Oswald é nosso

Rodrigo Ornelas

Doutor em Filosofia e coordenador do GT Poética Pragmática (UFBA)

24/10/2024 • Coluna ANPOF

O último dia 22 de outubro marcou os 70 anos de morte do mestre modernista Oswald de Andrade. O que significa que, segundo o art. 41 da lei 9.610/98, a partir de 1º de janeiro do próximo ano sua obra entrará em domínio público.

Dez anos antes, o autor estava às portas da ruptura com o Partido Comunista Brasileiro, o que marca sua entrada numa nova fase, especialmente dedicada à filosofia. São desse último período de sua vida a tese A crise da filosofia messiânica, o ensaio O antropófago e os artigos da série A marcha das utopias, entre outros textos e entrevistas. Dez anos antes, escrevia O rei da vela, marco do teatro moderno brasileiro, iniciada um ano antes e publicada apenas três anos depois. Se voltarmos ainda dez anos, encontramos Oswald publicando o primeiro dos seus célebres manifestos, o Manifesto da Poesia Pau Brasil, que comemora neste ano de 2024, então, o seu centenário.

Em meu doutorado tratei da Modernidade (e no que chamei de uma interpretação modernista da Modernidade) tendo Oswald como um dos autores centrais por sua proposta conceitual da “antropofagia” como uma dialética. Quero neste breve texto recuperar alguns elementos do meu trabalho (que logo mais sairá como livro), aproveitando para celebrar a entrada da obra de Oswald em domínio público – uma imagem que me parece mesmo bastante oswaldiana.

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O modernismo é uma atitude intelectual (ética, estética, política, filosófica) afirmativa em relação ao moderno. Isso não significa uma passividade: é justamente uma ruptura para que se seja moderno. Não é um localismo (rejeição do estrangeiro), tampouco mero futurismo (rejeição do passado). É a necessidade de incluir o outro-estranho na sua singularidade-própria e o passado em sua atualidade. É saber que estamos condicionados por contextos, mas que estes podem ser afrouxados e rompidos para o alargamento dos nossos horizontes; estando no mundo de modo contextual (não apenas natural) e sendo capazes de tomar nosso tempo e contexto como matéria de reflexão e transformação[1]. Essa imagem coincide em boa medida com a ideia moderna (i.e., desde Hegel) de dialética.

A dialética hegeliana comporta, simultânea e ambiguamente, a negação e a afirmação. A negação é a diferença do mesmo (outro é não-eu); mas essa diferença é também uma afirmação – o outro é o que determina o mesmo (que é o outro do outro). Essa dupla existência afirmativa-negativa (o Ser é e não-é) expõe a contradição que “reside inerentemente em todo ser humano”, diz Hegel, e que se afirma exigindo sua superação (por ser uma contradição), tornando possível que haja movimento (vir-a-ser)[2]. Só um dispositivo conceitual dessa ordem poderia dar conta de responder àquela necessidade simultânea de atualidade e passado, singularidade e universalidade.

Há ainda outro elemento importante: a dialética, desde Hegel (passando por todos os pós-hegelianos), é movida por um princípio de apropriação, que se contrapõe à alienação – como estranhamento [Entfremdung] e como exteriorização [Entäußerung] – e que guarda as dimensões de negação e afirmação, sendo ela, a apropriação, o que dá o sentido prático-ativo da dialética. Quando propõe a “antropofagia” como recurso teórico filosófico em A crise da filosofia messiânica (1950), o que Oswald de Andrade quer nos oferecer é uma versão da dialética. “Hegel, no que tem de excelente”, aponta Oswald, “dizia que a contradição existe na raiz do próprio movimento. Vida é contradição, vida é conflito. E, na formulação dos atuais temas da Antropofagia, é a dialética o seu maior instrumento”[3].

A antropofagia é uma apropriação dialética; transforma e preserva[4]. Ou seja, ela permite que tomemos a Modernidade (ou o “Ocidente”) sem ressentimento ou melancolia; como coisa nossa, metabolizada, posta por nós[5]. Por isso orienta uma atitude modernista (e uma interpretação modernista da Modernidade). Orienta também uma filosofia existencial: a minha experiência é de confronto com o mundo, sei de mim com o que apreendo do mundo, metabolizo e transformo para mim; o mundo, por sua vez, tampouco segue igual, a partir da minha atividade, de minha apropriação dele. Eu e outro guardam a sua permanência, em mim e no outro, enquanto experimentos, abertos à mudança.

Oswald toma esse elemento nacional-primitivo como princípio ontológico: “Nada existe fora da Devoração. O ser é Devoração pura e eterna. O homem nu compreenderá. De volta das viagens ao país do Absoluto, ao país do Tabu. Platão. Aristóteles, Tomás de Aquino, Kant, Hegel”[6]. A antropofagia considerada como uma Weltanschauung transforma, ele diz, o Tabu em Totem, isto é, o “valor oposto” no “valor favorável” – “Que é o Tabu, senão o intocável, o limite?”[7]. De volta ele mesmo dessas “viagens ao país do Tabu”, Oswald construirá um percurso filosófico tendo como ponto de partida a dialética de Hegel, desenvolvida em Marx, também em Engels – a “construção dialética do mundo moderno”[8]. Depois recuperará Freud, Kierkegaard e, principalmente, Nietzsche[9]. Oswald via os dois últimos como as bases do existencialismo, que será a filosofia de referência para a sua antropofagia desenvolvida, quando alia às intuições da década de 1920 e às suas leituras do marxismo dos anos 1930-40 o aprofundamento na filosofia. Além desses autores, no meu trabalho aproximei Oswald ainda de Max Stirner.

