Quando é Preciso Dizer o Óbvio: "Nem Pense em me Matar"

Vânia dos Santos Silva

Doutora em Estudos Clássicos (Universidade de Coimbra)

27/04/2021 • Coluna ANPOF

Dia 25 de março de 2021 foi um dia histórico para os movimentos feministas brasileiro. Mulheres de várias frentes de luta se uniriam para lançar a campanha “Nem pense em me matar, quem mata uma mulher mata a humanidade”.[i] A campanha que prevê duração de dois anos, pretende dar um basta ao feminicídio,[ii] um crime no qual mulheres são assassinadas por serem mulheres, por apresentarem um corpo de mulher.

Vou repetir para que possamos nos chocar: mulheres são mortas por serem mulheres. O feminicídio é um crime misógino. É a punição final dada por aqueles que não admitem a autonomia que nós mulheres temos sobre nossas próprias vidas. É um crime cometido por aqueles que se auto arrogam no direito de tutelarem nossas vidas, ou melhor, de enunciarem até quando vamos viver e quando morreremos. Essa generalização no meu discurso ocorre porque é importante que se compreenda esse crime como um dos traços do patriarcado, que estrutura as relações de gênero hierarquicamente e nessa construção, efetivada na prática das relações cotidianas, as mulheres estão na posição mais baixa.  

Mesmo que os números nos mostrem uma realidade de milhares de mulheres sofrendo violências diversas todos os dias no Brasil,[iii] os dados parecem não nos chocar suficientemente, é como se fosse algo da ordem da banalidade ou de uma normalidade elaborada. Rita Segato[iv] desenvolve de forma exímia essa noção quando diz que as violências perpetradas contra as mulheres são da ordem da “rotina, do costume, da moral”. É como se fossem parte, continua ela, “de um conjunto de regras que criam e recriam a normalidade”. A estrutura patriarcal, dada sua extensão temporal e manifestação em numerosas sociedades, embora com variantes, se mantém ainda inflexível de tal modo que sua opressão é manifestada em todos os ambientes que tenham corpos de homens. Isso ocorre porque as violências das relações de gênero nem sempre são explícitas, o próprio silêncio/silenciamento de mulheres em um ambiente com presença de homens pode significar já a normalidade da violência das relações de gênero. Deste modo, queira quer não, o corpo do homem será inibidor das ações das mulheres. E isso não é para ofender os homens é para que eles se comprometam de forma muito ativa e franca com o rompimento dessa estrutura que por muito tempo violentou e silenciou as mulheres.

Assim, a normalidade das violências, parece ocorrer também com o feminicídio. O feminicídio ao contrário de indignar toda a sociedade, por sua natureza covarde, misógina e terminante, essa o lamenta como se fosse da ordem da natureza e do inevitável e não de uma tragédia consubstanciada à cultura das violências de gênero. O lamento tem uma segunda propriedade, não raras vezes ele vem com julgamentos moralistas ao comportamento da vítima, como se a vítima fosse a culpada pelo próprio assassinato. Basta ver o exemplo famoso do julgamento da Ângela Diniz,[v] que, já morta, saiu do lugar de vítima e foi parar no banco dos réus, enquanto, Doca Street (Raul Fernando do Amaral Street), seu assassino, foi transformado em vítima pelo tribunal do júri e por seu conceituado advogado Evandro Lins e Silva.

O feminicídio é a expressão derradeira da violência, antes de ser assassinada a mulher passa por ao menos alguma das demais violências, como a psicológica, a moral, a física, a sexual e a patrimonial.[vi] Nenhuma das violências sofridas pelas mulheres são acidentais e elas não estão fora da normalidade do Estado. Ou seja, elas são produtos de uma sociedade que alimenta a violência contra as mulheres; a violência contra as mulheres negras, indígenas, trans, camponesas e das periferias. Quanto a esse aspecto podemos inferir que o Estado brasileiro, a partir da postura do atual Governo Federal, esteja cooperando para o aumento do número de violências contra as mulheres e para o aumento das violências de gênero, por pelo menos duas razões: a primeira porque o presidente Jair Bolsonaro facilitou o porte de armas, com a assinatura do Decreto nº 9.685/2019, desconsiderando todos os estudos científicos que demonstram que o porte de armas é um fator de aumento dos crimes letais intencionais,[vii] então, embora os assassinatos de mulheres ocorram, majoritariamente, com armas brancas, o número de feminicídio ocorrido com armas de fogo tem crescido e pode se elevar ainda mais.[viii]  

