O que vem depois do assédio: boato ou institucionalização?
Laíssa Ferreira
Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Filosofia da Unicamp
Nádia Junqueira Ribeiro
Doutora em Filosofia (Unicamp) e assessora de comunicação/Anpof
Nathalia Rodrigues da Costa
Doutoranda em Filosofia na Unicamp
04/03/2021 • Coluna ANPOF
O tema do assédio moral e sexual vem ganhando maior publicidade nos últimos anos em nossa comunidade filosófica. Sem dúvidas, temos um ganho considerável quanto ao alargamento do tema na agenda pública. No entanto, muitos são os obstáculos que ainda encontramos para lidar com o assédio de maneira adequada, tanto do ponto de vista psicológico quanto do ponto de vista político-jurídico. Essa dificuldade fica escancarada a cada novo caso e as dúvidas de como encaminhá-lo. Diante da falta de clareza de como agir e da ausência de um apoio institucional assegurado às pessoas assediadas, não é incomum que os casos de assédio permaneçam vagando como boatos nos corredores, nos cantos das salas de aula ou, pior, nas conversas privadas de redes sociais. Rebaixados a boatos, deslegitimados sem que sejam formalizados, os casos acabam enredados em sentimentos como culpa, dor e raiva e se mostram politicamente estéreis, incapazes de engendrar encaminhamentos que proporcionem tratamento adequado ao tema.
O ponto que propomos pensar é o seguinte: se conseguimos que o tema do assédio ganhasse alguma visibilidade no espaço público, precisamos agora garantir que ele apareça na forma apropriada a esse espaço: a do debate, não do boato; a de propostas e encaminhamentos e não de acusações. Dessa forma, vemos com entusiasmo a iniciativa da Anpof e da Rede Brasileira de Mulheres Filósofas de promover um debate sobre o tema, na próxima segunda-feira (8/3), e pretendemos, com esse texto, colocar algumas questões para essa discussão.
O que devemos fazer? Quais são os passos a seguir após sofrer um assédio? Caso ele ocorra dentro de uma instituição de ensino, a quais instâncias recorrer? Se o assédio é sofrido fora da instituição, mas envolve discentes e docentes desta ou de outras instituições, a qual órgão ou instituição recorrer, relatar e denunciar o caso? Quais são as possíveis consequências acadêmicas e jurídicas para o (a) discente e o (a) docente envolvidos? Essas e outras questões permanecem como um grande ponto de interrogação para ambas as partes, para as pessoas assediadas e para as assediadoras.
A maior dificuldade que precisamos enfrentar para darmos um encaminhamento político para o assédio parece ser a de coordenar o modo como tornamos públicos esses casos e a devida exposição das pessoas envolvidas. Ao que parece, a publicização adequada exige a institucionalização desses casos e, talvez, a sua judicialização. No que toca à exposição dos envolvidos, mais exatamente da parte assediada, se considerarmos que, em sua maioria, as pessoas assediadas são mulheres, temos que levar em conta ao menos uma possível consequência dessa exposição, a da evasão das mulheres nos cursos de graduação e de pós-graduação. Tem sido amplamente divulgados os resultados de pesquisas que mostram que as mulheres têm um histórico de evasão dos cursos de graduação e de pós-graduação mais elevado que os homens. A pesquisa da professora Carolina Araújo (UFRJ) nos oferece dados que informam o quanto o corredor é mais estreito para as mulheres na Filosofia Brasileira.[1] Tendo isso em vista, precisamos nos perguntar: o quanto dessa evasão não se dá pela pressão psicológica, pela vexação moral ocasionada por uma exposição indevida que rotula as mulheres que sofreram assédio?
Não é novidade o fato da carreira acadêmica das mulheres se caracterizar por uma luta diária de construção de respeito e reconhecimento de seus trabalhos e pesquisas. Quando a exposição das mulheres assediadas ocorre apenas a partir da construção da imagem da vítima, de um segundo a outro essas mulheres podem ser identificadas dentro dos estereótipos que tanto lutamos para desconstruir, como o da impotência, da fragilidade, da inação. Rapidamente, a construção de anos de uma carreira acadêmica séria pode ser demolida, bem como a auto-estima e confiança dessas mulheres no trabalho que realizam.
Desse modo, ao se expor um caso de assédio, o que se espera das outras pessoas, sejam homens ou mulheres, não é compaixão, mas solidariedade. Enquanto a compaixão nos permite olhar os outros apenas como vítimas e sofredores, pessoas sem voz (o que abre espaço para que muitos arroguem o direito de falar em seu lugar); a solidariedade é capaz de enxergar nos outros mais do que seu sofrimento. Ela nos permite enxergar os outros como parceiros para a ação e para o diálogo, com os quais podemos encontrar encaminhamentos para os problemas comuns. Se o assédio se coloca como um entrave ao direito de algumas pessoas ao trabalho acadêmico e ao pleno pertencimento à comunidade filosófica, a solidariedade pode nos ajudar a construir as condições necessárias para transpormos suas barreiras.
