Outros modos de se fazer filosofia

Juliana Aggio

Professora de Filosofia da UFBA

10/04/2023 • Coluna ANPOF

Texto publicado originalmente no Le Monde Diplomatique Brasil no dia 30 de março de 2023

A pergunta que guia este breve ensaio é a seguinte: qual autoridade legitima certos modos de se fazer filosofia? Qual autoridade, mesmo que revestida de institucionalidade, poderia se arvorar o poder de julgar o que pode ou não ser considerado como conhecimento filosófico ou quem pode ser ou não reconhecido como filósofo ou filósofa? Inspirada pelo ensaio Pode o Outro da filosofia falar? de Judith Butler, proponho questionar os conteúdos da história da filosofia, os métodos investigativos, asfunções e os critérios avaliativos, bem como a autoridade em legitimar certos modos de se fazer filosofia e excluir outros. Minha crítica sinaliza para uma ousadia, a saber: talvez possamos pensar não apenas sobre, mas com e para além uma pletora de obras se pudermos nos abrir para outros modos de se fazer filosofia. 

Não se pretende, aqui, delimitar latifúndios do pensamento, nem propor monocultura ideológica ou doutrinação acadêmica, tampouco elogios ao atual estado das coisas. Muito pelo contrário, as perguntas deste ensaio acompanham minha trajetória e, feito bumerangue, me fazem provar de meu próprio pharmakon: eu, que fui formada nesse sistema bem delimitado da especialização sobre a filosofia de um autor canonizado. Certamente, o meu incômodo me impele a provocar algum constrangimento a essa instituição acadêmica que insiste em preservar seu excessivo rigor científico,sua elegância eurocêntrica,sua erudição excêntrica,suas personalidades arrogantes e idiossincrasias, sua enfadonha repetição do mesmo, sua tentativa de assentar um solo inquebrantável na especialização em um autor e o infindável comentário de texto desse autor. Erro maior não há na Academia do que a fidelidade às palavras do filósofo e os desdobramentos das técnicas da especialização.

Do problema da especialização como autorização para falar segue-se outro pior: o de não se autorizar a pensar por si mesmo no sentido de ousar filosofar, encolhendo se na menoridade intelectual, tornando-se um espectro por detrás de um autor canonizado e, ainda, gastar toda uma vida em disputar a propriedade nacional de especialista desse autor para, no final, receber – permita-me aqui usar de inspiração machadiana - o medalhão de grande especialista em... Com certa indignação e sede de ousar, faço algum contraponto ao modo institucional dominante de se fazer filosofia que seria, digamos, mais um saber sobre a filosofia de alguém canonizado do que a liberdade de se pensar sobre, com e para além da filosofia de um ou mais autores. Essa liberdade, todavia, pressupõe a abertura de se contestar os pressupostos institucionais de legitimação da produção filosófica.  

Na hierarquia acadêmica, os cargos de poder e seus medalhões revestem de institucionalidade a autoridade para legitimar certos modos de fazer filosofia. Ora, mas sempre cabe a seguinte contestação: Qual autoridade, mesmo revestida de institucionalidade, poderia se arvorar o poder de julgar o que pode ou não ser considerado como conhecimento filosófico ou quem pode ser ou não reconhecido como filósofo ou filósofa? Quais são os pressupostos do julgamento e da seleção? Ora, sabemos que eles operam como critério nas bancas de seleções para inserção como discente e docente na universidade, nos pareceres que aprovam ou rejeitam publicações e verbas que financiam projetos e eventos. Sabemos também que são os docentes das universidades que sustentam esse entendimento e exercem o poder de determinar o que seria mais ou menos filosófico ou nada filosófico. Agora, é preciso que saibam que quando as mulheres em geral, e, sobretudo, mulheres e homens negros e indígenas são excluídos do cânone, e quando certos temas, objetos, questões e modos de produzir conhecimento também são excluídos, essas perguntas não poderiam deixar de serem feitas e de serem, ainda, incômodas, justamente porque revelam uma estrutura de poder por detrás dos parâmetros institucionais que definem o que seria legitimamente filosofia. 

Não apenas inclusão e ampliação do cânone, é preciso, em verdade, uma completa revisão feminista e antirracista da história da filosofia, o que, para muitos, parece ser um gesto de colocar alguma “impureza” nastintas acadêmicas. Pois que, para mim e para muitos, seria antes um gesto de justiça e, como disse Butler, no ensaio mencionado acima, Pode o Outro da filosofia falar?: “na medida em que a filosofia perdeu sua pureza, também adquiriu sua vitalidade em meio às humanidades” (2022, p. 413). É preciso, portanto, fazermos uma história da filosofia que não apenas inclua os excluídos, mas que se abra para novos objetos, questões e temas, bem como novas formas de argumentar, imaginar e produzir conhecimento. Perspectivas culturais e históricas ameaçam de forma saudável deslocar os próprios termos da filosofia e ultrapassar as barreiras da departamentalização. 

