Pensar além dos muros e do medo: Segurança-pública um desafio de todos nós
Sandro Cozza Sayão
Professor de Filosofia da UFPE
31/05/2021 • Coluna ANPOF
Talvez entre todas as coisas, o medo é quem mais tem a capacidade de realizar distorções. Através dele a realidade assume tons singulares, nos fazendo tomar distancia de quem nos é desconhecido e nos armamos contra tudo que é diferente de nós. Por ele, vetamos a possibilidade do encontro fortuito e a viabilidade de fundarmos novos caminhos à vida. E não é à toa que onde ele vigora, as doenças psíquicas se instalem e a selvageria tome força. Suas tramas nos paralisam e nos convencem de que novas possibilidades nos serão sempre mortais e que o Outro, dimensão de alteridade capaz de nos levar para além da monotonia do Eu, é sempre um inferno a ser evitado. Eis aí a lógica em que a guerra se nutre. Nela nos armamos contra a exterioridade, embora grande parte dos inimigos sempre estiveram sob um mesmo lar, dentro de um mesmo país.
A “segurança-pública” sempre foi devedora do medo. Embora nosso sentido civilizatório a cada dia se mostre mais e mais insuportável, o temor frente aquilo que nem mesmo teve tempo de ser, torna-se mais aterrorizante do que suportar o que aos poucos se mostra insuportável. Somos como o pássaro engaiolado que só pensa na gaiola em que sempre viveu, com medo daquilo que não lhe é habitual. E nisso empregamos forças para que nada mude, para que tudo permaneça como sempre foi.
Nossa sociedade peca por esse fechamento temeroso em si. Os do centro se fecham contra os da periferia, os ricos contra os pobres, os brancos contra os negros, os religiosos com aqueles que julgam sem fé. Na repetição infinita de que a verdade é aquela do lugar em que se está, surge a rotina diária da pergunta pelo “que pode” e pelo que “não pode ser”; se quem chega é amigo ou é inimigo; se é alguém que merece respeito ou não é; se é uma pessoa de bem ou não. Isso sem desconfiamos que no fundo o que se busca é sempre o Mesmo.
Padecemos desse excesso “de si mesmo”, cujo olhar enviesado olha para as comunidades mais periféricas, e nelas não reconhece pessoas na luta diária pela vida, nem observa nelas homens, mulheres, gays ou trans etc. como seres humanos desejam construir seu tempo e seu existir. Nisso, reforçamos a ideia de que a “segurança-pública”, que já na sua criação aqui por ordem do Rei Português tinha por tarefa proteger os que “tem” dos que “não têm”, é um âmbito de força institucionalizada contra os que estão à margem, como se sua tarefa não fosse outra senão proteger o patrimônio e a ordem.
Nessa repetição infinita da indiferença, dois acontecimentos de maio deste ano, um na França e outro no Brasil, podem ilustrar um pouco minha linha de raciocínio: o primeiro se passou no dia 05 de maio e se refere ao assassinato do policial Eric Massons de 36 anos na cidade de Avignon na França e o segundo, um dia após, relacionado à invasão policial na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro. A morte de Eric Massons, deu-se há pouco mais de 10 dias do também assassinato da policial e agente administrativa Stephanie M. de 49 anos, morta dentro do próprio comissariado de polícia em que trabalhava, na cidade francesa de Rambouillet (Yvelines). Isso há pouco mais de 20 dias do também assassinato de outro policial aqui na França, morto a tiros por razões ainda desconhecidas.
O calor dos fatos, trouxe à tona aqui na França, conhecidos discursos, na maioria relacionados a questão judiciária e a instrumentalização técnica dos policias. Na eminência de uma rápida resposta ao clamor popular, o governo Francês, através do Primeiro-ministro Jean Castex, anunciou no dia 10 de maio de 2021, o endurecimento da “perióde de sûrité”, que é, no direito penal francês, um período que corresponde a reclusão em que o acusado não pode se beneficiar de qualquer sorte de “relaxamento” ou modificação na pena. A ideia seria impedir qualquer “privilégio”, como a semiliberdade ou liberdade condicional para aqueles que cometem atos criminosos contra policiais. Além disso, o Primeiro-ministro francês, anunciou ainda, que à justiça cabe o compromisso de tratar de qualquer ato desta mesma natureza como “delinquência específica”, sugerindo severidade e força.