Se nos preocupamos com a exposição dos envolvidos levando em consideração a parte assediada, não podemos deixar de pontuar a parte assediadora. É de se esperar que a publicização de um caso de assédio, caso se dê entre professores (as) e alunos(as), cause danos à imagem pública dos professores e às suas carreiras. Mas, certamente, esse é um dos ônus da prática do assédio e que só pode vir a ser minimizado com novas atitudes daqueles que cometeram o crime. Não se trata de novas atitudes para manter as imagens dos(as) professores(as) intactas, mas sim de manter a coerência entre o que falam e fazem. O fato de todos os coordenadores dos programas de pós-graduação em Filosofia terem manifestado apoio, em 2018, ao documento elaborado pelo GT de Filosofia e Gênero da Anpof com diretrizes para prevenir e combater o assédio moral e sexual nos programas de Pós-Graduação em Filosofia das universidades brasileiras nos diz muito. O apoio indica que o problema é real e que há consenso de que deve ser enfrentado. O que ocorre é que, entre os atos e os discursos, entre as condutas e os posicionamentos, pode haver um oceano. A disposição para o combate ao assédio demanda não apenas palavras, mas um comprometimento genuíno com mudanças de comportamento, o que implica escuta, debate e reconhecimento do fato de que ninguém está imune a praticar assédio. Demanda que todos que fazem parte da comunidade acadêmica estejam dispostos a construir saídas efetivas para o combate ao assédio.
Desse modo, assim como tratar as pessoas assediadas como vítimas é politicamente estéril, nos parece que tratar as que assediaram apenas como ‘o(a) assediador(a)’ é tão infrutífero quanto, porque o tratamento político de qualquer problema não passa pelo linchamento ou cancelamento público. Espera-se que a resposta ao assédio estabeleça um novo começo diante daquilo que é irreversível, o ato em si, ao invés de ser mera reação ou vingança. Perdoa-se o agente como alguém capaz de novos inícios, mas seu ato resta imperdoável. Não se trata de esquecer o que foi feito, tampouco de reduzir o agente ao mal cometido, mas de encontrar meios legais que os responsabilize por seus atos. O que se busca é restaurar o respeito e a dignidade dos envolvidos. Sem os meios legais capazes de remediar o dano cometido, assediadas e assediadoras permanecem presas no caso sem possibilidade de seguir adiante. Note-se: é muito mais difícil seguir em frente para a parte assediada, pois em geral, as práticas de assédios se dão dentro de uma estrutura de poder. Entre professores (as) e alunos (as), os professores(as) se encontram em uma posição de poder e de estabilidade acadêmica que os possibilita superar o caso sem mais dificuldades.
Para que caminhemos, então, rumo a um tratamento adequado aos casos de assédios, as propostas para o seu combate devem considerá-lo, em primeiro lugar, como um problema endêmico e qualquer tentativa de tratar denúncias como casos isolados ou pontuais fracassará no seu combate. Por ser endêmico, não podemos cair no reducionismo de medir todos os casos com a mesma régua. Por isso, as propostas devem ser capazes de dar conta das diferentes matizes pelas quais o assédio se manifesta. No documento que nos referimos anteriormente, com diretrizes para prevenir e combater o assédio, solicita-se a adoção de medidas efetivas de combate ao assédio, medidas preventivas e que o assunto fosse incluído como um dos itens de avaliação dos PPG. A questão que colocamos de volta para os programas de pós-graduação é: o que foi feito desde então? Propomos começar por aqui este debate.
Como o assédio moral e sexual não é um problema que toca apenas a pós-graduação, precisamos questionar também os departamentos de graduação e suas diretorias: o que tem sido feito dentro de cada uma das instituições em parceria com as coordenações dos cursos de graduação em filosofia para o encaminhamento e combate ao assédio? Precisamos de respostas a estas questões. Esperamos coragem por parte das coordenações e instituições para tratarem as práticas de assédio com a devida urgência e importância pública que têm. A inação pode ser traduzida como conivência ao escamoteamento dos casos. Precisamos transformar a Filosofia num ambiente em que alunos e alunas se sintam igualmente respeitados e o reconheçam como um espaço de pertencimento. Isso exige o envolvimento de todos os homens e mulheres de nossa comunidade. É o que esperamos.
[1] Araújo, C. (2019). Quatorze anos de desigualdade: mulheres na carreira acadêmica de Filosofia no Brasil entre 2004 e 2017. Cadernos De Filosofia Alemã: Crítica E Modernidade, 24(1), 13-33. https://doi.org/10.11606/issn.2318-9800.v24i1p13-33.