Para ler Butler como alvo e pensadora dos discursos de ódio

Carla Rodrigues

Professora do Departamento de Filosofia da UFRJ e pesquisadora Faperj
Integrante do GT Filosofia e Gênero

Valéria Cristina L. Wilke

Professora de Filosofia (UNIRIO); Integrante do GT Filosofia e Gênero

Susana de Castro

Professora do Departamento de Filosofia e do Programa em Pós-Graduação em Filosofia da UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero da Anpof.

Marília Pisani

UFABC
Integrante do GT Filosofia e Gênero

Fabio A. G. Oliveira

UFF
Integrante do GT Filosofia e Gênero

Príscila Teixeira de Carvalho

Doutora em Filosofia pela UFRJ; Integrante do GT Filosofia e Gênero.

Izilda Johanson

UNIFESP
Integrante do GT Filosofia e Gênero

01/11/2017 • Coluna ANPOF

Quando, em 1997, a filósofa Judith Butler publicou Excitable speach, ainda estava desdobrando algumas ideias centrais discutidas em Gender Trouble, livro de 1990, aqui traduzido por Problemas de gênero apenas em 2003. Nesse espaço temporal que separam a primeira edição norte-americana – há uma segunda edição de 1999 com nova introdução em que a autora revisita a própria obra –, a produção intelectual de Butler se deu em função de críticas e debates surgidos a partir de propostas apresentadas no seu primeiro livro. Foi assim com Bodies that’s matter (1993), com The Psychic Life of Power: Theories in Subjection (1997) – cuja tradução brasileira chega em breve às livrarias como A vida psíquica do poder: teorias da sujeição, mais um título da coleção filosófica da Autêntica –, e com Excitable Speech: A Politics of the Performative, infelizmente ainda sem edição brasileira. Suas ideias nesse livro são de grande ajuda, inclusive para a compreensão do que consiste os discursos de ódio usados contra ela neste momento no Brasil.

Desde Gender Trouble, a filósofa estava se valendo da noção de performatividade da linguagem, tal qual proposta pelo linguista John Austin, para pensar a subversão da identidade, aqui entendida como uma dada construção social fundada num substrato natural, o sexo anatômico. Em outras palavras, ela apontava a insuficiência de pensar a diferença sexual apenas na chave do par sexo/gênero. Além de manter uma dualidade entre masculino e feminino, havia uma limitação política em pensar a diferença sexual numa abordagem binária, que constrangia o debate numa chave teórica de reprodução da heteronormatividade. É nesse sentido que Butler propõe pluralizar as dimensões narrativas – conjunto de práticas e discursos – que se impõem sobre os corpos. Desta pluralização, a possibilidade de reinvenção contínua torna possível visualizar as dimensões em que a heterossexualidade compulsória atuam. Trata-se, então, de abrir a possibilidade de produzir novos corpos, não apenas novos discursos.

Ao retirar do corpo o fundamento das construções sociais de gênero, Butler passa a apontar para o vazio das normas de gênero. Nada, portanto, no seu pensamento poderia ser classificado como “ideologia de gênero”, na medida em que um de seus mais importantes gestos políticos é desconstruir inclusive o gênero e retornar ao corpo para entender, para usar sua própria expressão, o que faz com que determinados corpos importem e com que determinados corpos pesem. É assim que se pode articular, por exemplo, Bodies that’s matter com Precarious life e Quadros de guerra.

É da performatividade que Butler se vale para argumentar que nossos corpos fazem, produzem, operam aquilo que somos, ainda que tal performatividade não seja organizada a partir de uma dimensão de pura decisão individual. Butler postula o conceito de performatividade para descrever o modo através do qual certo tipo de comportamento é repetido, ou citado, reiteradamente até cristalizar e virar substância, isto é, até ter a aparência falsa de que esteve o tempo todo lá. Na sua visão, não há sujeito antes de ação de ‘citação’ de certos comportamentos, considerados normas e leis, mas o sujeito vai se formando na medida em que desde cedo incorpora as normas sociais, ou melhor as ‘atua’ através gestos, roupas, escolhas. É desta forma que os indivíduos se tornam sujeitos masculinos ou sujeitos femininos. O controle social, feito desde cedo na família, na escola, no consultório médico, enquadra o sujeito de tal forma que a ele ou ela não parece haver escapatória senão seguir a lei do gênero que estipula tanto como ele/ela deve aderir a certos marcadores de comportamento, como vestimenta, entonação de voz, gostos, atração sexual pela pessoa do sexo oposto, para ‘fabricar’ para si uma identidade coerente, reconhecida socialmente, que esteja de acordo com o que se espera do comportamento de gênero adequado a sua classe, estatuto social, cultura nacional, raça, e outros. É desta forma que a identidade é fabricada pelo indivíduo, mas segundo os modelos e normas socialmente determinados, pois só assim o indivíduo pode vir a assumir sua posição como sujeito na sociedade.

