Os três tópicos da filosofia de Epicteto
Aldo Dinucci
Professor de Filosofia da UFES
09/09/2022 • Coluna ANPOF
Série especial - Minicursos XIX Encontro Anpof
Meu minicurso sobre os três tópicos da filosofia de Epicteto será uma oportunidade para vislumbrar em certo detalhe alguns aspectos do pensamento filosófico romano. O pensamento filosófico em Roma costumava ser, até cerca de uma década atrás, menosprezado entre nós, acusado, por seu caráter eminentemente prático, de ser inferior ao pensamento filosófico grego. Após importantes estudos no Ocidente sobre a filosofia em Roma, chegou-se a uma conclusão mais acertada e menos preconceituosa sobre o pensamento romano, sem mencionar que afirmações sobre supremacia cultural são hoje corretamente vistas como manifestações evidentemente discriminatórias.
Além disso, os referidos estudos revelaram que, ao contrário do que se achava, a filosofia produzida em Roma é extremamente sofisticada, oferecendo contribuições originais à filosofia em geral. Por trás de uma aparente simplicidade, fruto da maestria retórica dos escritores do período imperial romano, malhas conceituais elaboradas e sofisticadas se ocultam. Entre nós, este trabalho mal começou: o cuidadoso estudo de filósofos tais como, por exemplo, Hiérocles, Ário Dídimo e Galeno está, no Brasil, ainda em seus primórdios.
A filosofia romana tem aspectos que clamam de seus estudiosos que se aproximem dos textos seminais com atitude distinta daquela com a qual comumente são abordados os textos da Antiguidade Grega em nossos dias. Os romanos e os que viveram com eles, como Epicteto, são grandes admiradores dos gregos antigos, retomando a filosofia pela perspectiva socrática levada ao extremo. Para Roma, a filosofia deve ser literalmente vivida: não se requer do filósofo e do estudante de filosofia que apenas sejam especialistas em filosofia e realizem exegeses dos textos antigos, como hoje é o que há. Devem, outrossim e acima de tudo, usar a filosofia como ferramenta para se transformarem como seres humanos. Como muito bem nos diz Hadot em diversas oportunidades, devem fazer da filosofia uma escolha de vida, se tornando testemunhos vivos de suas próprias ideias. Neste sentido, são seguidores fiéis de Sócrates, seja aquele dos diálogos de Platão, seja aquele de Xenofonte.
Essa busca por fazer com que as ações se harmonizem com os princípios filosóficos fez que estes filósofos do Período Imperial Romano fossem não apenas grandes intelectuais, mas personalidades destacadas em seu tempo. Epicteto é um caso particular nesse cenário. Grego de nascimento, vivendo entre os romanos, tendo sido por parte de sua vida um escravizado e se tornando posteriormente liberto, teve como professor Musônio Rufo, filósofo etrusco da classe equestre muito relacionado com políticos da classe senatorial romana que se opunham aos imperadores tiranos, tais como Nero e Domiciano. Em meio a tais relações e politicamente ativo, Epicteto acabou por se ver exilado de Roma por Domiciano nos anos 90, se retirando para a longínqua cidade de Nicópolis e constituindo lá uma escola de filosofia.
Refletindo sobre seu próprio passado como escravizado e seu presente como exilado político, seu pensamento se nos apresenta como uma intensa busca por liberdade (eleutheria). Libertar-nos da tirania de nossa própria ignorância, que nos faz servir irracionalmente a uma série de senhores, entre os quais se conta a tirania de imperadores, é um dos objetivos da filosofia epictetiana, a qual ele mesmo nos apresenta em três tópicos pedagogicamente pensados para a sua correta apreensão.
Epicteto, como outros filósofos do período romano, não é apenas um intelectual, um professor de filosofia, mas também alguém que busca viver segundo os preceitos de sua filosofia, urgindo seus alunos a fazerem o mesmo. Essa busca por unir as ações às palavras fez com que Epicteto nunca perdesse contato com o mundo à sua volta, como o fazem muitos de nós hoje, encerrados em torres de marfim. Ciente das dificuldades existenciais de toda ordem do mundo em que vivia, que acarretavam grande sofrimento para a humanidade, Epicteto viveu sempre de forma despojada, profundamente convencido de que a ação humana excelente não pode se dar sem atenção à comunidade e sem amorosidade.
Epicteto observa cuidadosamente, através das lentes translúcidas de sua filosofia (como muito bem o definiu nosso Joaquim Nabuco), as coisas aparentemente banais da vida comum, as pequenas grandes coisas do dia a dia. Assim, por exemplo, teve um olhar amoroso pela situação de um amigo que se encontrava em extrema miséria e estava a ponto de abandonar seu filho recém-nascido. Epicteto, segundo relatos que nos chegaram, prontamente adotou a criança, sendo ele mesmo já um homem (solteiro) de idade avançada. Noutra oportunidade, uma lâmpada de ferro, que era, então, um objeto de pouquíssimo valor, fora roubada de seu larário. Impressionado com o fato e se indagando por que alguém se daria ao trabalho de furtar um objeto tão ordinário, Epicteto não teve dúvidas: substituiu a lâmpada de ferro por uma de barro cozido, mais ordinária ainda. É para conhecer um pouco do pensamento de um homem tal que convido para que participem do meu minicurso sobre os três tópicos da filosofia de Epicteto.