Por que filósofas e filósofos devem repudiar a PEC 45/2023 (PEC das Drogas)?
Flávio Rocha de Deus
Mestrando em Filosofia (UFBA)
26/04/2024 • Coluna ANPOF
Há inúmeras definições clássicas e contemporâneas acerca do que é o trabalho dx filósofx. Mas, em quase todos os casos, ao menos naqueles que têm valor, entende-se que xs filósofxs prezam pela estrutura (solidez) dos conceitos; pela veracidade das informações e pela validade dos argumentos. E, como podemos observar, nenhum desses critérios parecem ter sido considerados para a aprovação da PEC 45/2023. Há de se perguntar, então, qual a importância de um debate conceitual para a aplicação de uma lei? Vamos lá.
Em abril de 1989, Jacques Derrida concedeu uma entrevista ao jornal Autrement cujo título, “Rhétorique de la drogue”, sintetiza sua questão tratada: o conceito de droga não tem fundamento objetivo, é meramente retórico e falacioso. De acordo com o filósofo, “[...] drogas é um conceito não científico, instituído a partir de avaliações morais ou políticas [...] Como o vício em drogas, o conceito de drogas supõe uma definição institucional estabelecida: precisa de uma história, uma cultura, algumas convenções, avaliações, normas, toda uma rede de discursos entrelaçados, retórica explícita ou elíptica.” (Derrida, 2023, p. 203).
O raciocínio de Derrida nos permite realizar um novo movimento hermenêutico, não apenas acerca da vacuidade do conceito, mas também sobre o próprio direito que formula e aplica leis baseadas nas interpretações normativas desta palavra. Ao não mais avaliar a criminalização da coisa-droga como a mera atividade de julgar, e condenar, um indivíduo que se associou a algo objetivamente ruim, trazemos a tona a dimensão moral desta proibição, nos permitindo uma melhor clareza do que de fato está em debate quando se discute tal tema. De acordo com o Dicionário técnico jurídico de Guimarães (2011, p. 283), direito é a “Ciência que sistematiza as normas necessárias para o equilíbrio das relações entre o Estado e os cidadãos e destes entre si, impostas coercitivamente pelo Poder Público”. Ainda que possamos entrar em debates (teoria monística ou dualística) acerca da similitude do estado e do direito como entidades análogas e co-dependentes, é indiscutível que “[...] o direito sempre é uma força autorizada, uma força que se justifica ou que tem aplicação justificada” (Derrida, 2011, p. 7, grifo nosso), ou seja, tão mais adequado é a aplicabilidade do direito (suas leis) quanto mais sólida for a validade de seus argumentos. Mas a questão é, no atual cenário político não há argumento, validade, coesão ou coerência nas motivações. Só há palavras de ordem, interesses privados e uma má leitura da bíblia.
O que Derrida percebeu, e que devemos nos apropriar, é que os debates públicos sobre o consumo dessas substâncias chamadas drogas não seguem os critérios mais elementares da noção mais básica da atividade filosófica: o conceito. Como também já é de conhecimento geral, um conceito busca estruturar uma definição universal que possa ser aplicada a todos os seus casos particulares sem contradição. Todavia, como podemos perceber ao caminhar pelas ruas de nossas cidades, os bares de nossos bairros e as farmácias de nossas ruas, os mesmos critérios que valem para definir uma droga (o prazer, o vício, a toxicidade, a psicodelia, riscos a vida pública) como nociva não servem para outras. Como nos diz o próprio Derrida:
Nunca condenamos o álcool ou o tabaco como narcóticos [stupéfiants], nunca os afetamos com este valor de malignidade moral, mesmo que se diga que são “maus” para a saúde ou para a segurança rodoviária. A relação com a “segurança social” é, portanto, diferente. Se dissermos que tabaco ou álcool são 'drogas', isso implicará alguma ironia, como se estivéssemos sublinhando uma espécie de deslocamento retórico. O tabaco e o álcool, pensa-se calmamente, não são realmente drogas. A sua nocividade pode sem dúvida ser objeto de campanhas dissuasivas, de toda uma pedagogia quase moral, mas o consumo destes produtos não é objeto, em si mesmo, de reprovação moral e sobretudo de persecução penal (Derrida, 2023, p. 205).
