Ontologia e economia política: Marx leitor de Hegel | Especial XX Anpof

Wécio Araújo

Professor e pesquisador na Universidade Federal da Paraíba; Membro do GT Teoria Crítica da Anpof

13/08/2024 • Coluna ANPOF

O meu objetivo nesta exposição é demonstrar como alguns elementos atinentes à formação filosófica de Marx o levam a estabelecer uma relação ineliminável entre ontologia e economia política na sua crítica apresentada em O Capital e, sobretudo, demonstrar que, de modo algum, a superação (Aufhebung) da filosofia hegeliana significaria o seu abandono. Muito pelo contrário, a reflexão de natureza ontológico-dialética encontrada em Hegel determinaria (não sem crítica) a espinha dorsal dos fundamentos teórico-metodológicos da crítica marxiana à economia política[1].

Por que associar ontologia e economia política?

A pergunta no título desta seção tem o intuito de qualificar o aspecto rigorosamente filosófico da questão em tela. O sentido de falar em ontologia na crítica marxiana da economia política justifica-se no fato de que o ponto de partida de Marx está na questão do processo de trabalho subjugado ao capital sob uma perspectiva do sujeito – leia-se: a sociedade burguesa entendida como uma sociedade de classes. Como processo produtor da substância social que adquire a forma valor (Wertform) cristalizada na mercadoria, o processo de trabalho se realiza como uma contradição (Wiederspruch) de natureza ontológica e semovente, estabelecida entre, de um lado, a mercadoria como aparência socialmente necessária e, de outro, o valor como a essência socialmente produzida como substância e finalidade última da acumulação do tipo capitalista.

Para analisar essa relação entre ontologia e economia política, inicio por uma questão nevrálgica: já no começo do seu itinerário intelectual, Marx percebeu que a contradição entre aparência e essência que define a totalidade social capitalista não é algo que se realiza somente como objeto, mas também e sobretudo como sujeito, à medida que o trabalho não produz apenas coisas materiais, mas muito além disto, o trabalho forma o indivíduo socialmente, tendo em vista que, como ele aprende com Hegel, o ser que trabalha também é trabalhado – ou seja: “o trabalho forma” (Hegel, 2008, p. 150).

É em termos ontológicos que Marx situa o trabalho como a propriedade privada sendo para si, enquanto sujeito, assim como o próprio demonstra ao afirmar que “a essência subjetiva da propriedade privada, a propriedade privada enquanto atividade sendo para si, enquanto sujeito, enquanto pessoa, é o trabalho” (Marx, 2008, p. 99). No percurso sequente deste embate entre a sua investigação filosófica e a realidade incontornável analisada pela economia política, Marx define o capital como uma contradição em movimento que a tudo e a todos subjuga, conforme afirmou nos Grundrisse ao esclarecer o seu objeto de estudo: “O capital é a potência econômica da sociedade burguesa que tudo domina. Tem de constituir tanto o ponto de partida quanto o ponto de chegada” (Marx, 2011, p. 60). Nessa mesma obra, o fundamento ontológico também é abertamente declarado quando, um pouco antes da passagem supramencionada, ele ressalta que “no curso das categorias econômicas é preciso ter presente que o sujeito, aqui a moderna sociedade burguesa, é dado tanto na realidade como na cabeça, e que, por conseguinte, as categorias expressam formas de ser, determinações de existência [...]” (Marx, 2011, p. 59).

Essa constatação ontológica irá orientar toda a trajetória intelectual marxiana: a questão do ser que se autoproduz no e pelo trabalho, não somente em suas condições materiais, mas também em suas formas (objetivas e subjetivas) de sociabilidade. Questão central para compreender como a substância social do capital, produzida no e pelo trabalho que adquire forma efetiva no valor, não se refere a um problema secundário ou estritamente de caráter econômico, muito pelo contrário, trata-se da existência de um problema do ser (a sociedade capitalista). Assim, desvelar este problema requer uma mediação ontológico-dialética, embora não a partir de algum idealismo transcendentalista, mas em direção a uma ontologia imanentista e encarnada na efetividade (Wirklichkeit) do solo real da história, em que se encontra propriamente a realidade analisada pela economia política a partir de uma crítica do sujeito (indivíduo e sociedade) historicamente determinado e culturalmente condicionado como um ser social (gesellschaftliche Wesen).

