Por que, como e quem ou o que diz Sexismo?

Felipe G. A. Moreira

Doutor em Filosofia (University of Miami) e Pesquisador de pós-doutorado em Filosofia (Unesp)

31/07/2023 • Coluna ANPOF

Outrora, “eu” — ou, mais exatamente, a persona filosófica, FGAM — defendeu que um critério razoável para a atribuição à x do predicado, “é sexista” (adiante, <Sexista>), é que x precisa mostrar comprometimento com uma tese: a que a essência das mulheres é inferior à dos homens de modo que homens devem guiar mulheres. 

Veja: FGAM defendeu que esse é um critério razoável; FGAM não defendeu que esse era o único critério razoável. 

Veja: FGAM não definiu “essência” ou estabeleceu condições para um uso restrito do verbo, “guiar”, deixando a cargo do leitor interpretar esses e os termos, “homens” e “mulheres”. 

Por sua vez, Amanda M. Alves Moreira (adiante, Moreira AMAM) alega que existem vários critérios razoáveis para a atribuição à x de <Sexista>. Logo, ela conclui que o sexismo se diz de várias maneiras. 

Pois bem. FGAM não tem problema em reconhecer isso. Mesmo porque, ao não definir os mencionados termos, ele já implicitamente apontou para um critério de aferição de <Sexismo> que é na prática pluralista. Logo, FGAM não considera que Moreira AMAM formulou uma objeção a sua posição.

Por que então escrever esse texto? Porque parece motivado determinar o que seriam objeções à visão de FGAM sobre <Sexismo>. Essas objeções, esse texto defende, são discordâncias com tendências que FGAM tem em relação a três disputas que serão tratadas apenas muito rapidamente aqui. As disputas em jogo são as da motivação, do método e do escopo. Respectivamente, essas disputas são: Por que usar <Sexista>? Como usar <Sexista>? Quem ou o que entra no domínio de <Sexista>?

Uma resposta para a disputa da motivação é dizer que devemos usar <Sexista> para defender uma política nostálgica dos tempos do imperialismo tradicional quando mulheres não eram exatamente vistas como pessoas, mas como propriedades de homens. Não parece irracional crer que um Jair Bolsonaro “ecoa” essa resposta. 

Outra resposta para a disputa da motivação é dizer que devemos usar <Sexista> para defender uma política associável ao imperialismo de vanguarda. Também não parece irracional crer que os textos de uma Milly Lacombe “ecoam” essa resposta.

A tendência de FGAM é a de se opor a essas respostas e achar que <Sexista> precisa ser usado com o intuito de responder tanto aos nostálgicos dos tempos do imperialismo tradicional quanto aos defensores do imperialismo de vanguarda. 

Isso por meio de uma perspectiva de esquerda que procura ser mente aberta e empatizar com o outro por meio de uma maximização de tendências libertárias e igualitárias. Logo, uma objeção a FGAM é alegar que esse não é o caso, e.g, porque as outras duas respostas são mais pertinentes.  

Uma resposta para a disputa do método também é associável aos nostálgicos dos tempos do imperialismo tradicional: a de não exatamente ter um método para a atribuição de <Sexista> e se autorizar a esbravejar (no sentido de gritar à luz do espírito de rebanho com voz de indignação moral) toda vez que esse predicado é aferido a alguém ou algo. 

Uma resposta à disputa do método também é associável aos defensores do imperialismo de vanguarda: a de igualmente não exatamente ter um método para a aferição de <Sexista> e se autorizar a esbravejar (no sentido de gritar à luz do espírito de rebanho com voz de indignação moral) que <Sexista> é aferível a todos os contrários ao imperialismo de vanguarda.

Outra tendência de FGAM é a de se contrapor aos que adotam essas respostas. Isso porque ele crê que um método para a aferição de <Sexista> precisa ser estabelecido. Por exemplo, o método de se fazer uma análise de x com o intuito de mostrar que x satisfaz a condição ou — como indica Moreira AMAM — pelo menos uma das condições para a aferição de <Sexista>.

Veja: a articulação detalhada desse método é desafiadora. Recorrentemente, aqueles (e.g., Daniel Alves) a cujas ações <Sexista> parece aferível rejeitam tal atribuição. Seria então preciso estabelecer como <Sexista> pode ser aferível à luz de uma evidência textual ou comportamental a alguém que nega ou mesmo conscientemente e sinceramente crê que <Sexista> não é atribuível a si ou a uma ação de si. 

FGAM não pode articular esse método detalhadamente aqui. Para os presentes propósitos, basta frisar que uma outra objeção a ele seria alegar que não precisamos de tal método, e.g., porque as outras duas respostas à disputa do método são pertinentes. 

A disputa do escopo também recebe implicitamente uma resposta tanto dos nostálgicos dos tempos do imperialismo tradicional quanto dos defensores do imperialismo de vanguarda. Os primeiros sugerem que o escopo de aplicação de <Sexista> é vazio ou quase vazio. Isso é dizer que <Sexista> não é aferível a ninguém ou a quase ninguém. 

