Produção de material didático pedagógico para a Filosofia: ensinar como um jogo e com o uso dos jogos
Angela Zamora Cilento
Profa. Universidade Presbiteriana Mackenzie
Pedro Gontijo
Prof. UnB
11/10/2021 • Coluna ANPOF
Sem negligenciar que a educação sofre interferências da economia vigente e nem tampouco dissociá-la das relações de poder que comportam, em todas as esferas, grandes assimetrias, podemos afirmar que produção de materiais didáticos para o ensino de filosofia no Brasil vive um momento singular em função da sua qualidade e variedade. Evidencia o empenho e a dedicação dos docentes em busca de um ensino significativo num país com baixo letramento. Destacamos três políticas públicas que nos parecem ser impulsionadoras dessa produção mais recente:
-
Uma década do Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID/Filosofia permitiu a criação de diferentes tipos de produção de material didático.
-
O Programa de Pós-Graduação Profissional em Filosofia – PROF-FILO. Em quatro anos de existência já gerou mais de duas centenas de trabalhos.
-
O Programa Nacional do Livro Didático – PNLD que em três edições (2012, 2015 e 2018) implicou em maior difusão de material didático.
Por mais que seja importante o uso dos textos da tradição filosófica, a gramática pedagógica a que a filosofia precisa estar vinculada exige uma diversificação nos modos de acessibilidade. A própria tradição nos permite verificar uma diversidade de estilos literários e modos de produção filosófica. A abertura teórica e metodológica para o uso de diferentes materiais, inclusive de jogos no ensino de filosofia nos parece ser possível se vivenciarmos de um jeito singular a docência em filosofia, que pode ser considerada enquanto uma criação poética, o que também não deixa de ser um jogo: um jogar que produz implicações, inclusive na produção de material didático. Propomos, portanto, pensar essa docência como um jogo e, em seguida, pensar a prática do jogo como recurso metodológico para o ensino de filosofia.
As possibilidades metodológicas do ensino de filosofia na educação básica nos levam a encarar o ofício da docência como criação poética, visto que seu fazer eclode e reverbera em sua produção, afetando e sendo afetado por outras subjetividades. Este ofício é análogo ao do fazer artístico: “mas o artista só tem em si a poíesis na medida em que ele é o que ele é no vigorar do ser. A obra de arte opera na medida em que ela contém em si a poíesis” (HEIDEGGER, 2002, p. 16). Neste sentido, o artista/professor potencializa seu ser no devir e suas produções revelam as marcas de sua atuação no mundo.
Ora, mas tal criação poética não deixa de ser um jogo na extensão do termo tal como elaborado por Huizinga em Homo Ludens. Só desta maneira conseguiremos dimensionar o valor do jogo no universo simbólico. A extensão do termo jogo, nos esclarece o autor, concerne à dificuldade na tradução do termo ludens para o português. Em inglês, ‘play’ indica jogar, brincar e fazer de conta. O autor segue apresentando em outras línguas, o significado. O jogo antecede o reino da cultura, mas também não deixa de ser seu produto, um fenômeno cultural.
As brincadeiras entre os animais indicam concomitantemente um excesso de energia e o preparo para a vida futura dos filhotes – o jogo se coloca para além dos instantes em que ele acontece - e, de modo análogo, é observável também nos jogos infantis. O jogo ‘diverte’, ‘alegra’, mas também incorpora um elemento imprevisível – o ‘irracional’. Algo paradoxal, pois é elaborado, permeado por regras que permitem sua efetivação se e apenas se forem cumpridas. Além disso, não é ‘sério’, mas levado a efeito pelos participantes. Acreditamos que podemos transpor para o ensino de filosofia tais paradoxos: as regras versus o caráter ‘irracional’ e imprevisível do jogo; a brincadeira e a seriedade.
A elaboração do material didático seja ele qual for exige um grau de destreza que só pode ser alcançado pelo domínio pedagógico do conteúdo. Isto não deixa de ser um jogo: um quebra-cabeça, onde cada peça deve ser cuidadosamente deliberada – no tempo estimado de sua duração; na seleção dos conteúdos (critérios de inclusão e de exclusão); na hierarquização, o que implica auferir uma ordem, uma racionalidade que deve ser detectável em seu conjunto.
