Qual o sentido de ensinar em tempos de coronavírus?
Marcelo Senna Guimarães
Unirio
Felipe Pinto
PPFEN-CEFET/RJ
26/03/2020 • Coluna ANPOF
Nas comunidades de professores avoluma-se o debate sobre as medidas adotadas por instituições de ensino com a finalidade de salvaguardar a continuidade de seus cursos. Há escolas e redes de ensino privadas que, já no início da primeira semana de quarentena, iniciaram o uso de estratégias de ensino a distância (EaD), convocando professores para reuniões presenciais e mobilizando processos de capacitação, produção de material, compartilhamento desse material com turmas virtuais e aulas on-line. Há demandas de produção de videoaulas às pressas e sem condições técnicas, expondo a imagem e o discurso do professor, que pode circular na rede para além do ambiente didático para o qual foi destinado. O docente é coagido a assumir figuras como a de youtuber ou podcaster.
A respeito da crise, o Ministério da Educação se limitou a duas ações. A primeira, convocando alunos de cursos de graduação da área da saúde a voltarem às aulas e a atuarem como voluntários junto ao SUS. No dia 17 de março, publicou portaria que “dispõe sobre a substituição das aulas presenciais por aulas em meios digitais enquanto durar a situação de pandemia” (Portaria MEC n° 343/20). O documento, no entanto, apenas autoriza a tal substituição, delegando a responsabilidade às instituições interessadas em lançar mão desse dispositivo e autorizando também às instituições não interessadas que não o façam. Ademais, ao se dirigir às “instituições de educação superior da rede federal”, o documento só aumenta as incertezas para as instituições da rede federal que envolvem significativamente os dois níveis, educação básica e ensino superior, e que são uma grande da rede, considerando os IFs, CEFETs e o Colégio Pedro II.
A rede municipal de ensino do Rio de Janeiro informou aos responsáveis que viria a encaminhar atividades escolares por meio do aplicativo Whatsapp para que os estudantes mantivessem uma rotina de estudos. No dia 19 de março, o Governo do Estado do Rio de Janeiro decretou novas medidas de enfrentamento ao coronavírus/covid- 19 entre as quais figura novamente a suspensão de aulas, agora explicitando que tal suspensão ocorrerá
“sem prejuízo da manutenção do calendário recomendado pelo Ministério da Educação, nas unidades da rede pública e privada de ensino, inclusive nas unidades de ensino superior, sendo certo, que o Secretário de Estado de Educação e o Secretário de Estado de Ciência, Tecnologia e Inovação deverão expedir em 48 (quarenta e oito horas) ato infralegal para regulamentar as medidas de que tratam o presente Decreto, bem como, adotarmedidas para possibilitar o ensino a distância”.
O Colégio Pedro II manifestou-se publicamente por meio de nota rejeitando que as “ações de ensino a distância” sejam consideradas “aulas ou conteúdos ministrados”, tampouco sejam “contabilizadas como carga horária e dias letivos efetivados”. Em tom semelhante se posicionou a Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, destacando a falta de acesso a conteúdos ministrados na modalidade a distância e o necessário, porém impossível de ser realizado em meio à pandemia, planejamento para operacionalização dos meios digitais.
A questão é complexa e envolve fatores de naturezas muito distintas de acordo com cada região, instituição e sua comunidade, além de situar-se em um mar de incertezas a respeito de como a crise se desenvolverá e por quais transformações passaremos por conta dela. O desarranjo instaurado não parece compatível com tentativas simplistas de dar continuidade aos cursos, como se fosse possível apenas substituir as aulas presenciais pelo ensino à distância, como se o isolamento domiciliar, o convívio em clausura, a preocupação com a saúde dos amigos e familiares, bem como se os atrativos insistentes da indústria cultural não fizessem emergir outras formas de atenção e relação consigo mesmo e com o mundo, em suma, novas formas de subjetividade. Afinal, que corpos serão esses que sairão da quarentena? Quem seremos nós?