A despeito da peneira estreita da academia que reduz os modos de se fazer filosofia, a própria filosofia, escandalosamente, vem se multiplicado e ganhando força para questionar, novamente, os conteúdos da história da filosofia, os métodos investigativos, as funções e os critérios avaliativos. As perguntas que trago aqui levantam certa suspeita sobre “a filosofia institucionalizada”, mas não para simplesmente defender que haveria “uma filosofia desistitucionalizada”, caindo num falso binarismo, e sim para suscitar a multiplicidade da produção filosófica que força o alargamento dos limites institucionais, muitas vezes fixados em protocolos e padrões por demais restritivos. 

Outros modos de se fazer filosofia já existem fora do reduto oficial da filosofia acadêmica, nas suas beiradas interdisciplinares e nas fronteiras de seus conceitos lidos e relidos por análises culturais sofisticadas e potentes, como nos mostrou Butler (2022). E essas foraclusões da filosofia, esse outro estranho que lhe assombra e a faz perder de si, essa “filosofia fora da filosofia” mostra que “a filosofia tem sido majoritariamente solitária, territorial, protetiva e cada vez mais hermética” (2022, p. 411). Se esse diagnóstico estiver correto, então talvez seja preciso que a filosofia volte novamente a buscar o que lhe é próprio, não no sentido de uma definição precisa do que ela seja, o que não parece ser sequer possível, mas no sentido de plena abertura para o pensamento que pensa a si mesmo. Ora, na medida em que qualquer objeto de pensamento pode ser um objeto da filosofia, ela não teria limites senão aqueles impostos a posteriori e por vias institucionais. Ou seja, não seria o seu objeto, por natureza ilimitado, que a delimitaria, mas o modo de capturá-lo em palavras e ações. Tais limites ou delimitações do fazer filosófico determinados e impostos arbitrariamente ou com base em razões, não são naturais, eternos, imutáveis, infalíveis e inquestionáveis. São historicamente contingentes e filosoficamente passíveis de questionamento. Ora, a filosofia já foi modo de vida, mas parece ter se encerrado na tarefa de produzir discursos sobre conceitos ou, mais restritivamente, na tarefa acadêmica de analisar textos e argumentos. 

Assim, não é simplesmente a filosofia acadêmica que gostaria de questionar, nem sua formação histórica e contingente, mas afirmar que, justamente por sua institucionalização ser histórica, ela pode e deve se transformar, alargando seus parâmetros e suas exigências, operando numa espécie de minimum criteria, ou seja, que os critérios para legitimar o que é filosófico sejam mínimos o bastante e amplos o suficiente para se permitir uma natureza múltipla, aberta e inclusiva da filosofia. Tampouco a filosofia acadêmica deveria se arvorar a ser hegemônica no tecido cultural, mas se ver apenas como mais uma vertente, aberta à interdisciplinaridade e, se tornando, por isso mesmo, mais alargada em seu interior e mais borrada em suas fronteiras com o exterior. Se abertura aqui almejada visa a multiplicidade dos modos de se fazer filosofia, então isso só poderia ser alcançado e mantido se a deferência ao purismo for abandonada em nome da expansão dos problemas, conceitos e métodos, bem como da inclusão de pensadores que não foram canonizados e não são, atualmente, reconhecidos como filósofas/os/es.  

Ora, se a filosofia for feita com menos tecnicismo, com uma linguagem menos hermética e com uma clareza convincente e profunda, se não for feita somente por e para especialistas, se a paciência do conceito vencer a pressa do produtivismo, se a especulação criativa vencer a lógica do mercado e das honrarias,se ela romper os muros dos narcisismos que a apequenam e a reduzem a medalhões, se ela abandonar o purismo e se lançar a pensar objetos considerados não filosóficos pela academia, se não se pretender inteiramente a-histórica e não ignorar a função social que lhe cabe conforme cada momento histórico, se o texto for apenas pretexto para uma vivência transformadora de si e do mundo, se ela não estiver tão apartada da vida, mas puder ser também um modo de vida, capaz de criticar a si mesma e não se levar tão a sério, se as fronteiras institucionais, departamentais e disciplinares forem alargadas e borradas, então podemos imaginar que dela surgirão resultados inesperados e outros modos de fazer filosofia poderão habitar os corredores da Universidade.

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