Já os defensores do imperialismo de vanguarda sugerem que <Sexista> é atribuível a todos ou praticamente todos com exceção talvez dos próprios defensores desse imperialismo. Isso ocorre porque esses defensores tomam a si mesmos como um parâmetro para todas as pessoas. 

Considere a secretária de impressa dos EUA, Karine Jean-Pierre, que uma vez confundiu o Brasil com a Venezuela ou um Elliot Page que, antes de seu rebatismo era nomeada(o) “Ellen Page” e uma vez se autorizou a tentar dar uma espécie de lição de moral no Bolsonaro. <Sexista>, sugerem os imperialistas de vanguarda, não é atribuível a essas pessoas ou a personagens de artefatos culturais propagados pelo imperialismo de vanguarda. Tipo: o Steve Maryweather do desenho da Netflix, Q-Force, ou o Michael Lawson da série também da Netflix, Uncoupled

Uma terceira tendência de FGAM é a de rejeitar essas respostas à disputa do escopo e achar que o escopo de aplicação de <Sexista> não pode ser: nem excessivamente restrito (e.g., ao não incluir nem a notórios estupradores), nem excessivamente abrangente, e.g., incluindo os que se recusam a falar “todes”; praticamente toda a população de cidades pequenas como Marília; qualquer um que ousa discordar de uma Sally Haslanger etc.

Por exemplo, FGAM tende a crer que <Sexista> é, sim, aferível às ações que levaram Robinho e Harvey Weinstein a terem problemas com a lei. Por outro lado, FGAM não acha que <Sexista> seja atribuível ao Pedrinho porque esse foi eleito por uma pesquisa promovida pelo UOL o melhor comentarista do campeonato brasileiro de 2022. 

Veja: isso parece se seguir mesmo se os diversos critérios razoáveis articulados por Moreira AMAM para a atribuição de <Sexista> são considerados. 

Mais: quando determinando se a aferição de <Sexista> é justificada, FGAM acha que é de suma importância traçar a distinção entre autores de poemas (e.g., o próprio Felipe G. A. Moreira) e eu-líricos. Tipo: os da coletânea de poemas, FGAM, que contém poemas (e.g., “Chuck Traynor”) que têm versos como “uma cadela é uma cadela é uma cadela... / Eu te estacava, piranha!”. Afinal, não parece que <Sexista> seja atribuível a um autor de poemas como esse, apenas porque esse autor ficcionalmente articulou tais poemas. Isso não significa que esse predicado não possa talvez ser aferível a alguns dos eu-líricos dos poemas de FGAM, ainda que outra leitura pareça mais interessante. 

A leitura é que tais eu-líricos — como indicado pelo poema “Eu sou o homem ambíguo com a flor ambígua” — são homens ambíguos com flores ambíguas. Logo, eles de modo paraconsistente justificam e não justificam a atribuição de <Sexista> a si mesmos e são um modo de fazer o leitor (seja de tendências mais direitistas, seja de tendências mais esquerdistas) se confrontar (metamodernisticamente) com o seu outro. 

Também não parece que <Sexista> seja aferível àquele que crê como FGAM crê que é mais interessante articular tais eu-líricos paraconsistentes do que aqueles recorrentemente formulados por uma Amanda Gorman que recitou um poema na posse de Joe Biden. Afinal, os eu-líricos de Gorman “ecoam” as políticas do imperialismo de vanguarda; seus bafos fedem ao sangue dos povos que sofrem com as intervenções dos EUA. 

Como Lila Abu-Lughod indica, <Sexista> é recorrentemente atribuído a esses povos pelos defensores do imperialismo de vanguarda, e.g., uma Laura Bush. Mas não seria mais pertinente atribuir <Sexista> aos que se acham capazes de estabelecer um parâmetro de mulher que pretensamente seria violado pela maioria das mulheres, e.g., do Iraque, do Afeganistão etc.? FGAM tende a achar que sim. Ele também não se autoriza (ao menos, não no momento) a ajuizar acerca de certos casos complexos, e.g., se <Sexista> é atribuível às ações que levaram aos constrangimentos públicos de Aziz Ansari e Johnny Depp

Segue-se que uma terceira objeção a FGAM é alegar que o escopo de aplicação de <Sexismo> no qual ele tende a crer não é restrito ou não é abrangente o bastante. Na cara e contra o espírito de rebanho de gente que defende essa ou as outras duas objeções exclusivamente à base do grito, FGAM não tem medo de gritar: não são vocês que vão me dizer por que, como e quem ou o que diz sexismo! (Para não falarmos de racismo, homofobia, xenofobia etc.)

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Felipe G. A. Moreira

Doutor em Filosofia (University of Miami) e Pesquisador de pós-doutorado em Filosofia (Unesp)

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