Ocorre que se somos nós que fabricamos nossa identidade na medida em que incorporamos os marcadores de visibilidade ontológica normativos, também somos nós que podemos subverter essa situação e embaralhar as normas e os discursos. A subversão paródica da performatividade de gênero, isto é, a citação da sua condição de maneira teatral, desperta a consciência para a sua artificialidade original, como nos exemplos de atuação das dragqueens e dos dragkings. Apesar da tendência da norma heteronormativa de enquadrar sexo, gênero, e desejo dentro de um só modelo, o corpo queer, aquele que não cabe no espaço público, denuncia que essa norma é criada por interesses de controle e poder alheios às múltiplas formas de expressar desejo, sexualidade e gênero. Esses mecanismos desestabilizam o pressuposto de identidade coerente e fixa forjada pela norma. Butler entende, como Foucault, que a lei e a norma são pilares incontornáveis de qualquer processo de construção de identidade, mas dá um passo além quando afirma que, se toda norma depende de sua repetição, então a possibilidade de subversão já está inscrita na própria norma.

Nesse sentido, trataria menos de uma disputa no campo do “gênero” (só por isso já não faria sentido falar de ideologia de gênero em Butler), mas muito mais uma disputa no campo das produções dos corpos e dos discursos sobre eles: corpos medicalizados, corpos precarizados, corpos violados, corpos expulsos dos espaços públicos por meio de uma violência que aparece na sua produção/exclusão: “afinal, porque alguém é morto pelo jeito que anda?”, se pergunta Butler. Algo que Paul B. Preciado problematiza no Manifesto Contrassexual com suas “tecnologias de sexo” e a designação dos “órgão sexuais com zonas geradoras da totalidade do corpo”. Esta volta do gênero para o sexo, ou melhor, o questionamento do par sexo/gênero como tecnologia de poder biopolítico, encontra com as epistemologias feministas de Silvia Federicci (que apresenta a caça às bruxas, a queima do corpo e a apropriação das terras como a base da violência colonial que funda a acumulação primitiva do Capital) e de Donna Haraway (que busca nas bactérias e na vida biológica, na produção científica da vida e da natureza, o fundamento do poder e das produções ideológicas no capitalismo pós-industrial high tech). Desta perspectiva analítica, os estudo de gênero reencontram – não pela via materialista clássica, mas sem abrir mão do materialismo – , sua articulação decisiva entre sexo-raça- classe na produção do corpo político.

Corpo e linguagem nos permitem fazer coisas com palavras, como no livro de Austin (How to do things whith words), daí a importância de Excitable Speech para pensar o momento atual brasileiro. No livro, Butler reunidos a todos esses problemas de gênero uma certa tomada de posição no campo político norte-americano, o que se acentuará na sua obra depois do 11 de setembro. Na detalhada análise que faz sobre como os discursos de ódio se tornam injúrias capazes de alterar o estatuto social do sujeito, Butler está pensando também no método político de grupos extremistas, cuja atuação só fez crescer desde então. Passados 20 anos da edição de Excitable Speech, o discurso de ódio que ela analisará na sociedade norte-americana chegou ao Brasil, principalmente no campo moral, mas não apenas. Trata-se principalmente de perceber que o ódio faz coisas com palavras, configura sujeitos como abjetos, e coloca em questão aquilo que se está enfrentando diante dos discursos de ódio que pretendem impedir a realização de um colóquio acadêmico: qual é a força da violência verbal, da injúria, das palavras que agridem, das representações que ofendem, e como compreender suas linhas de fuga?

O tema do performativo acompanha a obra de Butler e reaparece em livro recente, Notes toward a performative theory of assembly (original de 2015, previsão de edição brasileira em 2018), em que Butler propõe pensar como performativas diferentes formas de ação política contemporâneas. Aqui, suas proposições sobre a precariedade dos corpos se encontram com os atos de fala políticos e performativos para pensar as formas de fazer política na contemporaneidade. A filósofa está tomando as manifestações de rua, as ocupações das praças e as mobilizações populares como signos dos acontecimentos políticos globais mais recentes para fazer duas perguntas que cabem ao contexto político brasileiro: “quem é o povo, afinal?” e “a que operações de poder discursivo se circunscreve ‘o povo’ em determinadas circunstâncias e com que propósitos?” São questões que inspiram o colóquio “Os fins da democracia”, organizado pela Universidade de Berkeley e pela USP, sediado pelo Sesc Pompéia nos dias 7 e 8 de novembro, cujo subtítulo é “Estratégias Populistas, Ceticismo sobre a Democracia e a Busca por Soberania Popular.”

São raivosos os discursos que pretendem impedir a vinda de Butler ao Brasil, mas não é um ato político isolado. Estes atos se inserem numa rodada nova de violência colonial, na produção de precariedade, das massas de excluídos (exército de reserva sempre necessário para acumulação de capital), de “crises” que justificam ações sobre os corpos, pelo controle tempo de trabalho, da reprodução sexual, do alimento, da água, enfim, de toda a rede de sustentação da vida, incluindo a memória, conhecimento e a cultura, ataques do qual professores das redes públicas de ensino fundamental e médio já são alvo, como os relatos publicados aqui (https://apublica.org/2016/08/ameacas-ofensas- e-sindicancias/). Essa mordaça é parte da precarização da vida, como Butler já demonstrou, o que só reforça o valor do seu pensamento no momento político brasileiro, reitera a importância das pesquisas sobre sua filosofia, e reafirma como ato político a inscrição de seu nome nas bibliografias de nossas teses de mestrado e doutorado.

 

ANPOF 2017/2018