Os argumentos de Antônio Risério
Douglas Lisboa S. de Jesus
Doutorando em Filosofia (UFBA)
08/02/2022 • Coluna ANPOF
Antônio Risério argumentou na Folha de São Paulo que o racismo praticado por negros é tão comum quanto o racismo antinegro, mas estaria sendo acobertado pela mídia. “Ninguém precisa ter poder para ser racista, e pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo”. Eis a sua tese principal. Ele também acusa os movimentos negros de estarem repetindo projetos supremacistas.
Ora, a possibilidade do racismo antibranco é uma consequência lógica das definições de injúria racial e racismo já contempladas no sistema jurídico brasileiro (Código Penal, art. 140, §3; Lei 7716/89). Do ponto de vista conceitual, é uma trivialidade afirmar que indivíduos pertencentes a grupos historicamente marginalizados ou oprimidos podem expressar pensamentos discriminatórios em relação a outros indivíduos ou grupos.
Como Risério prefere exemplos americanos, cito o caso do rapper Nick Cannon. Em 2020 ele apareceu num podcast fazendo alegações racistas e antissemitas. Após o caso ter sido noticiado, Cannon foi demitido do programa e perdeu patrocínios. Não houve complô midiático.
Por outro lado, a proposição “pretos já contam, sim, com instrumentos de poder para institucionalizar o seu racismo” não depende apenas da análise conceitual. Essa é uma afirmação empírica que deveria estar fundamentada numa rigorosa e sistemática observação dos fatos. Risério não só ignora essa distinção, como assume como verdadeiro aquilo que deveria demonstrar.
Para ser verdade que negros detêm “instrumentos de poder” dever-se-ia admitir que a mera definição de racismo é insuficiente para explicar sua institucionalização. Ou seja, ainda que a posse de poder seja irrelevante para se ter uma definição de racismo — pelo menos sua a possibilidade in abstracto contemplada na norma jurídica —, a sua manifestação empírica exige uma compreensão das relações de poder.
Mas, afinal, quais instrumentos de poder estariam em posse dos negros?
Em uma democracia liberal, o único instrumento de poder é a norma jurídica. No Brasil, os pretos nunca tiveram “em posse” de tais instrumentos: nunca existiu lei que tenha favorecido negros em detrimento de brancos ou quaisquer outros grupos. Além disso, pretos e pardos, embora constituam a maioria da população (dados e nomenclatura do IBGE), sempre foram, e ainda são, a minoria no Judiciário, no Legislativo e no Executivo.
No setor privado, ainda prevalecem diferenças salariais entre negros e brancos. Pretos e pardos também são minoria em cargo de chefia. Quando empresas criam programas para tentar corrigir essa situação, aí sim é racismo. Enquanto isso, homens negros são as maiores vítimas de crimes violentos. De algum modo os negros conseguem institucionalizar o racismo e, ao mesmo tempo, permanecem em desvantagem perante os brancos.
Mas, se inexistem casos de institucionalização de racismo antibranco no Brasil, sobram exemplos no sentido contrário: as Ordenações Filipinas — a versão ibérica dos Códigos Negros que viriam a ser adotadas na França e nos EUA —, que estiveram em vigor durante todo o período colonial; projetos de leis contra a imigração de negros, das quais o resultado concreto foi o Decreto-Lei 7967, de 1945, que abertamente falava em promover a imigração de europeus; a censura imposta pela ditadura à temática racial. Age de má-fé quem atribui ao “identitarismo negro” práticas excludentes e discriminatórias.
Não há condições objetivas para se falar em projetos supremacistas negros no Brasil. A defesa do fascismo feita por Arlindo Veiga dos Santos, um dos fundadores da Frente Negra Brasileira, era a consequência prática do antiliberalismo e do anticomunismo, pouco tendo a ver com racismo antibranco, o que tampouco importava a Getúlio Vargas, que pôs fim à FNB. De resto, a posição de Veiga dos Santos foi muito criticada pelos negros ativistas da época, fato que Risério prefere esconder. Os grupos supremacistas que existem no Brasil são organizações neonazistas (em números cada vez maiores).
Risério também tenta extrair conclusões sobre o Brasil a partir de interpretações, por assim dizer, criativas de experiências americanas. Por exemplo, ele menciona o antissemitismo por trás da Revolta de Crown Heights, mas omite que os negros que cometeram crimes foram devidamente punidos. Tanto o The New York Times quanto o New York Post publicaram editoriais criticando o antissemitismo dos negros. É muito estranho que o complô midiático não tenha sido capaz de impedir a derrota do democrata David Dinkins (que por coincidência é negro) para o republicano Rudy Giuliani.
Note-se outrossim a menção a Yusra Khogali Ali, uma das fundadoras do Black Lives Matter em Toronto, Canadá. Circula na internet uma fala atribuída a ela na qual supostamente brancos são chamados de subespécie, dentre outras afirmações abjetas. O problema é que a afirmação não teve sua veracidade confirmada (ao contrário de Nick Cannon, cujas declarações estão registradas em vídeo). A página do Brasil Paralelo compartilha as aspas no Facebook como se fosse a mais pura verdade. São as mesmas palavras citadas por Risério, que em momento algum questiona o que reproduz. Não se trata apenas de “fake news”; no mundo acadêmico, isso receberia uma designação mais precisa: fraude.
A tese de Risério de que negros têm instrumentos de poder para institucionalizar racismo não se sustenta. Em primeiro lugar, o autor confunde a análise conceitual da definição de racismo com sua manifestação empírica. Em segundo lugar, usa exemplos dispersos seguindo critérios subjetivos (portanto, sem metodologia rigorosa). Por fim, demonstra ter um julgamento parcial sobre os fatos, como se nota nas várias omissões que faz, o que acaba por prejudicar a suposta objetividade de suas conclusões.