Na legislação brasileira, ainda que expressamente condenamos o tráfico, encontramos, até este momento, uma certa flexibilidade acerca do trato do consumo de drogas. Ao verificarmos o artigo 28 da Lei 11.343/2006, que trata do porte de drogas para consumo pessoal, podemos observar que as penas aplicadas para o consumo não se enquadram na definição de crime expressa na Lei de Introdução do Código Penal. Isso porque a lei 11.343 não prevê pena de reclusão, mas sim medidas como advertência, prestação de serviços à comunidade e medidas educativas. Essa divergência sugere a posse de drogas para consumo pessoal mais como uma questão de saúde pública do que como crime, enfatizando a necessidade de tratamento para os usuários. Neste cenário o trabalho da Prof.ª Maria Aperecida Minahim (UFBA), Hermenêutica penal – algumas questões e princípios para interpretação, nos apresenta uma densa síntese das disputas argumentativas sobre esta questão, que não é nem um pouco recente
As divergências são múltiplas e compreendem desde a indagação da constitucionalidade da norma (porque não seria lícito ao estado punir o viciado que é a própria vítima do crime), à tipicidade da conduta daquele que está consumindo a droga (e que, portanto, não oferece qualquer perigo para a saúde pública, uma vez que não mais a detém ou porta consigo) ou, ainda, à previsão legal da conduta de fumar maconha, por exemplo, que não se enquadra em nenhuma das hipóteses do mesmo artigo 16 da Lei Antitóxicos. Na verdade, em face do princípio da lesividade, tais condutas devem ser consideradas atípicas porque sendo a saúde pública um bem jurídico tutelado, não se pode entender que a lesão à saúde individual constitua perigo à saúde da coletividade, da mesma forma que não se considera uso de tabaco uma conduta perigosa para a sociedade. [...] O princípio da materialidade é também afrontado na hipótese sob exame, na medida em que o mero comportamento ou forma de ser do indivíduo não devem ser objeto de intervenção do direito penal. (Minahim, 1999, p. 51).
De igual forma, como podemos observar nos trabalhos de Fernandez (1997); Bragança (2015); Maciel e Vagas (2015); Hari (2018); Passos e Souza (2011); Karam (2013); Burgierman (2011); Rodrigues (2008, 2012) e Rybka et al. (2018), a história das normas públicas, o consenso entre a maior parte dos estudiosos do tema, as inúmeras análises estatísticas apresentadas e o simples raciocínio elementar dos fatos tantas vezes repetidos, são o suficiente para demonstrar que a guerra ao tráfico de drogas fracassou, fracassa e está fadada a continuar no fracassar, sendo as políticas de redução de danos as mais eficazes. Ou seja: não há forma de o Estado vencer – ou minimamente progredir – a guerra contra o tráfico, a não ser que comece a violar os princípios humanísticos, constitucionais e formais que fundamentam o próprio Estado.
Também deve-se destacar que não é apenas a moralidade hipócrita e decadente que impulsiona tal PEC. Como nos disse o ex-Ministro da Fazenda, Antônio Delfim Netto, “a parte mais sensível do corpo humano é o bolso” (Gonçalves, 2020, p. 11), e em consonância a tal dito não seria exagero dizer que não há apenas um preceito metafísico-moral por trás da proibição, mas há ganhos bem materiais na manutenção da criminalização do tráfico, ou, como poderíamos chamar: uma reserva de mercado ¬ (ações feitas pelo governo com o intuito de proteger um certo setor da economia) para grupos específicos filiados a este comércio monopolizado. Luís Carlos Valois (2019, p. 14) é bem didático quando apresenta essa dimensão comercial e lucrativa da lei penal. Em seu livro O direito penal da guerra às drogas o magistrado nos diz que: “A política governamental, essa política que se traduz como polícia de drogas, é aliada dos traficantes, todos viciados em uma guerra sem fim, com lucros para ambos os lados, mas prejuízos para a sociedade que só vê o agravamento das injustiças e das desigualdades”
Após tal exposição, percebemos coerência na concordância das considerações de Rodrigues (2008, p. 98) acerca dos reais prejudicados nesta configuração atual. De acordo com Professor do Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade Federal Fluminense, “O ‘fracasso’ da proibição, então, potencializa-se em positividade: a guerra perdida contra ‘as drogas’ significa a guerra diariamente renovada e eficaz contra pobres, imigrantes, negros, camponeses entre outros ‘ameaçadores’”. É neste ínterim que acompanhamos Maria Lucia Karam (1991, p. 90) quando a magistrada argumenta que não devemos entender a descriminalização de tais substâncias como uma mera espécie de libertinagem moral, mas como uma possibilidade de direcionarmos nossos esforços com estratégias mais eficazes que não estão relacionadas as sanções penais. Isso implicaria na eliminação de um sistema que se mostrou contraproducente e que resultou e agravou diversas sangrias sociais. A descriminalização seria a abertura para a aplicação de abordagens menos prejudiciais e mais apropriadas, visando encontrar soluções mais lógicas e eficazes para lidar com essa questão, uma dessas possibilidades que discorreremos a seguir se encontra nas ideias da justiça restaurativa.
Referências
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