Questões relativas a calendário escolar e de exames terão que ser enfrentadas considerando a complexidade da situação (que nem mesmo sabemos qual será) que engloba o financiamento público, os trabalhadores, os calendários de cursos de diferentes níveis e diferentes redes, múltiplos processos de ensino e aprendizagem, características curriculares e disciplinares, mas, sobretudo, a preservação e reconstituição da saúde dos estudantes e trabalhadores da educação.
Iniciamos a quarentena em um contexto que já era marcado, no Ministério da Educação, pela falta de planejamento, pelos bate-bocas em redes sociais, pelas ameaças a professores e pela precarização da educação pública. Agora, na primeira semana da quarentena, surgem a cada dia novos decretos e portarias das diferentes esferas de governo e de gestão institucional, reiniciando em novas bases legais, quase que diariamente, a discussão sobre oferecer ou não uma forma substitutiva para a chamada continuidade pedagógica, bem como as questões daí se seguem. Que forma substitutiva é essa em cada caso? Quais meios ou plataformas digitais? Quais os regimes de estudo e trabalho? Quais os impactos sobre os calendários?
Enquanto se avoluma esse debate turbulento e nebuloso, corre-se o risco de perder de vista o sentido que pode ter o ensino em tempos de crise e quarentena. Em consonância com essa preocupação, junto àquelas não podem deixar de ser postas questões como: Quais os impactos em termos de desigualdades sociais e regionais? Como fazer para que essa “substituição” não implique em um empobrecimento da formação quando, talvez mais do que nunca será necessário recuperá-la e aprimorá-la diante de novos tempos que se descortinam? E, antes, o que exatamente essa forma é capaz de substituir? Pois parece claro que planejar uma forma de manter a atenção e a prática de estudos em uma situação excepcional de quarentena que se abate sobre todos os setores e grupos sociais definitivamente não é planejar uma mera substituição de uma forma por outra como se fossem equivalentes. É para resistir a uma confusa, porém explicitamente documentada, tentativa de equivalência entre ensino presencial e ensino a distância, que sindicatos, seções sindicais e instituições de ensino vêm lançando notas contrárias ao uso dessas ferramentas. Entretanto, parece ser fundamental que se abra a possibilidade de um debate responsável sobre um regime pedagógico excepcional comprometido com a vida de estudantes e de suas famílias em quarentena (sobretudo daquelas que não podem realizar efetivamente a quarentena por suas condições de vida e trabalho). Ao publicar a portaria n° 343/20, o MEC insiste na sua incompetência em qualificar a educação no país, mostrando-se muito mais capaz de gerar medo e acirramento de tensões do que a mobilização e organização necessárias para que os profissionais da Educação contribuam neste período de inseguranças e fragilidades.
O desgoverno em que nos encontramos pode ser oportunidade para que, em certa medida, nos governemos a nós mesmos enquanto comunidades escolares com a finalidade de contribuir junto à população na medida do possível e considerando, como destacam as notas sindicais, as precárias condições em que se encontra a maior parte da população. Nesse sentido, podemos avançar nessas contribuições em boa parte das instituições de ensino, na educação básica em especial, se conseguirmos substituir o afã pelos conteúdos e cargas horárias pelo planejamento, organização, orientação e encaminhamento aos estudantes de propostas atividades e práticas de estudo que se destinem a um melhor convívio, ao reconhecimento e compreensão de conhecimentos científicos, à identificação de fake news, à leitura de dados estatísticos, às práticas de cuidado físico e mental consigo e com os outros, à promoção de valores como responsabilidade, comunidade e solidariedade. Não precisamos, para isso, de uma estrutura tecnológica mais complexa do que uma conta de e-mail, organização, cuidado e paciência para lidar e buscar acompanhar estudantes que não tenham condições de realizar as atividades ou de realizá-las como gostariam ou esperariam os professores. Uma vez mobilizados, como educadores, em contribuir para o bem-estar da população, teremos melhores horizontes para discutir carga horária e calendários, temas que, no momento presente, são secundários. É necessário que haja grupos prevendo e discutindo cenários que dizem respeito ao cumprimento ou reconfiguração dos requisitos legais, mas isso não pode se tornar a finalidade da atuação dos educadores hoje.
O fato é que, depois de alguns dias de quarentena, já não somos mais os mesmos. A questão é: quem nos tornamos, quem nos tornaremos?