Os caminhos de 22 (ou dizer não ao não)

Rodrigo Ornelas

Doutor em Filosofia e coordenador do GT Poética Pragmática (UFBA)

01/12/2021 • Coluna ANPOF

Este é o segundo artigo da pequena série que comecei a publicar aqui no contexto das celebrações do centenário da nossa Semana de Arte Moderna – dando sequência a Necessidade da vacina antropofágica. Tomo-a, no entanto, mais como um marco, como referência simbólica, mais do que um evento a se exaltar ou desconstruir. Interessa-me partir daí para o que ela representa nacionalmente. E destaco, nesse sentido, como seu ponto alto, o Movimento Antropofágico liderado por Oswald de Andrade.

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            O Modernismo brasileiro são muitos. O que pode significar aí “ser moderno” e o que pode significar “ser brasileiro” não permite que o conjunto abarcado por esse rótulo prescinda da sua natural pluralidade. Por outro lado, se as narrativas servem para alargar horizontes, elas devem também delimitar terminologias, conceitos, descrições. As muitas motivações que levaram gente tão diversa (e divergente) a se engajar conjuntamente na Semana de Arte Moderna no Theatro Municipal de São Paulo, em fevereiro de 1922, não são suficientes para que “modernismo” seja um nome coringa nas aspirações de todos eles. Acredito que há três caminhos paradigmáticos partindo da Semana de 22, dois dos quais representam opções a serem rejeitadas como referência de um imaginário geral (cultural, social, político, filosófico e artístico) do que signifique a Modernidade desde o Brasil – e aí o nosso Modernismo realizado. O terceiro desses caminhos é o que orienta, de fato, um “Modernismo brasileiro” em seu melhor sentido para esse imaginário geral. Mas não só isso: eles encontram hoje correlatos, reencenando opções de elaboração nacional atualizadas, cem anos depois.

Olhando para 1922, vou me valer inicialmente de uma proposta de subdivisões dos grupos envolvidos no chamado Modernismo brasileiro, sugerida por José Guilherme Merquior [1]. Ele fala em sete grupos no nosso Modernismo em geral; mas acredito que três (de autores diretamente ligados à Semana) podem ser tomados, efetivamente, como paradigmas de modos de lidar com a Modernidade. Destacando que minha ênfase aqui é mais sobre maneiras de compreender o Brasil – e a Modernidade –, os outros quatro aproximam-se mais ou menos de um desses três paradigmas (e sigo a proposta de Merquior mais como uma sugestão inicial). Entre os três que destaco, dois mantêm uma atitude “negativa”, ou em relação à Modernidade (onde também é anti-nacional), ou em relação ao Brasil (onde também é anti-moderna). O outro é, em sua melhor expressão, a vertente antropófaga.

Falemos primeiro dos caminhos de negação. Um deles é o do grupo “nacional-primitivista”, composto por Cassiano Ricardo, Plínio Salgado e Menotti Del Picchia, bem como pelo espírito dos movimentos Verdamarelo (1925) e Anta (1927). É um grupo que associa a identidade nacional às tradições locais, contra os “ismos” europeus; de viés anticosmopolita e socialmente conservador. O segundo é o chamado “dinamista”, de Roland Carvalho e Graça Aranha. São apologistas do “futurismo da ‘vida moderna’”, mas compreendo-o como coisa europeia. É de Graça Aranha a ideia de que a força do “espírito que pela cultura vence a natureza”, e que deveria construir a “nação”, não está, no Brasil, na herança de seus “primitivos habitantes, míseros selvagens rudimentares”, mas sim nos nossos “fundadores europeus”, de onde, ainda segundo ele, “toda a cultura nos veio” [2].

Com razão, Merquior chama ambas as vertentes de “pseudomodernistas”. A primeira é antiexperimentalista e dá numa espécie de negação da Modernidade; a segunda quer coincidir modernidade com europeização, num tipo de negação do Brasil. Ambos são contra-rebeldes. Ora, sem experimentação modernizante, apropriação da tradição nacional e engajamento rebelde de ruptura cultural não há um Modernismo brasileiro realizado. Essas correntes são pseudomodernistas porque são algo pré-modernistas e mesmo antimodernistas – no que coincidem com o que, na filosofia e nas ciências sociais, aparecerá depois como “pós-moderno”.

O terceiro caminho é, sob muitos aspectos, não um “terceiro” mas o “primeiro”, de fato. É a via de Oswald e Mário de Andrade, mas também de Alcântara Machado – o que indica a não uniformidade simplória interna a essas divisões. Eles compõem o grupo chamado de, ainda nas palavras de Merquior, “anarco-experimentalista”. São progressistas, rebeldes e afirmativos: afirmaram a Modernidade e o Brasil, o arranha-céu e a floresta [3]. Entre os modernistas no contexto da Semana de 22, esses são os que, de fato, realizam o Modernismo brasileiro, reivindicando aí uma versão brasileira da Modernidade. Quando caracterizou o Modernismo, Mário elegeu como fundamental a fusão do experimentalismo com a atualização artística para uma “consciência criadora nacional” [4]. Modernismo é uma afirmação da Modernidade. Esta, por sua vez, nunca enquanto estrangeirismo, e sim tomada e metabolizada à nossa maneira (brasileira) – para ser posta no mundo como programa de um futuro possível.