A relação entre ontologia e economia política determina o espírito do itinerário filosófico no qual Marx constrói os fundamentos teórico-metodológicos que lhe permitiram produzir uma crítica original do seu objeto de estudo, anunciado “oficialmente” pela primeira vez no texto com o qual, em meados de 1857/1858, ele inicia seus apontamentos situados especificamente no campo da economia política. Trata-se da famosa Introdução à Crítica da Economia Política[2], na qual lemos no seu parágrafo de abertura: “O objeto de estudo é, em primeiro lugar, a produção material. Indivíduos produzindo em sociedade, portanto, a produção dos indivíduos determinada socialmente, é por certo o ponto de partida” (Marx, 2005b, p. 25). Importante ressaltar que não se trata da produção material apreendida apenas como objeto ou como coisa, mas também como atividade consciente objetiva (práxis) realizada pelos indivíduos enquanto sujeitos de classe na experiência da vida em sociedade.

O impacto e a gravidade políticos da constatação que fundamenta a crítica marxiana da economia política são de natureza ontológica. Questão que pode ser assim resumida: a razão imanente ao ser social que define a sociedade capitalista está na contradição estabelecida entre essência e aparência, que determina a formação social do sujeito moderno em um processo que adquire um caráter de deformação (estranhamento/alienação). Em suas formas de sociabilidade, este processo ancorado no trabalho produz historicamente um ser social (geselschaftliche Wesen) que se expressa como um sujeito dilacerado em sua condição humana como um todo; ou seja, um indivíduo completamente estranhado com relação a si mesmo enquanto sociedade e, consequentemente, uma sociedade alienante e igualmente alienada com relação à sua condição social historicamente determinada. Uma sociedade na qual os indivíduos não se reconhecem como parte de uma coletividade real e, muito menos, como sujeitos na história.

Essa contradição se agrava ainda mais quando compreendemos que isto ocorre porque a condição de sujeito foi usurpada destes indivíduos enquanto sujeitos na experiência da vida em sociedade, por meio do estranhamento totalizado no capital – que contraditoriamente é produto da própria atividade humana (o trabalho). Processo que sustenta a alienação desvelada por Marx a partir da urdidura dialética entre ontologia e economia política iniciada com a análise do trabalho estranhado (entfremdete Arbeit) e do ser social (gesellschaftliche Wesen), coroada com a crítica da economia política apresentada em O Capital.


Referências

HEGEL, G. F. Fenomenologia do espírito. 5. ed. Petrópolis: Vozes: Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2008.

MARX, K. Grundrisse: manuscritos econômicos de 1857-1858. São Paulo: Boitempo; Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

MARX, K. Para a crítica da economia política (1859). São Paulo: Nova Cultural, 2005b.

MARX, K. Manuscritos econômico-filosóficos. - São Paulo: Boitempo, 2008.


Notas

[1] Pelo grau de complexidade do seu objeto de estudo, este ensaio consiste na exposição parcial dos resultados de um projeto de investigação teórica plural em suas fontes, compondo um estudo com ênfase no campo da recente renovação da tradição dialética – que obviamente dialoga com parte da tradição marxista e da Teoria Social Crítica, embora de maneira muito peculiar. Importa qualificar que, no campo do debate historicamente acumulado deste arco teórico, tributário de Hegel e Marx, me aproximo significativamente da corrente teórica contemporânea denominada New Dialetics (Nova Dialética) – que se distingue do materialismo histórico-dialético tradicional. A Nova Dialética elabora, a partir de uma abordagem “não metafísica” de Hegel, uma leitura dialética a partir da influência da lógica hegeliana sobre a crítica de Marx ao capital e à sociedade capitalista na composição de uma teoria social aberta e plural. Um arco teórico pluralista, no qual diferentes estudiosos têm variadas intepretações acerca não só da lógica de Hegel, como também da sua relação com os elementos hegelianos presentes na obra de Marx. Pensadores ligados ao International Symposium on Marxian Theory (ISMT), como Christopher Arthur, Fred Moseley, Tony Smith, entre outros, representam bem essa linha de pesquisa. Também outro nome relevante é o autor de importante livro sobre ontologia em Hegel e Marx, Arash Abazari (2020).

[2] O referido texto encontra-se na obra intitulada Para a Crítica da Economia Política, considerada um marco importante na formação da economia política marxista, escrita no período entre agosto de 1858 e janeiro de 1859. Cf. Marx (2005b).


O minicurso "Ontologia e economia política: Marx leitor de Hegel" será ministrado pelos professores Wecio Araujo (UFPB) e Leonardo da Hora (UFBA), integrando a programação do GT Teoria Crítica, no XX Encontro Anpof, em Recife/PE. As inscrições estarão abertas às pessoas já inscritas no evento a partir do dia 15 de agosto.