Qualquer produção: do plano de aula à proposição de uma atividade a ser realizada requer esta racionalidade. Por outro, há o ‘imprevisível’ do jogo: o que implica em uma dinâmica que foge ao controle do docente: enquanto o papel resguarda e delimita a ‘ordem’ das ideias a serem expostas, na prática, aquilo que nele estava inscrito ganha vida na sala de aula e, portanto, excede a delimitação prévia de seus contornos. Ela se torna uma espécie de ‘ideias em movimento’, isto é, um acontecimento único e irrepetível ainda que seja a mesma.
Implica em considerar as distopias e diferenças entre eles, pois não há uma receita única. O jogo transita entre a necessidade e o acaso, permite experienciar as possibilidades e limites – a sala de aula é o tabuleiro onde as peças se movem de acordo com as jogadas e decisões precedentes. A docência também não deixa de sê-lo, transita entre o que pode ser e o que deve ser, entre o previsto e o imprevisível. Em segundo lugar, este fazer carrega consigo as marcas da subjetividade que as produz.
Toda produção de material didático compreendido como jogo implica em abarcar aquilo que precisa ser apropriado pelos sujeitos, a fim de possibilitar uma aprendizagem significativa – marcas da formação por um docente como criação poética.
A filosofia que vai à escola é uma filosofia que interage com o conjunto de saberes próprios dos espaços escolares e, também, com as diferentes metodologias de ensino existentes. Para promoverem esse encontro entre o lúdico e a aprendizagem filosófica e, mais especificamente o jogo e filosofia na escola, docentes e pesquisadores que enfrentam esse desafio combatem preconceitos na construção dos fundamentos filosóficos e científicos (sociológicos, antropológicos e psicológicos) dos jogos, buscando a desconstrução de uma imagem meio que petrificada em algumas arenas filosóficas a respeito da exclusividade do texto como acesso à filosofia e ao filosofar.
Os jogos usados para o ensino de filosofia, além dos diferentes aspectos que diretamente proporcionam enquanto interação social e aprendizagens, servem como poderosa ferramenta de avaliação diagnóstica: possibilitam a ruptura com o cotidiano, estabelecem interações diferenciadas entre os participantes, promovem o desempenho de outros papeis diferentes dos adotados, permitindo o desempenho de outros. Podem desinibir, criar laços afetivos e quebrar estereótipos entre os alunos. Consente ao professor observar as regras de convivência explícitas ou não naquele grupo.
Em nossas reflexões sobre este tema procuramos sublinhar, primeiramente, que há uma relação direta entre as políticas públicas das últimas décadas e a docência e a produção de material didático-pedagógico para o ensino de filosofia. Em segundo lugar, afirmamos que a docência, sobretudo em filosofia – por sua extensão e pelas inúmeras possibilidades deste fazer – implica na possibilidade de uma criação poética. Este fazer, vinculado ao professor, carrega das marcas de sua subjetividade, de seu planejamento, mas há sempre um fator imprevisível que foge ao seu controle: a aula é um acontecimento. Carrega consigo a ordem e o lampejar do caos – ela se torna um jogo que se reconstrói a cada nova aula, produto imaterial da cultura, bem como sobre o potencial do uso de jogos como recurso metodológico. O jogo foi tomado, portanto, em seu sentido amplo. Em seu sentido restrito, são criados e/ou utilizados em sua materialidade de modo significativo – o que abrange a apropriação dos conteúdos e mudanças atitudinais nos discentes.
O volume desta produção e sua qualidade podem servir de inspiração para os enfrentamentos decorrentes ao Novo Ensino Médio (além de todas as implicações que a pandemia trouxe para a educação como um todo), constituindo um campo urgente, necessário e fértil para práticas e pesquisas sobre o ensino de filosofia na educação básica.
Referências bibliográficas:
FAVARETTO, Celso. Notas sobre o Ensino De Filosofia. In A Filosofia e Seu Ensino. São Paulo: Vozes/EDUC-SP, 1995.
HEIDEGGER, Martin. A questão da técnica. In: Ensaios e Conferências. Petrópolis: Vozes, 2002.
HUIZINGA, Johan. Homo Ludens. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004.