No Brasil, as operações policiais realizadas no dia 06 de maio, na comunidade do Jacarezinho no Rio de Janeiro, chamariam atenção pela violência e pelas cenas de guerra que se abateram sob a comunidade. A operação na comunidade do Jacarezinho, levou à morte, segundo dados oficiais, mais de 28 pessoas (27 suspeitos e um policial civil, assassinado por supostos traficantes da comunidade) deixando também um número grande de feridos, casas alvejadas por tiros e manchadas de sangue. Reconhecida como uma das operações policiais mais letais nas comunidades do Rio de Janeiro, a ação da policia carioca contou com aproximadamente 200 agentes policiais e, segundo informações também oficiais, teria sido planejada a mais de 10 meses.
Ambos acontecimentos são, a meu ver, conectados por um mesmo ponto: o recrudescimento da força e da violência como escolha e possibilidade, como resposta a uma dada leitura da realidade enviesada da realidade .
Vista como modo primitivo do bem capaz de instaurar a paz, a violência é assumida como uma escolha comum, tanto para a França como para o Brasil. Guardando obviamente as grandes diferenças que nos tipificam e o fato que a polícia do Rio de Janeiro tem se tornado a cada dia mais mortal, em ambos os casos o que se quer é uma resposta imediata, talvez muito mais midiática do que outra coisa. Na França, pela via da justiça, o que se quer é atenuar o impacto social das agressões contra quem representa o estado e no Brasil, os meandros dessa operação não são outros senão uma mostração de força, de caráter notoriamente político. Isso em razão do momento “sombrio” vivido, em que defensores da tortura e de torturadores são aplaudidos e em quem deseje a guerra se torna herói.
Sem desconsiderarmos a necessidade da força e do poder vigoroso que desmobilize quem deseje praticar atos ilícitos, que o Estado deve estar preparado para enfrentar as grandes organizações criminosas e as peripécias articuladas de quem deseja explorar, usurpar e anular o Outro, é preciso considerar que o uso banal da força é extremamente pernicioso para a sociedade. A paz saída da guerra carrega consigo o germe destrutivo que irá lhe devorar no futuro. E por isso na guerra todos saem perdendo.
Se observarmos que 80% dos problemas enfrentados pela polícia no Brasil não tem relação direta com grandes organizações criminosas, que são eles em sua grande parte relacionados a questões domésticas e familiares, problemas de trânsito e de pequenos delitos contra a propriedade, vamos perceber que pensar a “segurança-pública” está muito longe de admitirmos o uso dos mecanismos da guerra. O que se quer chamar atenção é que sem adentrarmos no âmago dos dilemas existentes, identificando as fontes da absurdidade e respondendo a essas; sem criar estratégias educativas, sociais e mesmo terapêuticas que possam ajudar na transformação das muitas crises sociais existentes, dificilmente se encontrará a paz.
Em pesquisas realizadas pela Universidade Federal Fluminense, em que foram analisados em 14 anos mais de 11 mil operações policiais semelhantes as realizadas na comunidade do Jacarezinho, e que mostram que apenas 1,7% dessas ações se mostraram eficazes, temos respaldo empírico para afirmar o que dissemos acima. A “Guerra contra as Drogas” é no fundo uma “Guerra contra os pobres”, isso é claro. Quando se divide a sociedade entre “pessoas de bem” e “pessoas de mal”, o que se ergue é uma divisão entre “pessoas com bens” e “pessoas que nada têm”. É isso que nos leva a considerar que comunidades periféricas, muitas vezes formadas por mais de 300 mil pessoas, sejam todas elas constituídas criminosos.
Talvez o que não se quer é olhar para toda uma complexa trama que está por trás do caminho percorrido para que um fuzil fabricado nos EUA chegue às periferias das grandes cidades; em como esses atravessam fronteiras, em como são fabricados e vendidos e em como num mundo cheio de tecnologias são elas ainda invisíveis, sem nenhuma possibilidade de rastreamento. Talvez não se queira considerar de onde surgem grandes quantias de dinheiro ilícito, de onde se erguem do nada grandes fortunas e como bancos oficiais acabam aceitando movimentações suspeitas ou mesmo a expatriação de divisas.
Ao adentrarmos no âmago em que se nutre a absurdidade, iremos reconhecer quem são nossos reais inimigos, que o que devemos deixar para trás são antigas formas de compreender a sociedade, que o que nos falta é generosidade. Talvez aí aprendamos que sem compartilhar, dividir e comungar as melhores coisas no campo da cultura, do conhecimento e da tecnologia com todos, jamais construiremos um mundo de paz.