Para não afastar os devires | Especial Minicursos XX Anpof

Pablo Enrique Abraham Zunino

Professor de Filosofia (UFRB) pesquisador visitante (USP)

01/08/2024 • Coluna ANPOF

O devir pode ser imediatamente associado ao movimento, à temporalidade e de modo geral à passagem de um estado de coisas a outro, o que permite incluir nessa transformação a famosa Metamorfose de Franz Kafka, na qual o personagem Gregor Samsa devém inseto e inicia uma narrativa impressionante [1]. Para Gilles Deleuze, ao menos desde o livro Proust e os signos (1964), a noção de devir remete ao duplo devir entre a vespa e a orquídea, onde a primeira experimenta um devir-orquídea sem transformar-se efetivamente em orquídea; e a orquídea devém-vespa sem deixar de ser orquídea. Como explica François Zourabichvili, o inseto se alimenta da flor enquanto a fertiliza, promovendo uma dupla “captura de código” [2]. O inseto participa do sistema reprodutivo da flor, ao passo que a planta lhe serve de nutriente.

O conceito de devir assume um lugar de destaque na produção de Deleuze junto a Félix Guattari. O platô 1730 — Devir-intenso, devir-animal, devir-imperceptível, publicado em Mil Platôs - Capitalismo e esquizofrenia (1980) [3], nos leva a retomar a formulação do “devir-animal” da obra Kafka, por uma literatura menor (1975) [4] e de outros textos complementares, como os Diálogos (1987) entre Deleuze e Claire Parnet [5], onde o devir remete ao processo criativo da escrita em dupla. Contudo, o que me mobiliza a desenvolver esta pesquisa e que de certa forma pretendo problematizar é uma das expressões enigmáticas do livro Conversações, onde Deleuze afirma: "É preciso não se mexer demais para não espantar os devires", justificando a sua aversão pelas viagens. Assim, o percurso que vai dos diferentes devires à multiplicidade revela uma estratégia argumentativa contra os dualismos filosóficos. Em outras palavras, uma “linha de fuga” capaz de um devir-minoritário e, nesse sentido, revolucionário. Note-se que as viagens pelas quais o filósofo da diferença sente aversão são justamente as viagens dos acadêmicos e intelectuais que se juntam em algum lugar distante para apresentar suas conferências: falar, falar e falar. 

Bela surpresa ao ler em Diferença e repetição (1968) que a distribuição nômade era mais apropriada que a sedentária em uma ontologia do azar ao estilo de Borges. A questão das viagens e a ideia do nomadismo remonta às viagens jornalísticas de Serge Daney, segundo a carta de Deleuze, também publicada em Conversações. Não se trata de viajar pelo prazer, mas como um “sonhador” que busca a “viagem absoluta” mais do que fazer “viagens de verificação” do estado midiático. Ora, como vincular isso ao tema dos devires: de que devires se trata? Onde estão esses devires? Que tipo de encontro ou afeto pode promover um devir menor, como querem Deleuze e Guattari? 

As vidas dos professores raramente são interessantes. Claro, há as viagens, mas os professores pagam suas viagens com palavras, experiências, colóquios, mesas-redondas, falar, sempre falar. Os intelectuais têm uma cultura formidável, eles têm opinião sobre tudo. Eu não sou um intelectual, porque não tenho cultura disponível, nenhuma reserva. O que sei, eu o sei apenas para as necessidades de um trabalho atual, e se volto ao tema vários anos depois preciso reaprender tudo. É muito agradável não ter opinião nem ideia sobre tal ou qual assunto. Não sofremos de falta de comunicação, mas ao contrário, sofremos com todas as forças que nos obrigam a nos exprimir quando não temos grande coisa a dizer. Viajar é ir dizer alguma coisa em outro lugar, e voltar para dizer alguma coisa aqui. A menos que não se volte, que se permaneça por lá. Por isso sou pouco inclinado às viagens; é preciso não se mexer demais para não espantar os devires. Fiquei impressionado com uma frase de Toynbee: “Os nômades são os que não se mexem, eles tornam-se nômades porque se recusam a ir embora”. [6]

Inesperadamente, essa passagem e todo o desenvolvimento anterior me fez pensar no devir estático que proporciona o simples ato de olhar um quadro. Quanto tempo ficamos diante de uma obra de algum pintor famoso viajando nas cores, nas formas ou nas deformidades, nas intensidades que percorrem nosso cérebro, nosso corpo e estabelecem um devir entre o pintor, o quadro e nós mesmos? Esse é o ponto de partida para o minicurso “Gilles Deleuze e a pintura de Francis Bacon”. 

Francis Bacon (1909-1992) foi um pintor irlandês considerado como um dos artistas mais importantes do século 20, cuja atualidade pode ser aferida na brilhante exposição dedicada à sua obra, realizada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). A criação desta série de pinturas extraordinárias revela uma maneira revolucionária de expressar a figura humana. Por outro lado, os estudos filosóficos de Gilles Deleuze sobre a obra de Bacon iluminam aspectos teóricos e nos fazem pensar para além do que se apresenta nas imagens.

O objetivo do curso, portanto, é fazer uma leitura introdutória da obra Francis Bacon: lógica da sensação (1981), de Gilles Deleuze. O tema da pintura será examinado desde uma perspectiva filosófica que enfatiza os conceitos de estrutura, figura e contorno a fim de explicitar as relações entre o corpo, o espírito e a noção de “devir-animal” que permeiam a pintura de Bacon. Ao assinalar o papel dos “intercessores” no pensamento deleuziano, buscaremos aprofundar o vínculo entre pintura e imagem através de uma análise dos elementos da pintura de Bacon, conferindo alguns quadros comentados. De tal modo, noções singulares como “zona de indiscernibilidade” e a distinção entre carne e cabeça passam a modular as relações entre corpo, espírito e devir-animal, abrindo possibilidades interpretativas no contexto da obra e do pensamento de Deleuze – sobretudo, no que tange à crítica da representação por meio dos conceitos de “intensidade” e “sensação”.

O minicurso “Gilles Deleuze e a pintura de Francis Bacon” será oferecido pelo prof. Dr. Pablo Enrique Abraham Zunino, do GT de Filosofia Francesa Contemporânea, no XX Encontro Anpof, que será realizado em Recife entre 30 de setembro e 4 de outubro. Inscrições para os minicursos vão abrir no dia 15 de agosto.

Referências

[1]  Kafka, F. A Metamorfose. Trad. Modesto Carone. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.

[2] Zourabichvili, F. Qu’est-ce qu’un devenir, pour Gilles Deleuze? Conférence prononcée à Horlieu le 27 mars 1997. Lyon: Horlieu Éditions.

[3] Deleuze, G; Guattari, F. Mil platôs: capitalismo e esquizofrenia 2. Tradução: Suely Rolnik. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2012b. v. 4.

[4] Deleuze, G; Guattari, F. Kafka: Por uma literatura menor. Trad. Cíntia V. da Silva. Belo Horizonte: Autêntica, 2014.

[5] Deleuze, G; Parnet, Claire. Diálogos. Tradução: Eloisa Ribeiro. São Paulo: Escuta, 2004.