Qual voz ousaria filosofar?
Juliana Aggio
Professora de Filosofia da UFBA
08/03/2022 • Coluna ANPOF
Entre o riso do deboche e o silenciamento do nó na garganta está, quase sempre, a voz frágil e trêmula da aluna de filosofia. A sala é um bloco de uma tradição que lhe pesa, enquadra o seu lugar e direciona seus passos. A porta de saída sempre lhe esteve mais próxima e, muitas vezes, foi motivo de libertação e alívio. A filosofia ensinada tampouco lhe acolhia ou erguia. O sonho de se tornar filósofa se desfazia feito névoa passageira de uma manhã fria, como uma doce ilusão de puberdade. O corredor da universidade ficara estreito demais para quem se abrigava sob a vestimenta do gênero feminino. Mas, ao final do corredor, a porta entreaberta deixava escapar vozes de quem nunca quis pouco, mas agora sabe perseguir seus desejos de ler, escrever, dialogar, pensar e filosofar – por que não? Qual voz se cala na sala de aula? Qual voz está trêmula? Qual voz está plena? Qual voz ousaria filosofar?
Quais mãos segurariam firme a pena ao invés do cabo da panela ou da vassoura? Quais olhos seriam capazes de vislumbrar horizontes no papel em branco? Quais corpos poderiam repousar no pensamento sem impedimentos? Quem poderia escolher livremente o que fazer com o seu tempo? Quem poderia dedicar seu tempo a criar metáforas sobre a mesa, o lápis, a lareira sem ter de desviar o seu olhar e deslocar o seu corpo para cozinha ou para o cômodo onde as crianças brigavam? Quem poderia não apenas escolher livremente o que fazer com a única coisa que realmente nos pertence: o tempo de vida? E, mais ainda, escolher que esse tempo dedicado ao pensamento filosófico e à arte de escrever não seja interrompido? Sabemos bem, desde o relato de Aristóteles em sua Metafísica, que a filosofia nasceu com o chamado ócio produtivo (scholé) ou o tempo livre para tão somente especular. Também sabemos, desde o estoicismo, que a única coisa que pode estar inteiramente sob o nosso poder é o nosso tempo de vida e que, portanto, a liberdade incide sobre escolher o que fazer com o seu próprio tempo.
Hipárquia de Marone, no século IV a.c. escolheu dedicar seu tempo ao estudo ao invés do tear. A moça jovem grega destinada a ser esposa-mãe-governanta se afirmou como filósofa ao dizer: eu dediquei ao estudo todo o tempo que, por conta de meu sexo, eu deveria ter dedicado ao tear. Hipárquia, costureira de ideias e palavras, soube fazer do tear o seu estudo, da lançadeira os seus pensamentos filosóficos, e assim teceu sua filosofia, a despeito de toda opressão sexista de seu tempo e não obstante o apagamento sofrido por uma história que não soube lhe narrar.
Além de recusar o regime sexista opressor que nos impede de cultivar a filosofia, é preciso haver condições objetivas que nos permitam escolher dedicar o nosso tempo à paciente e demorada arte de pensar. É preciso, como já nos disse de modo marcante Virgínia Woolf em 1929, Um teto todo seu, e que, portanto, os ambientes privado e público nos sejam propícios: a casa e a universidade. Como já nos alertara em 1975, Hélène Cixous, em seu famoso ensaio O riso de Medusa, urge que as mulheres ocupem os espaços públicos com suas palavras e corpos. Para tanto, todavia, o espaço privado não poderia sugar nosso tempo livre e o espaço público não poderia ser tão cego aos nossos escritos e surdo às nossas vozes.
Ademais, a separação público-privado se funda na diferenciação normativa e hierarquizada entre os sexos que ela contribuiu para manter, reproduzir e institucionalizar. Assim, a feminilidade se faz como antinomia ao espaço público destinado, por sua vez, à definição da cidadania e da masculinidade a ela atrelada. Mais uma vez menciono aqui Hiárquia como uma fonte de inspiração. A filósofa grega desafia as normas vigentes de sua sociedade com a exposição de sua sexualidade e sua coragem de tomar a palavra e argumentar em público. Ela escandaliza duplamente por ser uma mulher que não se submete ao desejo e decisões dos homens e por exercer a parresia cínica. Somente uma mulher filósofa, na Grécia antiga, poderia borrar de forma ainda mais radical as fronteiras entre o privado, enquanto lugar destinado à mulher, e o público, enquanto lugar endereçado ao exercício masculino do poder de falar, pensar e comandar.