Em sua forma de dialética filosófica, a apropriação antropófaga da Modernidade é ainda, como na dialética pós-hegeliana, uma re-apropriação. A Modernidade não nos é estranha: o contato com as Américas foi decisivo para a construção de seus temas – e, sobre isso, ver O Índio Brasileiro e a Revolução Francesa (1937), de Afonso Arinos de Melo Franco (o sobrinho), que Oswald de Andrade classifica como um dos melhores documentos da “literatura antropofágica” [5]. Em contrapartida, o Brasil (não Pindorama) nasce na Modernidade, como obra de um espírito Moderno – onde as suas contradições são elementos formadores essenciais. Fatalmente, a negação da Modernidade acabará desembocando em um espírito anti-nacional – e a negação do Brasil em algo anti-modernista. O interesse dos modernistas antropófagos na tradição é similar ao interesse da psicanálise no passado: como tomada ativa de si, para a criação singular de um futuro próprio. Ou como em Nietzsche – para ficarmos com duas influências fundamentais para Oswald –, que fala de “retorno à natureza” como ascensão, não como volta para trás [6]. O antropófago nada tem do romantismo rousseauniano, que Oswald chama de uma “deformação” [7] – e Nietzsche chama de idealista e canalha [ibid].

O desenvolvimento mais bem sucedido do antropofagismo da década de 1920 está na nossa arte da segunda metade do século XX (especialmente na canção). E concordo com a sugestão de Glauber Rocha, de que “tropicalismo” pode ser um sinônimo do modernismo antropófago [8]. Quando escreveu sobre o conceito de “tropicalismo”, Gilberto Freyre observou que este termo, usado de maneira depreciativa na Europa, deveria ser reivindicado por nós em seu sentido inverso: para afirmar o Brasil [9]. Essa é, inclusive, uma descrição oswaldiana da antropofagia: a “transformação permanente do Tabu em Totem”, i.e., do “valor oposto, ao valor favorável” [10]. Não por acaso, um dos principais mestres do nosso modernismo antropófago, Caetano Veloso, aquele que disse “não ao Não” e que é um dos maiores herdeiros de Oswald, agora, quando o Brasil se encontra em um dos momentos mais dramáticos da sua história, reage com uma obra exuberantemente afirmativa (seu álbum “Meu Côco”, de 2021).

A afirmação é o lado criador da dialética. Engels descreveu os hegelianos de direita como aqueles que se apegavam à ideia de que “o Real é racional”, e os de esquerda como os que sabiam que, apesar disso, “tudo o que existe é digno de perecer” [11]. Esta é uma citação do Fausto, de Goethe, onde a frase é proferida pelo Diabo (Mefistófeles) numa estrofe que começa com o icônico “Eu sou o espírito que tudo nega” (primeira parte, vv. 1338-9). Mas é o Diabo machadiano quem lembra que há muitos modos de afirmar e só um de negar tudo [12]. Penso que devemos rejeitar a negação anti-transformadora do lado conservador e a anti-criativa do lado que se pretende progressista.

Quando agora comemoramos o centenário da Semana de Arte Moderna é oportuno olharmos para os caminhos divergentes abertos a partir dali, em 1922, como referência para os caminhos que desejamos e que não desejamos seguir agora, em 2022. Atualmente, os correlatos das opções “negativas” nos caminhos de 22 para 22 dominam a academia, as redes sociais, a grande mídia, os debates políticos e talvez a própria produção artística. Não que seus porta-vozes e simpatizantes sejam necessariamente maioria; mas costumam ser mais barulhentos, não raro intimidadores, às vezes agressivos e, hoje, institucionalmente bem posicionados. Entendo, a despeito disso, que só há uma direção para o Brasil retomar o curso do seu desenvolvimento nacional: apropriar-se da Modernidade para afirmar o Brasil.

 

 

[1] Formalismo e Tradição Moderna: o problema da arte na crise da cultura, de 1974.

[2] “O Espírito Moderno”, 1924 (conferência na ABL).

[3] Do “Diário de Viagem ao Brasil” (1949) de Albert Camus: “não adianta o arranha-céu, ele [o Brasil] ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta”.

[4] “O movimento modernista”, 1942 (publicada em Aspectos da literatura brasileira).

[5] “O achado de Vespúcio”, s/d (década de 1950).

[6] “Crepúsculo dos Ídolos”, 1888 – Capítulo IX, §48.

[7] “As minhas memórias”, s/d (publicado em Estética e Política).

[8] Revolução do cinema Novo, 1981.

[9] “Em torno de um novo conceito de tropicalismo”, 1952.

[10] Respectivamente, “Manifesto Antropófago” (1928) e “A crise da filosofia messiânica”, (1950).

[11] “Ludwig Feuerbach e o fim da filosofia clássica alemã”, 1886.

[12] “A igreja do Diabo”, Machado de Assis.

 

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