Paul Ricouer e as ameaças a tolerância
22/12/2020 • Coluna ANPOF
Elton Moreira Quadros
Quando, em 1994, o prefeito da cidade de Nova York, Rudolph Giuliani, estabeleceu a política da “tolerância zero”, em que houve uma forte repressão policial a crimes até mesmo considerados menos dolosos, causando, assim, uma sensação de maior segurança entre as pessoas e um aumento impressionante no encarceramento, além das constantes denúncias de abuso policial, ninguém imaginaria que essa (mesmo que discutível) política de segurança pública pudesse oferecer alguma ameaça para aquela que é considerada uma das maiores conquistas civilizacionais – embora isso também seja cada vez mais discutido por alguns – dos últimos séculos, ou seja, a ideia de que a tolerância (com as diferenças, com as alteridades, com a diversidade de opiniões, etc.) estivesse sob ameaça.
Mesmo que possamos discutir o alcance efetivo dessa tolerância e a quem ela mais beneficiou, parecia (talvez não seja mais assim) haver uma convicção de que a tolerância era um caminho possível para questionar inclusive seus usos e abusos.
No entanto, com o passar do tempo, começamos a ouvir a expressão “tolerância zero” em conversas sobre assuntos diversos, de futebol à culinária, de segurança pública ao chamado “politicamente correto”, intencionando não mais aceitar expressões ou ações consideradas ofensivas e, posteriormente, com o que passou a ser chamado de “politicamente incorreto” e que não tolerava mais ser impedido de dizer o que queira.
Essa breve exposição, apesar de imprecisa e, certamente, apressada, pode dar uma ideia geral de como a noção de tolerância foi ganhando, em menos de 30 anos, conotações tão distintas e atingiu novamente o campo da política com uma realidade que choca, quando percebemos que, hoje em dia, a ideia de tolerância está praticamente ostracizada ou perdida em meio ao debate público brasileiro, para ficarmos aqui no nosso quintal.
O filósofo francês Paul Ricoeur (1900-2005), em um texto de 1990 intitulado Tolerância, intolerância, intolerável, chamava a atenção, entre outras coisas, para duas ameaças ao discurso sobre a tolerância que, naquela altura, pareciam já estar em voga.
Por um lado, temos o risco da banalização da questão. Uma banalização que torna o termo e a sua efetivação na vida social como algum comum, rotineiro, a que não precisa ser dada a devida importância. Algo como que “todo mundo sabe que a tolerância é fundamental, não precisa ficar lembrando disso toda hora, né?”. E, até mesmo, como aconteceu ao longo do tempo, os desenvolvimentos jurídicos e sociais para o estabelecimento da tolerância como algo imprescindível no ordenamento social aumentaram ainda mais essa sensação de que ela era um valor incontornável.
Em outras palavras, os bons frutos de uma sociedade que busca viver a tolerância, mesmo que sempre possa haver problemas, acaba por tornar o tema em algo banal, algo tão cotidiano que parece perder a importância. E esse tipo de esquecimento pode sempre ser uma ameaça ao que foi conquistado a duras penas.
A outra ameaça a que Ricoeur se refere é a possível confusão entre as significações do termo tolerância: uma que o coloque no plano jurídico sem levar em consideração as mentalidades e tradições culturais também da sociedade; algo que pode deixar que as definições jurídicas possam ser tomadas como dados por si só transformadores da sociedade (e em um país em que é comum a expectativa de que as leis resolvam tudo e, como já é bem conhecida a judicialização brasileira, isso será mais fácil de ter em mente), sem levar em consideração a mentalidade e a própria tradição cultural de um povo.
Não à toa, encontramos, muitas vezes, práticas juridicamente oficiais em total desacordo com os hábitos populares. Outras vezes, determinadas ideias (que trazem a marca ideológica da tolerância) também chocam a compreensão mais comum e, mesmo que sejam boas, são entendidas por muitas pessoas como uma imposição em desconformidade com a “nossa cultura”, com o nosso modo de ser.
Penso que – e isso não foi exposto por Ricoeur – a causa da tolerância pode ter sido ideologicamente cooptada por alguns grupos e isso fez parecer aos próprios membros desses grupos e a quem olhava de fora que a tolerância seria aceitar irrestritamente qualquer proposta emanada desses grupos: o que não fosse aceito como uma espécie de “verdade de fé”, mesmo que isso fosse somente um posicionamento sobre temas comportamentais, seria considerado a máxima intolerância.
Parece que, somente a esses grupos, é dado uma sursis para não tolerar a divergência, tanto que, depois veremos, em nome de algo semelhante, alguns pedirão “liberdade de expressão para odiar”. Se não foi algo que começou visando a tal efeito, não podemos negar, sem perder o risco de simplificar o problema, de olhar para a possibilidade de que o uso ideológico da tolerância ter-se tornado um modo efetivo de contribuir para a sua destruição ou, pelo menos, para a perda de sua importância “nesses nossos tempos modernos”.
