Quando as estátuas caem
Mateus Raynner André de Souza
Mndo. PPG em Metafísica da UnB
08/07/2021 • Coluna ANPOF
Na cidade Minneapolis, Minnesota, Estados-Unidos da América, no dia 25 de maio de 2020, imagens colhidas de uma ação policial em que é visto o sufocamento de um homem negro de 40 anos, George Floyd, por policiais brancos ganharam o mundo. Nas filmagens é possível ouvir Floyd implorar diversas vezes pelo direito de respirar, ele suplica: “Não consigo respirar!”. Esse evento desencadeia uma série de manifestações em Minneapolis que se estendem rapidamente pelos EUA, chegando em diversas cidades de diferentes países.
Os debates em torno do assassinado de Floyd, ao ganharem o mundo, deixam de refletir somente sobre ações policiais e racismo e passam a abranger um movimento grande de questionamento sobre estruturas de poder colonial que possuem um fundo racial evidenciado e que continuam a vigorar em nossas sociedades.
Nesse movimento, lugares de memória como Museus e Patrimônios começam a ser questionados sobre quais imagens de mundo eles vinculam. Entendo claramente que “estátuas não são só estátuas” (Mirzoeff, 2020), mas estruturas de poder e memória, tem-se início uma série de manifestações que reivindicam a retiradas de monumentos que perpetuam visões colonialistas ou pelo menos o debate em torno destes locais de memória.
Um dos marcos desse grande movimento – que não se inicia com a morte de Floyd, mas que lhe deu impulso e visibilidade nos meios de comunicação, como mostra Mirzoeff (2020) – foi a retirada de uma estátua em Bristol, Inglaterra, de um reconhecido comerciante de escravos, Edward Colston. A estátua, como conta Hicks (2020b), foi erguida em 1895, em um contexto em que a Inglaterra, através de uma série de missões expeditórias, intensificou a violência militar sobre o território Africano. E em um momento em que uma multiplicidade de estátuas passaram a ser erguidas para celebrar uma política de violência e dominação territorial.
O que esse movimento tenciona, não é a mera retirada e destruição de monumentos, mas sim a necessidade de reflexão sobre políticas de acervo e patrimônio e sua relação histórica com o colonialismo das nações europeias, que possuem impactos claros na nossa maneira de ver o mundo hoje. Trazendo consequências sobre ações práticas como a normalização de abordagens policiais violentas, por exemplo.
Na esteira dessa movimentação, o arqueólogo Dan Hicks (2020) chama atenção para essa discussão sobre os acervos de arte/artefatos africanos que se formaram nos Museus europeus. Hicks ressalta a violência, a qual ele denomina Necrografia em um diálogo com o filósofo camaronês Achille Mbembe, empenhada nas coletas e pilhagens que constituíram os acervos europeus. Para o autor, qualquer tentativa de reparação às artes africanas passa pelo reconhecimento dos processos necrográficos empenhados na história da colonização europeia.
Sem dúvida o maior legado das reflexões e das questões demandadas pelo movimento da queda das estátuas para os museus e para a ontologia da arte reside na conclusão de que estátuas não são apenas estátuas. Toda essa movimentação gerou um impacto e uma demanda própria para as instituições museais que ensaiaram tentativas de respostas e de ações futuras. O Conselho Internacional de Museus, uma organização sem fins lucrativos cujo objetivo é de elaborar políticas internacionais para os museus, declarou, ainda no ano de 2020, que os museus não são lugares neutros.
Algumas ações pontuais se destacaram, como a fala da diretora do Museu de História Natural Britânico, Clare Matterson (2020), na qual se compromete a reavaliar exposições e coleções que historicamente vêm vinculando discursos racistas e colonialistas. Dan Hicks (2020), curador do museu Pitt Rivers em Oxford, reafirmou a missão que vinha desempenhando em reavaliar e recontextualizar o acervo. Outras instituições, como Metropolitan e MoMa em Nova Iorque, se limitaram a apoiar o movimento. De forma mais tímida, outros ainda, como Museu do Louvre, vieram a público para informar que estão atentos aos desafios inerentes aos seus acervos.
Me parece que a discussão se aprofunda e se complexifica ao demandar de forma mais enfática discussões sobre políticas públicas em torno das aquisições patrimônio, constituição de acervos e aqueles que concerne aos discursos políticos e visuais nos modos de expor e exibir esses acervos.
Está cada mais evidente a necessidade acompanharmos os processos internos das instituições que frequentemente recebem o rótulo de decolonial. Esse olhar atento enseja a cobrança de que essas ações sejam de fato acompanhadas de uma reflexão séria sobre a violência física, epistemológica e ontológica empregadas e perpetuadas até os dias atuais e que as discussões de reparação possam a partir daí de fato surtirem efeitos discerníveis.