Dr. Walter Kohan (PROPED/UERJ) e que foi publicado no dossiê Educação em prisões: experiências educativas, formação de professores e de agentes socioeducativos, da REVEDUC/UFSCar (http://www.reveduc.ufscar.br/index.php/reveduc/article/view/4436) e a dissertação de mestrado Filosofia e ensino no cárcere: leis, conceitos, contextos e sujeitos (2019), resultado da pesquisa que realizei no PPFEN/CEFET-RJ (http://dippg.cefet-rj.br/ppfen/attachments/article/81/39-M%C3%A1rcio%20Daniel%20Nicodemos.pdf).