Durante séculos, vivemos sobre a égide da destruição dos inimigos e, só por isso, seria necessário fazer alianças, que poderiam pressupor tolerância com esses aliados, mas não era o comum. Muito se fala sobre a tolerância dos romanos com a cultura dos povos conquistados, mas é bom lembrar que, se havia alguma tolerância nos lugares de conquista, não era comum que a mesma coisa acontecesse internamente no centro do Império e toda tolerância poderia ser revista dados os interesses. Além disso, em outros aspectos, a crueldade romana coloca qualquer associação desse império com a tolerância em xeque.
Por isso, retomando os passos de Ricoeur, a tolerância pode ser entendida com um aceitar de outros alguma coisa, de não interditar ou exigir uma atitude distinta quando é possível fazê-lo. Dito de outro modo, é uma “atitude que consiste em admitir no outro uma maneira de pensar ou agir diferente da que pessoalmente se adota” (1).
Com essa duplicidade de definição inicial presente na língua francesa (e que está muito em conformidade com o que entendemos em português), percebemos que, na primeira parte da definição, encontramos um sentido de abstenção de interditar ou impedir ou alterar a ação alheia e, no segundo caso, já estamos no campo da admissão explícita das diferenças. Tolerar, aqui, é conviver, discordando das diferenças, mas, ao mesmo tempo, admitindo que essa diferença seja possível e, em alguns casos, até mesmo que ela possa enriquecer a própria convivência, quer do ponto de vista das ideias, quer do ponto de vista dos costumes, comportamentos, gostos e crenças.
Para Ricoeur, um ponto importante para o desenvolvimento do senso da tolerância no debate público, especialmente, francês, foram as relações entre o Iluminismo, extremamente anticatólico, e o catolicismo, que possibilitaram um “consenso conflitual” que possibilitou a extensão da noção de tolerância ao campo cultural, diz o filósofo francês: “do equilíbrio entre duas tolerâncias, no qual cada campo renuncia a fazer interditar o que não pode impedir, emerge a duras penas uma tolerância positivamente conflitual, que consiste no reconhecimento do direito de existir do adversário e, no limite, numa vontade expressa de convivialidade cultural” (2).
Precisamos ter em mente que o Estado de Direito, que é, geralmente, uma garantia da tolerância, “não nasce no vazio, mas se liga a uma cultura que, ao mesmo tempo, ele exprime e protege” (3).
Entendendo que o surgimento e estabelecimento da tolerância como uma prática aceitável e, até mesmo, desejável foi um fenômeno tardio na história humana, uma vez que se trata de um sacrifício consentir ao outro liberdade de existir mesmo que contrário a todas as suas crenças, e isso nos coloca, hoje, novamente em uma crise, na qual nos interrogamos: é possível tolerar quem não tolera a tolerância? Mais do que uma frase retórica, talvez esse se constitua no principal problema a enfrentar em tempos de convicções extremadas e de polarizações irracionais.
E, por isso mesmo, precisamos nos deter novamente sobre esse tema, inclusive, como propõe o próprio Ricoeur, para compreender o que é intolerável, como algo distinto, uma vez que esse seria aquilo que é fundado na irrespeitável “recusa de presumir a liberdade de adesão na crença adversa” (4), ou seja, devemos refletir que realmente existe algo que teve ter “tolerância zero” e isso é a não aceitação da possibilidade da convivência plural e diversa em sociedade. Sem isso, talvez, nos encaminharemos distraidamente para novas formas de autoritarismos.
Elton Moreira Quadros é professor da Universidade do Estado da Bahia (UNEB). Professor do PPG em Ecologia Humana e Gestão Socioambiental da UNEB e do PPG em Memória: Linguagem e Sociedade da UESB. É líder do grupo de pesquisa em Fenomenologia, Memória e Justiça e membro do GT Edith Stein e o Círculo de Gotinga da Anpof.
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1 Tolerância, intolerância, intolerável in RICOEUR, P. Leituras 1 – Em torno ao político. São Paulo, Edições Loyola, 1995, p. 175.
2 Tolerância, intolerância, intolerável in RICOEUR, P. Leituras 1 – Em torno ao político. São Paulo, Edições Loyola, 1995, p. 183.
3 Tolerância, intolerância, intolerável in RICOEUR, P. Leituras 1 – Em torno ao político. São Paulo, Edições Loyola, 1995, p. 181.
4 Tolerância, intolerância, intolerável in RICOEUR, P. Leituras 1 – Em torno ao político. São Paulo, Edições Loyola, 1995, p. 185.