Segundo, porque tivemos no ano de 2020 o menor investimento em políticas públicas de combate à violência contra as mulheres dos últimos dez anos. O Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, justamente no ano em que houve aumento de violências contra as mulheres e um final de ano altamente mortífero – foram 21 mulheres mortas num espaço de 10 dias entre as festas de Natal e de Ano Novo – não gastou nem 25% do orçamento de 2020.[ix] Essas duas razões são suficientes para responsabilizar o Estado por essas mortes, dado o grau de omissão.

Sabemos que armas não servem para a proteção de ninguém. O exercício de uma pessoa que tem o porte de uma arma é somente o de ameaçar e o de matar. Uma arma em casa não oferece, necessariamente, segurança, pelo contrário pode oferecer risco à família e risco às mulheres. Sendo o feminicídio e todas as outras violências contra as mulheres um sintoma da dominação que o homem pensa ter sobre a mulher, não é difícil imaginar qual o uso da arma um homem fará diante de qualquer situação que questione sua autoridade. É sabido que quase a totalidade dos feminicídios ocorrem por companheiros ou ex-companheiros das vítimas e ocorrem em casa. Assim, armar homens é lhes brindar com mais um instrumento para matar e não para se defender, pois arma não gera defesa.

O feminicídio é a legitimação e a naturalização de um conjunto de normas culturais patriarcais que furtam das mulheres o direito a dispor dos seus corpos livremente e a viver uma vida sem violências. Esse conjunto de normas carece não apenas de uma crítica, mas de propostas que o desmorone. Criar outros modos de relações dispostas a romper com as estruturas hierárquicas e com monopólios do poder é uma tarefa que precisamos enfrentar. É urgente pôr em prática pedagogias feministas, para isso é preciso defender espaços democráticos de formação desde a tenra infância, que trabalhe sob uma perspectiva feminista das relações de gênero. É preciso efetuar a pedagogia feminista em todos os espaços da sociedade, pois como dizia bell hooks, “o machismo [patriarcado] é único. É diferente de outras formas de dominação – racismo ou classismo – em que grande parte dos explorados e oprimidos não vivem intimamente com seus opressores [...] É a prática de dominação que a maioria das pessoas aprende a aceitar antes mesmo de saber que existem outras formas ou grupos de opressão”.[x]

Todas e todos nós precisamos nos engajar em interações não violentas e os homens precisam se envolver nesse projeto, num projeto de sociedade em que torne possível mais da metade da população viver sem violência. Mas para isso necessitam destruir a supremacia que pensam ter sobre as mulheres; precisam eliminar o autoritarismo, a punição, o uso da força ou de armas para garantir a sua vontade de poder. Desconstruir essas relações subjugadoras e dominadoras é possível, mas é preciso do envolvimento de todas as pessoas e de políticas públicas, sobretudo, no âmbito da educação, para erradicarmos as opressões das relações de gênero e as demais estruturas opressoras que dão base para as nossas relações sociais.

 


[i] Vídeo de lançamento da campanha do Levante Feminista Contra o Feminicídio “Nem Pense em me Matar”, disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JF4w19jdSjs

[ii] Lein nº 13.104, de 9 de março de 2015.

[iii] Atlas da Violência 2020, disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/3519-atlasdaviolencia2020completo.pdf

[iv] Conferir capítulo quinto do livro de: SEGATO, Rita, Las estrucuturas elementales de la violencia, Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 1ª ed. 2003.

[v] Uma cuidadosa narrativa do caso está disponível em: https://www.radionovelo.com.br/praiadosossos/

[vi] Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006.

[vii] Coferir Atlas da Violência, 2020, p. 11. Link da nota iii.

[viii] Conferir reportagem: https://brasil.elpais.com/brasil/2019/04/12/politica/1555083226_055041.html

[ix] Conferir reportagem: https://oglobo.globo.com/celina/dia-internacional-da-mulher-2021-em-ano-de-aumento-da-violencia-contra-mulher-damares-usa-apenas-14-do-orcamento-menor-gasto-da-decada-24907681

[x] Conferir página 266 do livro de: hooks, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra. Tradução de Cátia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.