O que seria um método de leitura?
Murilo Seabra
Doutor em Filosofia (La Trobe University)
27/04/2022 • Coluna ANPOF
O que seria um método de leitura? Para mim, resta pouca dúvida de que o chamado “método estruturalista de leitura” não satisfaz as condições mínimas necessárias para ser adequadamente qualificado como um método. Não é que ele seja inteiramente destituído de valor. Uma coisa é perguntar “Ele é mesmo um método?” e outra coisa é perguntar “Ele ajuda em alguma coisa?” O fato de que minha resposta à primeira pergunta é negativa não significa que minha resposta à segunda pergunta não possa ser positiva.
Quando você diz para os leitores e as leitoras: “Leiam esquecendo de si mesmos e de si mesmas, leiam tentando entender o texto como uma entidade autocontida, sem nada para além de suas fronteiras”, você está enunciando não um método de leitura, mas uma ética da leitura. O que você está enunciando é um preceito ou um conjunto de preceitos de natureza fundamentalmente moral que poderiam também ser formulados nos seguintes termos: “Respeite minimamente o que você está lendo, não se esquive da tarefa de entender o que você está lendo”. Seja atencioso. Seja honesto. Seja cuidadoso. Seja atenciosa. Seja honesta. Seja cuidadosa. Não trate a leitura de forma leviana. Não caia em vulgaridades. Não cometa erros elementares.
Mas é claro que o método estruturalista de leitura não se limita a tecer considerações que deveriam ser—o que é diferente de dizer que são—desnecessárias. Embora sua dimensão positiva seja rigorosamente anódina, ele também possui uma dimensão negativa. E ela é abertamente contraintuitiva: “Não leve em consideração o contexto histórico no qual o texto foi escrito, muito menos—é quase desnecessário dizê-lo—o contexto histórico no qual você, leitor, está inserido, no qual você, leitora, está inserida”. O método estruturalista de leitura não é pródigo quanto ao que devemos fazer, mas é pródigo quanto ao que não devemos fazer.
Tudo isso que estou dizendo aqui poderia ser elaborado com mais cuidado. Talvez não seja uma completa perda de tempo submeter o método estruturalista de leitura a uma análise pormenorizada e a uma crítica detalhada. Talvez. Mas existe uma maneira mais simples e eficiente, mais proveitosa e interessante, de mostrar que ele está mais para uma regra de etiqueta do que para um método propriamente dito: basta contrastá-lo com um procedimento que realmente mereça ser rotulado de “método”.
Na sua obra-prima Pele Negra, Máscaras Brancas, Frantz Fanon fala continuamente do racismo e do colonialismo; ele fala continuamente do sentimento de inferioridade (fantasioso e nocivo) dos negros em relação aos brancos, e do sentimento de superioridade (igualmente fantasioso e nocivo) dos brancos em relação aos negros. Tanto o sentimento de inferioridade quanto o sentimento de superioridade levam a uma série de distorções, desde distorções cognitivas até distorções afetivas. E na base de tudo, claro, estão distorções econômicas violentas, brutais. As distorções do mundo subjetivo e as distorções do mundo objetivo se retroalimentam e se reforçam mutuamente.
Mas como Fanon está investigando essencialmente a natureza do preconceito e não simplesmente a natureza do preconceito de raça contra negros—e ele ocasionalmente fala de outros preconceitos para ilustrar seus argumentos—, é possível transpor suas reflexões para outros domínios. É possível tirar delas lições que podem ser aproveitadas para elucidar o funcionamento do sexismo ou da homofobia, por exemplo. É possível tirar delas lições que podem ser aproveitadas para ilustrar a estrutura lógica do classismo ou do capacitismo.
Então já vemos aqui os contornos de um verdadeiro método de leitura, cuja primeira regra se presta a ser enunciada nos seguintes termos: quando você estiver lendo sobre a relação entre dois grupos X e Y quaisquer, tais que os membros de X discriminam os membros de Y, você poderá substituir mentalmente—ou graficamente, se necessário—os termos “X” e “Y” pelos termos “W” e “Z”, caso os membros de W discriminem os membros de Z.
