Psicopatas Unidos do Capitalismo
Murilo Seabra
Doutor em Filosofia (La Trobe University)
14/11/2022 • Coluna ANPOF
“As sanções [impostas ao Irã pelos Estados Unidos] estão funcionando”, celebrou Rudolph Giuliani—uma das figuras de maior destaque na cena política americana contemporânea—em uma palestra dada em Nova York. “Vimos os sinais: homens e mulheres jovens dizendo ‘Deem-nos um pouco de comida!’ Vimos o sinal: um homem tentando vender seus órgãos internos por 500 dólares americanos, provavelmente uma fortuna no Irã hoje.” Não acreditei no que estava ouvindo. Como pode alguém celebrar o fato de que há pessoas passando fome? Como pode alguém celebrar o fato de que há pessoas vendendo os próprios órgãos para sobreviver? Sim, a fome generalizada e a venda de órgãos são sinais de que as sanções dos EUA estão funcionando. Mas o entusiasmo de Giuliani e os aplausos da sua plateia em Nova York não são também sinais de que os EUA são uma fábrica de monstruosidades?
“Eu fui diretor da CIA”, disse Michael Pompeo—outra figura proeminente da cena política americana—em uma palestra que deu para estudantes universitários no Texas. “Nós mentimos, nós enganamos e nós roubamos. Tínhamos cursos inteiros [ensinando a mentir, a enganar e a roubar].” De fato, a imagem heroica que temos da CIA—resultado de uma extraordinária campanha de marketing feita em filmes e seriados—não tem nenhuma relação com a realidade. A CIA não é uma instituição composta por mocinhos que perseguem vilões. Ela não é uma força do bem empenhada na luta contra o mal. Ela sequer está a serviço dos EUA. Sim, ela recebe financiamento público. Mas ela trabalha essencialmente para garantir os interesses econômicos da elite americana, não da população americana como um todo. Os golpes que a CIA orquestrou no Chile e na Guatemala favoreceram apenas companhias americanas privadas.
A CIA é pródiga em ações que beiram o inacreditável. Por exemplo, é difícil digerir sua participação no tráfico internacional de drogas. O jornalista Gary Webb, o primeiro a revelar o papel da CIA na epidemia de crack que assolou as comunidades mais carentes de Los Angeles, acabou se matando—depois de ter a carreira destruída—de uma forma digna de um filme de quinta categoria: com dois tiros na cabeça. Não foi a primeira vez que a CIA empreendeu uma caça a jornalistas. Curiosamente, Mbembe jamais escreveu uma palavra sequer sobre a CIA. Ele jamais escreveu uma palavra sequer sobre uma das operações mais indisfarçavelmente racistas e asquerosamente genocidas perpetradas pelo país mais sanguinário do mundo contra sua própria população. Como as maiores vítimas da epidemia de crack que estourou nos Estados Unidos foram famílias negras, a CIA pode, sim, ser coerentemente acusada de genocídio.
Mais recentemente, os EUA e seu fiel escudeiro Reino Unido se posicionaram contra negociações de paz entre a Rússia e a Ucrânia (onde os EUA têm financiado neonazistas há anos) e segundo um ex-analista de inteligência suíço, as explosões nos gasodutos de Nord Stream, que lançaram um volume absurdo de metano na atmosfera, muito provavelmente foram obra dos EUA. Mas é difícil justificar a russofobia por parte dos ambientalistas ainda por outro motivo. Apesar do efeito estufa do metano ser 80 vezes maior do que o do gás carbônico, o incidente representa pouco diante do dano ao meio ambiente causado anualmente pelos EUA. Somente suas forças armadas—que desde o fim da Segunda Guerra Mundial já mataram pelo menos cinco vezes mais pessoas ao redor do mundo do que os nazistas mataram judeus—consomem tanto petróleo quanto 140 países. Bizarramente, há quem insista em louvar as forças armadas dos EUA, inclusive dizendo que são ecologicamente conscientes e que estão lutando contra o aquecimento global.
Talvez os cursos de filosofia deveriam se iniciar não com Tales, Platão ou Aristóteles. Talvez deveriam se iniciar oferecendo um panorama geral do mundo em que vivemos. Os atuais níveis de ignorância não são apenas inadmissíveis, eles também testemunham contra a seriedade dos cursos de filosofia. A produção de exércitos de estudantes que sabem explicar o argumento da linguagem privada de Wittgenstein ou a filosofia da história de Hegel, mas não sabem nada sobre o mundo onde vivem—que não sabem nada de geopolítica, que não sabem nada de história, que não sabem nada sobre o papel desempenhado pelos EUA no golpe de 1964—, não deveria ser motivo de orgulho e sim de vergonha. É preciso manter em mente que quase metade do eleitorado brasileiro recentemente votou em um candidato à presidência que classificou o nazismo como de esquerda, negou que os portugueses pisaram na África, chamou a pandemia que matou mais de 600 mil pessoas no Brasil de “gripezinha” e bateu continência para a bandeira dos Estados Unidos.