Assim, para que tenhamos uma existência livre e capaz de filosofar, precisamos persistir em nossa luta feminista pela liberdade de escolher o que fazer com nosso tempo de vida e para que os espaços, privados e públicos, se abram à expressão oral e escrita das mulheres e de todes não binários. Ora, qual tempo e qual espaço forneceriam condições necessárias e suficientes para que as mulheres possam filosofar? Essa pergunta poderia ser colocada ao avesso: quais são as condições determinantes para que as mulheres deixem de filosofar? Ou, mais especifica e concretamente, para que a aluna de filosofia abandone o curso de filosofia?
Primeiramente, é preciso deixar claro que há, de fato, uma evasão das alunas nas graduações e pós-graduação em filosofia: a chance de avançar para o topo da carreira acadêmica nos é 2,5 menor do que a de um homem, como bem mostrou a pesquisa de Carolina Araújo.
Em segundo lugar, gostaria de apontar aqui cinco razões dessa evasão:
1. A desigualdade estrutural de gênero impõe às mulheres, sobretudo às mais pobres e negras, a necessidade de ter que lutar por sua sobrevivência e cuidados reprodutivos, abandonando o lugar “privilegiado” de se dedicar aos estudos, principalmente um estudo que não tem uma aplicação prática e nem garantia imediata de ascensão social: a filosofia (falta de condições materiais para o exercício da filosofia);
2. A crença alimentada socialmente e pela boca de muitos filósofos ao longo da história de que a filosofia é um conhecimento racional o bastante para não ser acessível a uma suposta natureza feminina incapaz de mesma desenvoltura racional que os homens e mais afeita à animalidade, sensibilidade, sensualidade, sexualidade (falta de condições ontológicas para o exercício da filosofia a partir de uma crença falsa: afinal, é preciso percorrer um oceano de séculos de preconceitos para que seja desconstruída e desnaturalizada a crença de que a mulher não nasceu para filosofia);
3. O número diminuto de mulheres professoras e a quase absoluta ausência de mulheres filósofas no cânone filosófico, nas aulas, nas palestras, na grade curricular e nas referências bibliográficas dos cursos e pesquisas; em uma só palavra: o apagamento das filósofas (falta de condições epistemológicas para o exercício da filosofia: afinal, se não é visível a existência de mulheres filósofas, o que me garante que a mulher seria capaz de filosofar?);
4. A falta de coragem de falar de público cultivada numa sociedade machista que opera duas violências. Primeira violência: a interrupção da fala da mulher e o monopólio masculino da palavra que retira da mulher o lugar de fala; em uma só palavra: silenciamento. Segunda violência: a crença de que a mulher não é tão capaz de raciocinar e de falar à altura do suposto ser racional por excelência – o homem; crença esta, vale notar, escamoteada pelo adjetivo “tímida”, como se o silêncio não de uma, mas da maioria das mulheres se explicasse pela timidez (falta de condições sociais para o exercício público da palavra filosófica);
5. Por fim, mas não menos importante: o assédio moral e sexual a que nós, mulheres em geral, estamos submetidas em uma sociedade patriarcal, machista, sexista, mas, sobretudo e, em particular, as alunas de filosofia. Há uma verdadeira naturalização do assédio sustentada na crença da inferioridade da mulher, crença que se explica da seguinte maneira: a mulher sofre humilhações por estar numa condição “naturalmente” inferior ao homem e não porque o homem a quer manter num estado de inferioridade para exercer seu domínio sobre sua existência. Nessa verdadeira cultura do assédio, que se reproduz com frequência no interior das universidades e às vistas grossas da maioria dos homens que prefere consentir a um silêncio tácito e se manter no seu cômodo lugar de privilégio, as alunas são as principais vítimas. Ao sofrerem o assédio, criminalizável ou não, ocorre uma tripla violência: o próprio assédio, a internalização da culpa de ter sido assediada e o medo de denunciar, ficar marcada e ter sua carreira arruinada (falta de condições psicológicas para o exercício da filosofia);
Diante dessas cinco razões explicitadas como faltas – falta de condições materiais, sociais, psicológicas, epistemológicas e ontológicas – não poderia senão insurgir, como reação à opressão e desejo de justiça social, o que já fora apelidado de A primavera das filósofas. E a primavera não é feita só de flores, ele surge de um movimento de filósofas que estão adentrando a mata à foice e enfrentando muitos espinhos. É certo que fazemos tudo isso sobretudo pelas alunas de filosofia, afinal toda luta por transformação social não poderia senão desejar que o futuro seja mais justo, e, principalmente, emulador para as filósofas.