Aqui, sim, temos um método de leitura, e o que ele diz é: quando você ler um trabalho descrevendo as relações entre brancos e negros, substitua “brancos” por “homens”, “heterossexuais”, “fisicamente aptos”, “adultos”, “ricos”, “magros” ou “belos”, bem como “negros” por “mulheres”, “homossexuais”, “fisicamente inaptos”, “crianças”, “pobres”, “obesos” ou “feios”, e você verá que ele oferece lições para mais domínios do que parece à primeira vista. Você poderá aprender sobre sexismo lendo sobre racismo. Você poderá aprender sobre classismo lendo sobre capacitismo. Você poderá aprender sobre esteticismo lendo sobre cognicismo.
É claro que os paralelos têm limites. Mas também é claro que existem, sim, semelhanças e sobreposições entre as diferentes formas de discriminação. Os grupos discriminados são sempre privados de bens objetivos e subjetivos, bens que ficam à disposição dos seus grupos correlativos que não são discriminados. Assim como os negros abaixam a voz ao falarem com os brancos, as mulheres também abaixam a voz ao falarem com os homens, as crianças ao falarem com os adultos e os pobres com os ricos—o que consequentemente proporciona mais voz aos brancos, aos homens, aos adultos e aos ricos. Assim como se tende a achar os brancos mais competentes que os negros, também se tende a achar os homens mais competentes que as mulheres, os ricos mais competentes que os pobres, os belos mais competentes que os feios—o que consequentemente proporciona mais oportunidades de emprego aos brancos, aos homens, aos ricos e aos belos.
O próprio Fanon sugere que suas reflexões valem para outras formas de preconceito e inclusive para psicopatologias que podem ser observadas na ausência de qualquer forma de preconceito. Ele diz, no final do capítulo 3, que está descrevendo uma estrutura neurótica, e que o fato de se tratar de uma neurose desencadeada por desigualdades históricas raciais é puramente acidental. A mesma estrutura neurótica, segundo ele, pode ser observada em outros domínios. Aliás, ele está fazendo justamente uma transposição da estrutura neurótica descrita pela psicanálise para a realidade colonial a fim de entender melhor a psicopatologia do racismo.
Da mesma forma, ao lermos uma análise sobre o problema do preconceito nos tribunais, além de podermos substituir o par “branco” e “negro” pelo par “rico” e “pobre” ou pelo par “heterossexual” e “homossexual”, podemos também substituir “tribunal” por “hospital”, “empresa”, “escola” ou “universidade”. Os réus negros são discriminados pelos juízes tanto quanto os pacientes negros são discriminados pelos médicos e os estudantes negros pelos professores. A mesma lógica se repete em diferentes setores da realidade. E também em diferentes níveis dos mesmos setores. Assim, por exemplo, o racismo pode aparecer tanto no momento da contratação de novos professores e novas professoras quanto no momento da avaliação das provas dos estudantes e das estudantes. Existe um paralelo entre como você trata suas estudantes do gênero feminino e a frequência com que autoras mulheres aparecem nas bibliografias dos trabalhos que você publica.
Quando lemos um texto sobre o racismo, não pensamos imediata e automaticamente sobre o classismo. E quando lemos um texto sobre o judiciário, não pensamos imediata e automaticamente sobre a academia. Mas podemos fazer um pequeno esforço—podemos aplicar este método—para tirar lições sobre o classismo ao ler sobre o racismo e lições sobre a academia ao ler sobre o judiciário. Este pode ser inclusive um método ensinado em sala de aula. E discutido em sala de aula, porque, claro, ele tem limites. Nem tudo que vale para o racismo, vale para o classismo. Nem tudo que vale para o classismo, vale para o capacitismo. Nem tudo que vale para o esteticismo, vale para o cognicismo. Seja como for, o que temos aqui é, sim, um método de leitura. Não uma simples ética, não uma simples regra de etiqueta, mas um método no sentido preciso do termo.
Uma análise cuidadosa poderia até descobrir que este método—apenas rapidamente esboçado aqui—tem muito mais afinidade com o estruturalismo do que o chamado “método estruturalista de leitura”. Pois o estruturalismo—de forte inspiração ameríndia, vale a pena lembrar—se ocupa essencialmente com padrões e permutações, e não com itens isolados, mas com séries. No entanto, como o nome “método estruturalista de leitura” já está tomado, talvez possamos chamá-lo de “método analógico de leitura”. Ou então de “método transontológico de leitura”, pois, afinal, ele investiga paralelos—não paralelos imaginados, mas paralelos concretos—entre diferentes setores e níveis da realidade.