A partir da sua virada filosófica, Oswald leu/releu aqueles que considerava os “desmascaradores da ‘cultura da servidão’, ou seja, do patriarcado e seu destino”[10]: são eles os jovens hegelianos (Marx, Engels, Feuerbach, Strauss), os existencialistas (Kierkegaard, Jaspers, Gabriel Marcel, Sartre, Camus), a psicanálise (na verdade, Freud). Em sua Digressão sentimental sobre Oswald de Andrade, Antônio Cândido conta das leituras de Oswald pós-ruptura com o PCB, concentradas em antropologia, história da cultura e filosofia, especialmente na fenomenologia e no existencialismo. Ele se lembra de ver o exemplar de Oswald do “então recente L’Être et le Néant, de Sartre, todo anotado” e de ter presenciado “na casa Ricardo Batista, uma conversa dele com Nicola Abbagnano”. Relata ainda que a casa de Oswald era então “frequentada por um grupo de mocinhos inteligentes, colegas e amigos de Rudá [filho de Oswald]”, todos fascinados pelo modernista: “Norman Potter, José Arthur Giannotti, Fausto Castilho. Os dois últimos já se encaminhavam para a filosofia e Fausto, sempre ardoroso, se opunha ao sarampão existencialista de Oswald, desenvolvendo, com meu apoio, corretivo de tipo racionalista”.

Quando esteve no Brasil, Albert Camus ouviu a proposta filosófica de Oswald, que o filósofo argelino reconheceu como uma “personalidade notável”. Segundo Camus, a filosofia oswaldiana propunha a “antropofagia como visão de mundo. Diante do fracasso de Descartes e da Ciência, retorno à fecundação primitiva: o matriarcado e a antropofagia”[11]. Durante sua visita ao nosso país, Camus não esteve sempre confortável, nas idas e vindas entre uma São Paulo (“cidade estranha, Oran desmedida”) e uma Rio de Janeiro moderníssimas e florestas, paisagens rurais, sambas e “macumbas”. É nesse contexto que o filósofo se convence de que para o Brasil “não adianta o arranha-céu, ele ainda não conseguiu vencer o espírito da floresta, a imensidão, a melancolia”[12]. Quatro dias antes, em um jantar com Oswald, este havia lhe dito que (nas palavras de Camus) o “seu ponto de vista é que o Brasil é povoado de primitivos e que é melhor assim”. É como se Oswald pudesse dizer para Camus que sim, o arranha-céu não venceu o espírito da floresta, e não só estamos bem assim (sem melancolia!) como isso é o Brasil e é algo que o Brasil pode ensinar ao mundo. Essa é a tese oswaldiana, na qual a antropofagia é precioso dispositivo conceitual filosófico para uma dialética modernista: não queremos rejeitar a Modernidade nem queremos mimetizá-la em sua forma europeia, mas sim realizá-la em nossos termos, podendo ser, então, brasileiros e modernos, modernamente brasileiros – sempre atuais e próprios.

Oswald de Andrade respondeu muito mais do que artisticamente à exigência de nacionalidade aliada à modernidade que caracteriza o modernismo brasileiro. Ele o fez teoricamente; e o fez, de maneira especialmente interessante, filosoficamente. Oswald é nosso: do domínio público brasileiro em geral, mas também da nossa filosofia brasileira. Que o tomemos, pois; e devoremo-lo.


Notas

[1] Ver, p. ex., a ideia de “modernismo” em Passion, de Roberto Mangabeira Unger.

[2] Ver o §88 da Encyclopädie der philosophischen Wissenschaften, de Hegel; também os §119-121. A citação direta de Hegel é de sua conversa com Goethe em 18.10.1827, relatada por J. P. Eckermann.

[3] Informe sobre o modernismo.

[4] Para uma reflexão antropológica sobre antropofagia, ver o estudo de Manuela Carneiro da Cunha e Eduardo Viveiros de Castro, Vingança e temporalidade: os Tupinambá.

[5] Ver a leitura que faz José Guilherme Merquior da antropofagia oswaldiana, em O outro Ocidente: nem respeitar e nem repelir os “valores e técnicas ocidentais”, mas devorá-los, “quer dizer, digeri-los num espírito audacioso agressivo e alegre de assimilação criativa. Esta foi a disposição do outro Ocidente no despertar de sua própria modernidade.”

[6] Mensagem ao antropófago desconhecido (da França Antártica).

[7] A crise da filosofia messiânica.

[8] O antropófago.

[9] Desenvolvi essa relação em “Oswald de Andrade, leitor de Nietzsche: Genealogia, catequese e antropofagia”, publicado na Cadernos Nietzsche, v. 41(3).

[10] Cito Maria Eugenia Boaventura, em O salão e a selva.

[11] Journaux de Voyage, anotações de 03.08.1949.

[12] Idem, anotação de 07.08.1949.


A Coluna Anpof é um espaço democrático de expressão filosófica. Seus textos não representam necessariamente o posicionamento institucional.

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Rodrigo Ornelas

Doutor em Filosofia e coordenador do GT Poética Pragmática (UFBA)

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