Porchat e Abraham Lincoln

Harvey Brown

Wolfson College, Universidade de Oxford Membro de Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência,
e do Departamento de Filosofia da UNICAMP de 1978 a 1984

05/02/2018 • Coluna ANPOF

Porchat deve ter se perguntado no que ele próprio tinha se metido. Ele me encontrou pela primeira vez no final de 1978 no dia em que me levou de Campinas para a UNICAMP para me apresentar o campus e meu novo escritório. Ele viu um homem alto, magricela e recém doutorado em Londres, o qual antes de pisar no Brasil tinha somente a mais vaga noção da diferença entre Brasil e Argentina e, dentro do Brasil, entre Campinas e Manaus, e que mal falava umas poucas palavras em português. Esse homem de olhos grandes, 28 anos de idade, de cabelos ruivos indomáveis e que se revelou mais jovem do que alguns de seus alunos, deveria dar um curso de pós-graduação em português em cinco meses. Se tinha alguma ansiedade sobre o novo recruta da UNICAMP, Porchat não o demonstrou.

Eu me perguntei no que eu mesmo tinha me metido. Fiquei impressionado com a aparência inusitada de um homem de boa constituição, perdendo os cabelos, com um amplo sorriso, alguma coisa parecida com uma barba no estilo do Abraham Lincoln e de óculos grandes e grossos como o fundo de uma garrafa de Coca-Cola. A gentileza e a bonomia de Porchat eram óbvias desde o princípio. Mas, depois de ter me levado ao banco no campus e de termos voltado a seu carro, ele parecia perplexo. Era esse o seu carro, ele se perguntava, ou ele tinha entrado sem querer no carro de outra pessoa? Demorou alguns minutos para decidir que esse era o seu carro. Fui acometido por uma sensação tênue de ansiedade. Esse homem atrapalhado seria o meu chefe!

Não demorou até que eu me afeiçoasse a esse padrão no comportamento do Porchat. Ninguém contava melhor e com mais júbilo histórias de suas distrações do que ele próprio; e ele tinha grandes histórias. (Outra conexão com Lincoln.) Uma das melhores ocorreu em Berkeley, Califórnia, quando ele confundiu o cotovelo de uma mulher com a maçaneta de uma porta, mas essas histórias são bem conhecidas. Mencionarei somente dois outros episódios que testemunhei. Uma vez, entrei em seu escritório e o encontrei falando ao telefone com alguém. A certa altura, Porchat perguntou polidamente a essa pessoa por que ela tinha telefonado para ele; como resposta, ouviu que era ele quem tinha telefonado para ela! Minha lembrança favorita é de quando eu o visitei em seu apartamento em Campinas. Ele veio atender a campainha após ter saído do chuveiro e se desculpou por estar sem toalha. Continuamos a conversar, enquanto ele se sentava no chão, pelado e pingando, como se fosse a coisa mais natural do mundo.

Também não demorou para que eu percebesse que, por trás dessas idiossincrasias, estava um homem de visão, integridade e, talvez de maneira mais surpreendente, rara competência como administrador e líder acadêmico. Não preciso repisar a importância de seu papel na construção tanto do Centro de Lógica, Epistemologia e História da Ciência, como do Departamento de Filosofia da UNICAMP, e na sua condução como primeiro diretor. Ao longo de meu trabalho nessas instituições, o que tornou se claro para mim, além da visão admirável de Porchat para criar nelas novos centros verdadeiramente excelentes de ensino e de pesquisa, era que seu funcionamento cotidiano exigia um líder com conhecimento detalhado dos decretos e regulamentos barrocos da Universidade e de como implementar novas propostas através dos canais altamente viscosos da burocracia universitária. Na minha experiência com acadêmicos brasileiros, Porchat era incomparável nessas habilidades, que envolviam paciência, perseverança e humildade.

Frequentemente digo às pessoas que Porchat foi o melhor chefe que eu jamais tive. Desde o princípio, ele me tratou com respeito e afeição e eu rapidamente passei a respeitá-lo, a gostar dele e a admirá-lo. Novamente um pouco como Lincoln, ele combinava considerável ambição pessoal com dar a impressão de alguém que se atribui importância apenas moderada. Seu compromisso com as instituições que criou era maior que o compromisso com seu próprio sucesso acadêmico e político. Embora, posteriormente, eu visse esse tipo de comportamento com bastante frequência entre meus colegas em Oxford, isso não era comum na UNICAMP no final dos anos 1970. Porchat não era um homem comum.

Deixo a outros comentarem as realizações acadêmicas pessoais do Porchat, que foram muito importantes, mas estão fora da minha área de especialização. Guardo inúmeras memórias de encontros agradáveis que eu e minha esposa Maita Kessler tivemos com Porchat e sua encantadora esposa Ieda. Consideramos sua filha Patrícia e sua neta Júlia (que se hospedou conosco por muitas semanas em 2013) como amigas. Todas as vezes que voltei a São Paulo, após deixar o Brasil em 1984, procurei visitar Porchat e Ieda, e gosto de pensar que ele apreciava essas reuniões, apesar de sua saúde declinante nos últimos anos. Em 2017, como se diz na Nova Zelândia, uma árvore poderosa caiu.


Tradução: Plínio Junqueira Smith (UNIFESP)