Uma das tarefas centrais da filosofia não é precisamente desmontar narrativas que desfrutam de um alto poder de sedução—apesar de seu caráter estapafúrdio? Quando o senso comum diz “Mulher no volante, perigo constante”, a filosofia não responde com uma crítica tenaz e implacável ao sexismo? Ela não o destrincha, ela não o coloca de volta no seu lugar, mostrando que não é o mensageiro da realidade, apenas o porta-voz de uma mentalidade torpe e obtusa incapaz de se justificar? Quando o senso comum diz “Lugar de louco é no hospício”, a filosofia não contra-ataca submetendo a psiquiatria a uma análise política? Ela não a destrona? Ela não a revira? E a filosofia não presta assim um grande serviço à sociedade—mostrando que pelo menos em algumas das suas modalidades, ela tem, sim, utilidade? Ela não nos ajuda a desenvolver nossas capacidades analíticas? E a repensar a sociedade?
Mas o que acontece quando o senso comum—alimentado continuamente pela mídia—aplaude a mania dos psicopatas unidos do capitalismo de reduzir países inteiros a escombros? E ainda os retrata como defensores da democracia? E aceita acriticamente as justificativas que apresentam para suas investidas militares? O que a filosofia faz? Ela se rebela? Ela se insurge? Ela se manifesta? Infelizmente, ela não faz nada. A filosofia qua disciplina acadêmica—da qual é imperioso distinguir a filosofia qua atividade crítica de reflexão, que não consegue ficar indiferente a tanta carnificina—não fala praticamente nada sobre as maiores e mais nauseantes injustiças da atualidade. É como se milhões de policiais estivessem com o joelho na garganta de milhões de George Floyds—e a filosofia se recusasse não apenas a se alarmar com a situação, como também a ver a sua própria apatia como problemática. É espantoso como ela não se espanta.
O que aconteceria se a belicosidade dos EUA inspirasse tanta revolta quanto a morte de George Floyd? O que aconteceria se tratássemos suas “guerras preventivas” como abjetas e detestáveis? O que aconteceria se víssemos as populações desumanizadas pela máquina de propaganda dos EUA como plenamente humanas? O que aconteceria se todos anos saíssem das universidades não massas de estudantes ignorantes sobre o mundo em que vivem, mas inteligências afiadas e bem informadas—que não podem ser facilmente ludibriadas pelas mentiras deslavadas do grande capital? E se julgássemos a filosofia não apenas pelo que ela fala, mas também pelo que ela não fala? Não é espantoso que ela consiga se dedicar com tanto afinco à estética, à ontologia, à ética, à religião, à linguagem, à inteligência artificial etc. quando o mundo desmorona à sua volta?
E a filosofia repete sem cessar que é importante criticar o senso comum. Mas sobre a maior mentira da atualidade, a maior mentira em todas as escalas concebíveis, ela não diz absolutamente nada. Apesar de terem os EUA matado pelo menos 1 milhão de pessoas desde a virada do milênio, Byung-Chul Han defende a tese de que a violência está migrando do mundo exterior para o mundo interior, do mundo físico para o mundo psíquico. Não é estranho o extremo grau de descolamento entre sua “filosofia” e a realidade? Não é ainda mais estranho o seu sucesso?
Por que o gênero e a loucura estão dentro do conjunto dos temas que a filosofia pode legitimamente discutir e problematizar, mas não a guerra, não a história contemporânea, não a geoeconomia em suas dimensões mais pérfidas e asquerosas? Quem é que define quais são os assuntos que a filosofia pode ou não pode tematizar, quais são as narrativas que ela pode ou não pode dissecar? Sim, eu reconfiguraria completamente a disciplina de filosofia. Pois é preciso perguntar se aquilo que temos por aí é mesmo filosofia ou apenas ideologia neocolonial. A quem interessa que as coisas sejam estudadas em sua suposta ordem cronológica, não em sua ordem concreta de relevância? A quem interessa dizer que as áreas de investigação filosófica já estão definidas e não podem ser discutidas? A quem? E por quê? Não, a natureza da filosofia não está gravada em mármore. Ela não é autoevidente e imutável. A sua natureza é decidida a cada momento.